A sangrenta Batalha dos Guararapes marcou o declínio da ocupação holandesa no Brasil
Rômulo Luiz Xavier do Nascimento
No belo cenário dos montes Guararapes um dos mais sangrentos conflitos de que se tem notícia na história do Brasil colonial. Ali se enfrentaram duas vezes (1648 e 1649), em confrontos repletos de lances estratégicos, as tropas holandesas e luso-brasileiras.
Os embates aconteceram no período conhecido como Restauração Pernambucana (1645-1654), no qual exércitos e milícias, comandados por João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Francisco Barreto de Meneses, Henrique Dias e Filipe Camarão, combateram as forças da Companhia das Índias Ocidentais, que desde 1624 controlava boa parte do Nordeste brasileiro, em especial a região do atual estado de Pernambuco.
Desde 1645, a reação, comandada principalmente por Fernandes Vieira, vinha imprimindo sucessivas derrotas aos holandeses. Entre 13 de junho e 17 de agosto daquele ano, a Insurreição Pernambucana foi vitoriosa na batalha dos Montes das Tabocas e no ataque de surpresa ao Engenho de Casa Forte. Quase um ano havia se passado desde o regresso de Maurício de Nassau à Holanda. Muito hábil em suas relações com os luso-brasileiros, Nassau não deixou sucessor à altura no governo local. O Alto Conselho que o substituiu não conquistou a simpatia nem a cooperação da população local.
Os problemas religiosos entre invasores (calvinistas) e invadidos (católicos) muitas vezes disfarçavam motivações mais claras e mundanas: os problemas econômicos entre credores e endividados. Senhores de engenho e lavradores sofriam pressão para quitar os empréstimos contraídos aos holandeses, o que desencadeou uma reação militar, em nome da “liberdade divina”, dos católicos luso-brasileiros contra os “hereges” holandeses.
Não que não houvesse motivações religiosas, uma vez que se tratava de uma luta entre católicos e protestantes. Cronista que testemunhou o conflito, Diogo Lopes Santiago revela em um de seus escritos a crença de que “o projeto do levante restaurador recebera confirmação do Alto, como se o madeirense (o comandante Fernandes Vieira) tivesse concluído um pacto com a divindade”. Em outro texto, comenta que, tendo Fernandes Vieira “feito a breve oração, parece que por impulso divino, ficava com tanto ânimo e alentado espírito que lhe parecia que o coração lhe estava dizendo que cometesse a desejada empresa da liberdade”. Para além das tensões econômicas, nas batalhas dos Montes Guararapes o esforço terreno parecia confirmar um plano divino.
Essa retórica religiosa de que ações terrenas são justificadas por desígnios divinos, tão comum na sociedade do século XVII, alimentou a expulsão dos holandeses do Nordeste e ajudou a consolidar o apoio popular ao rei D. João IV. Ele havia assumido o trono em 1640, com a restauração da independência portuguesa, acabando com um domínio espanhol de seis décadas e inaugurando a dinastia dos Bragança. A ação contra os holandeses no Brasil reforçava aquele momento positivo para a monarquia. Para o clero, era como se Deus estivesse olhando por Portugal.
Os combates travados em Pernambuco eram fundamentais para o destino de um posto estratégico do reino. E no mesmo ano da primeira batalha dos Guararapes (1648), do outro lado do Atlântico ocorria a retomada pelos luso-brasileiros de outra parte vital para o império português: Angola. Após sete anos de ocupação holandesa, retornariam às mãos de Portugal os maiores portos de embarque de escravos para o Novo Mundo.
Antes do primeiro enfrentamento nos Montes Guararapes, os quatro anos de combate da Restauração Pernambucana deram resultados bastante positivos para os soldados da “liberdade divina”. Os colonos retomaram quase 130 léguas de terras, desde o Rio Grande do Norte até o Rio São Francisco, aproximadamente dez fortalezas e fortins e mais de 70 peças de artilharia. Também mataram ou fizeram reféns mais de 18 mil holandeses. Entre os luso-brasileiros lutavam brancos senhores de engenho ou pequenos lavradores, índios tupis e escravos com promessas de alforria.
