domingo, 10 de maio de 2009

Cargo novo e espinhoso


Primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza tinha atribuições complexas e enfrentou resistência nas capitanias
Francisco Carlos Cardoso Cosentino

No dia 27 de março de 1549, aportava na Bahia o primeiro governador geral do Brasil: Tomé de Souza (1503?-1579?). Fidalgo cortesão e militar português de expressão, ele vinha com uma incumbência extremamente difícil: pôr ordem nestas terras remotas, extensas e bravias que agora passaria a governar.

Sua nomeação, pelo rei D. João III (1502-1557), ocorreu num momento delicado para as conquistas ultramarinas portuguesas. A monarquia lusitana vinha sendo forçada a abandonar algumas praças africanas, como forma de reduzir despesas e manter os domínios no Oriente. Em menos de dez anos, Portugal perdeu Santa Cruz do Cabo de Guiné (1541), abandonou Safim e Azamor (1542), Alcácer Ceguer (1549) e Arzila (1550).

O Estado da Índia sofria com problemas financeiros e com a falta de funcionários para manter as fortalezas e feitorias que permitiam a realização do comércio na região. Enquanto isso, no Brasil, a ação dos navios espanhóis, que utilizavam o litoral como apoio às suas viagens pela América do Sul, e franceses, que negociavam pau-brasil com os indígenas, punha em risco a frágil presença portuguesa. Assim, tornava-se urgente uma ação no sentido de defender e consolidar o domínio nessa parte do ultramar.

Alguns historiadores associam a criação do governo geral do Brasil ao descobrimento das minas de Potosí, na América espanhola (1545). Haveria uma expectativa de que a América portuguesa guardasse riquezas semelhantes, que precisavam ser exploradas e protegidas dos invasores. Essa versão não se confirma nas instruções existentes no regimento dado a Tomé de Souza. Razão decisiva foi, isso sim, o problema enfrentado com os indígenas. Nas regiões onde era frágil a presença portuguesa, eles promoveram várias revoltas na década de 1540: nas capitanias de Bahia (1545), Espírito Santo (1546) e Porto Seguro (1546), e em São Tomé, na África (1546). Os resultados foram a interrupção da colonização portuguesa na Bahia e em São Tomé e o comprometimento da ocupação de Porto Seguro e do Espírito Santo. Até mesmo Pernambuco esteve ameaçado entre 1547 e 1548.

Por causa da importância e das dificuldades da empreitada, a escolha e a nomeação dos governadores gerais eram matérias de alta política, feita de forma cuidadosa, após consultas e negociações na Corte e no Conselho do Rei. Tratava-se de um dos postos mais elevados da administração portuguesa. A investidura era feita por “preito & homenagem”, como se chamavam as cerimônias que selavam um compromisso, instituíam a delegação dos poderes e davam legitimidade ao exercício do cargo. Era um dos muitos resquícios do período medieval ainda em vigor no Antigo Regime português. Com essa cerimônia, eram criados vínculos pessoais entre o soberano e o agraciado com o ofício, de quem era exigida fidelidade, pois implicava a ocupação de funções superiores de governo, exercidas por delegação do rei, resultado de sua confiança, respeito e estima.

Os governadores gerais – Tomé de Souza e os que lhe sucederam – recebiam do monarca alguns poderes típicos da função régia, as chamadas “regalias”. Podiam intervir na Justiça, na Fazenda e na milícia. Premiar e punir eram atributos essenciais ao exercício do governo. As “mercês” serviam para remunerar serviços e garantir a obediência de vassalos e servidores. O regimento que define as funções de Tomé de Souza no cargo, assinado pelo rei, sacramenta que o novo governador poderia, “quando vos parecer bem a meu serviço”, dar “algumas dádivas a quaisquer pessoas que sejam”. Ele também estava autorizado a conceder o grau de cavaleiro das ordens militares “às pessoas que nos ditos navios da armada, ou na terra, em qualquer outra coisa de guerra, servirem de maneira que vos pareça que merecem ser feitos cavaleiros”.

O regimento de Tomé de Souza era pontuado de orientações voltadas para a defesa das terras do Brasil: a construção de uma fortaleza para a proteção da Bahia, medidas para sufocar revoltas indígenas e providências contra portugueses que, com atos de hostilidade e violência, acabavam por estimular esses levantes. Cabia também ao governador geral visitar as capitanias e orientá-las sobre a organização de sua defesa. Ele devia fiscalizar a posse de armamentos dos donatários e dos demais moradores das capitanias e dar combate aos corsários que circulavam pelo litoral.