Entretanto, ainda havia muito por fazer. O exército da Companhia das Índias Ocidentais era mais numeroso e dispunha de uma quantidade considerável de canhões. À medida que a guerra passava a ser mais frontal do que de emboscadas, crescia a importância da artilharia nos combates. Por conta disso, o plano dos holandeses no início de 1648 era reconquistar o Porto de Nazaré no Cabo de Santo Agostinho (sul do Recife), ponto fundamental para o abastecimento do Arraial Velho do Bom Jesus. Por ali entravam os arcabuzes, mosquetes e munições usados pela resistência luso-brasileira. Comandados por Sigismundo van Schkope, coronel que em 1635 já havia conquistado o ponto, os holandeses sabiam que era estrategicamente importante ocupar o povoado de Muribeca antes de tomar o porto de Nazaré. Além disso, em Muribeca havia grande quantidade de farinha de mandioca, capaz de abastecer um grande número de soldados.
Ao saber da intenção dos holandeses, os generais Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros se colocaram no meio do caminho. Vindos do Recife, os quase 7.400 soldados da Companhia das Índias Ocidentais teriam inevitavelmente que passar pelos Montes Guararapes para chegar à freguesia de Muribeca. Na língua indígena, “Guararapes” significa algo como “tambor” ou “atabaque”. Nas crônicas de Diogo Lopes Santiago, o significado soaria “como presságio dos muitos tambores e caixas, e instrumentos militares que neles se tocaram nestas batalhas, que quase quer dizer monte guerreiro e nós lhe podemos chamar vitorioso”. E foi o que aconteceu.
A primeira batalha dos Guararapes ocorreu nos dias 18 e 19 de abril, com esmagadora vitória luso-brasileira. Vale dizer que o efetivo luso-brasileiro não passava de 2.200 homens, contra 4.500 neerlandeses. O saldo da guerra: 1.200 holandeses mortos, entre eles 180 oficiais e sargentos. Do lado vitorioso, apenas 84 mortos. O combate intenso durou aproximadamente cinco horas, e no campo de batalha tombaram holandeses, ingleses, franceses, poloneses, luso-brasileiros, negros africanos e índios tupis e tapuias. Muitos soldados holandeses morreram afogados nos alagadiços próximos aos Montes Guararapes. Mal alimentado e sem moral para o combate, o exército da Companhia das Índias Ocidentais não resistiu ao entusiasmo dos luso-brasileiros, que conheciam cada palmo do terreno e se preparam bem para este combate. Num dos últimos momentos do confronto, os holandeses tentaram massacrar o flanco ocupado pelos negros de Henrique Dias. Vendo o que se passava, as tropas de Vieira e Vidal vieram em seu socorro. Os tiros de mosquetes e de arcabuzes foram tantos que o ar se tornou “coliginoso e escuro”, nas palavras de um cronista da época. A segunda batalha aconteceria dez meses depois, no mesmo local.
A primeira derrota holandesa em Guararapes parecia o prenúncio do que estava por vir. O próprio comandante Sigismundo van Schkope passou um longo tempo com um ferimento no tornozelo, e após meses de cama, podia ser visto andando de muletas pelas ruas do Recife, ainda não tomadas pelos luso-brasileiros. A situação da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil se tornava cada vez mais difícil. O Brasil holandês não era mais o mesmo.
No apogeu da ocupação holandesa, a Companhia atingira o domínio de uma área que ia desde a foz do Rio São Francisco (fronteira sul) até São Luís do Maranhão (fronteira norte). Na África centro-ocidental, os holandeses tomaram dos portugueses São Jorge da Mina e Angola, fechando aos navios ibéricos os dois lados do Atlântico Sul. Em 1648, quase todos esses domínios haviam sido retomados, e os holandeses ficavam cada vez mais restritos ao Recife.