Atenção especial recebeu a Bahia, sede do governo geral e capital das terras do Brasil. Ali o governador deveria edificar uma cidade e criar equipamentos para defendê-la. Essa preocupação estava vinculada à percepção da importância das cidades como lugar de concentração de poderes. Frei Vicente Salvador, em livro escrito nas primeiras décadas do século XVII, constatando as qualidades da Bahia, afirmou: “estar no meio das outras capitanias, [o rei] determinou povoá-la e fazer nela uma cidade, que fosse como coração no meio do corpo, donde todas se socorressem e fossem governadas”.

Salvador seria uma cabeça para a conquista americana, em território ainda sem unidade política estabelecida. No próprio regimento de Tomé de Souza, ao se referir à América portuguesa, o rei D. João III fala em “partes do Brasil”, e não em “Estado do Brasil”. As “terras” ou “partes” só passariam a ser chamadas de “Estado” no século seguinte, a partir do governo de Gaspar de Sousa (1613-1617).

Além da defesa e da edificação da capital, o regimento continha instruções sobre temas econômicos e financeiros. Quanto às questões fiscais, as funções do governador eram limitadas, pois esse papel cabia ao provedor-mor. As receitas do Estado português se apoiavam cada vez mais nos recursos que vinham do ultramar. Era o comércio ultramarino que levava para Portugal as mercadorias vendidas na Europa, particularmente as especiarias asiáticas. O desenvolvimento da colonização da América portuguesa permitiria que esse processo se repetisse com os produtos oriundos daquela conquista: pau-brasil, açúcar, produtos exóticos. Daí as determinações para que o governador incentivasse e organizasse as atividades econômicas, promovesse a produção agrícola e o povoamento das terras, a edificação de engenhos de açúcar, a manutenção dos privilégios concedidos aos seus donos e a concessão de sesmarias.

Não bastassem a complexidade e a variedade de suas atribuições, Tomé de Souza enfrentou reações de protesto nos núcleos de povoamento e colonização ao longo do litoral, em especial na mais próspera das capitanias hereditárias: Pernambuco, cujo donatário era Duarte Coelho (1485?-1554). Ao perceber que as amplas prerrogativas do governador geral suprimiam algumas de suas atribuições, Duarte Coelho queixou-se diretamente ao rei: “Isto deste regimento destes seus novos oficiais ou foi inovação deles, ou alguma falsa informação de algum pouco virtuoso que contra mim disse”. Por considerar que o monarca português estava sendo mal servido pelos seus auxiliares, o donatário sugeriu que a situação deveria ficar “como estava e guardar-me minhas doações”.

O surpreendente é que os argumentos de Duarte Coelho surtiram efeito, e D. João III resguardou a autonomia de sua capitania em relação ao governo geral. Ao ver seus poderes reduzidos, foi a vez de Tomé de Souza reclamar. Em carta ao rei, ele faz a ressalva de que “os capitães destas partes merecem muita honra e mercê de Vossa Alteza e mais que todos Duarte Coelho”, para depois criticar duramente a decisão, lembrando que o governador geral é o representante máximo do monarca no Brasil: “Não deixar ir Vossa Alteza às suas terras parece-me grande desserviço de Deus e de Vossa consciência e dignificamento de Vossas rendas”.

Em outubro de 1552, cumprindo outra obrigação prevista no regimento, Tomé de Souza percorreu toda a costa brasileira. Enviou depois uma carta ao rei dando conta da viagem. Num dos trechos mais interessantes, informa o soberano sobre o método aparentemente simples que usou para criar uma nova vila no litoral: os “moradores que estavam derramados por o dito campo e os ajuntei e fiz cercar e viver em ordem”.

A criação do governo geral e a atuação do seu primeiro representante tiveram precisamente este objetivo: pôr para “viver em ordem” aqueles que estavam povoando o território. Em 1553, terminado o seu mandato, Tomé de Souza regressou a Portugal. Apesar das dificuldades, não deixou de cumprir sua missão nas “partes do Brasil”.

Francisco Carlos Cardoso Cosentino é professor de História da Universidade Federal de Viçosa e autor da tese “Governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI e XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias” (UFF, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:

CALMON, Pedro. História do Brasil. As origens (1500-1600). 1º. vol. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. A instituição do Governo Geral. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial. Do Descobrimento à Expansão Territorial. Tomo I, 1º volume. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960, p.108-137.

SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. Tomo Primeiro. 9ª ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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