Para se vingar da derrota na primeira batalha dos Guararapes, as tropas holandesas fizeram muitos estragos na Bahia, queimaram e destruíram mais de vinte engenhos e saquearam muitos moradores. Iates e lanchas ficavam a uma distância pequena da costa e às vezes entravam pelos cursos d’água, atemorizando os civis. Os saques na Bahia deram aos holandeses novo ânimo para voltar a enfrentar os inimigos, afastando o peso da derrota. A contra-ofensiva já era esperada pelos luso-brasileiros, que dispunham de informações secretas obtidas por espiões e prisioneiros. Estava próximo o derradeiro enfrentamento nos Montes Guararapes.
Seguindo ordens do oficial Francisco Barreto de Meneses, as tropas locais começaram a se movimentar. O objetivo era reunir toda a infantaria no Arraial Novo do Bom Jesus, na freguesia da Várzea. Ali foram se confessar todos os combatentes. Em todas as freguesias de Pernambuco que estavam em seu poder foram rezadas missas, ladainhas, e realizadas procissões por mais de dois dias. A resistência se preparava espiritualmente para o inferno da guerra contra os “hereges” holandeses.
Com a suspeita de que as tropas holandesas pretendiam conquistar a vila e freguesia de Muribeca, os luso-brasileiros trataram de pôr soldados ao longo do caminho, inclusive nos Montes Guararapes. Cuidou-se também para que levassem mantimentos aos futuros combatentes. Dessa vez, os holandeses não estavam mais sob o comando de Van Schkope, e sim do coronel Brink. Apesar de desestimulado pelo coronel ferido na primeira batalha, Brink decidiu atacar o Arraial Novo do Bom Jesus. Partiu para o combate saindo do Recife, à frente de cinco mil soldados, em 18 de fevereiro de 1649. Seu efetivo era reforçado também por 200 índios, duas companhias de negros e 300 marinheiros por mar. Por sua vez, a força de resistência contava com 2.600 homens, aos quais se juntaram todos os combatentes que se achavam nas fronteiras da freguesia de Muribeca, próximas aos Guararapes. Vale dizer que os holandeses contavam com o apoio de indígenas brasilianen (tupis) e tapuias.
Tendo à frente o oficial Francisco de Figueiroa, 300 soldados partiram na direção do exército holandês. Na retaguarda, João Fernandes Vieira vinha com mais 1.350. Foi ele quem propôs como estratégia que o ataque se desse pela retaguarda do inimigo, que ocupava o topo de um dos montes. Um duro combate ocorreu no espaço entre um e outro monte, num local chamado de boqueirão. Ali, os luso-brasileiros combateram também a cavalo. Na batalha do boqueirão foram atingidos Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros. Este último, que ocupava inicialmente o topo de um dos montes, logo se juntou com sua tropa aos homens de Vieira. Posicionados em outro monte, os holandeses disparavam do alto suas quatro peças de artilharia em cima dos oponentes que estavam no boqueirão.
Apesar do fogo cerrado, as tropas comandadas por Fernandes Vieira conseguiram subir o monte onde estava a artilharia holandesa e assassinar o coronel Brink. Também os destacamentos comandados por Vidal de Negreiros, Antonio Dias Cardoso e Francisco de Figueiroa encurralaram no alto vários holandeses, que despencaram de barrancos íngremes. A essa altura, a quantidade de cadáveres em campo já era altíssima, o que causou a deserção de muitos soldados da Companhia das Índias Ocidentais.
Os luso-brasileiros mataram quase 2.000 inimigos e perderam apenas 47 homens. A notícia da derrota holandesa na segunda batalha dos Guararapes provocou no coronel Sigismundo van Schkope, que ainda mancava, uma sensação de descrença no destino da ocupação holandesa no Brasil. Ele estava certo: era o início do fim.
Rômulo Luiz Xavier do Nascimento é doutorando em História pela UFF e autor da dissertação “Pelo lucro da companhia: aspectos da administração no Brasil holandês, 1630-1654” (UFPE, 2004).
Saiba Mais - Livros:
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre-de-Campo do Terço de Infantaria de Pernambuco. Lisboa, 2000.
SANTIAGO, Diogo Lopes. História da Guerra de Pernambuco. Recife: Cepe, 2004.
VARNHAGEN, F. A. de. História das Lutas com os Holandeses no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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