A obra do poeta revela influências literárias que o alçaram ao posto de inaugurador da modernidade no Brasil
Zahidé Lupinacci Muzart
Cada época lê os poetas à sua maneira, de acordo com suas experiências, sua história, sua cultura. Por isso, o sentido de um texto é sempre variado, mutável, ambíguo. Assim, apesar da enorme fortuna crítica de Cruz e Sousa (1861-1898), sempre haverá outra maneira de lê-lo.
A viagem pelas leituras que o próprio poeta realizou e absorveu pode nos mostrar o longo e reflexivo caminho que traçou em sua curta vida. O que motiva este artigo é o ensaio intitulado “Espelho contra espelho” (do livro Evocações, de 1898). Escrito em prosa poética, ele remete às influências literárias do autor:
Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho.
Sempre este espelho – Homero, contra este espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare, contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante, ou contra este espelho – Hugo. [...]
Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos nas gerações, paralelamente igualados, medidos e pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo-lhes a delicadeza e fulguração dos cristais.
Ao mencionar seus diálogos com autores que lê ou admira, o poeta sugere caminhos para o entendimento de sua própria obra. Na base desse texto-chave para a interpretação de Cruz e Sousa está a idéia da intertextualidade, das ligações que tinha com poetas antecessores. Nota-se que entre os autores “primeiros” encontra-se Shakespeare, que, não por acaso, aparece inúmeras vezes em sua obra – é quase uma obsessão –, em personagens, temas, palavras e títulos de peças.
Para Cruz e Sousa, há sempre um poeta primeiro que serve de espelho para outros. Com isso, ele não pretende diminuir o valor dos que se espelham, mas enaltecer o primeiro, reconhecendo uma verdadeira cadeia de criadores: “Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho”. Porém, mesmo aceitando a idéia de “influências”, Cruz e Sousa — herdeiro do Romantismo e da idéia-base de originalidade — tece uma forte crítica aos repetidores, aos plagiadores, aos imitadores, tomando como objeto aquele a quem chama de “Asinino”, palavra hoje em desuso, significando “pertencente a asno” ou, de modo figurado, “estúpido”.
O poeta critica os que seguem sempre todas as regras e rotinas, aqueles que apenas caminham sobre os trilhos, que não ousam inovar ou reprovam quem apresenta algo novo. E ele, um “astro singular”, coloca-se fora dessa casta de asininos. Vinga-se, assim, da indiferença e do desprezo que recebia do meio literário. Eram críticas duras, injustas e racistas, como as de Araripe Jr. e José Veríssimo. Chamando-os implicitamente de asininos, Cruz e Sousa mostra belíssima consciência de seu valor, manifestada com orgulho e coragem.
Cruz e Sousa respeitava os “espelhos”, mas julgava-se, com muita razão, capaz de ser espelho ele mesmo, de ser um iniciador. Consciência que adquiriu pelas leituras que fez quando saiu de sua província natal, Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), e por sua extraordinária capacidade de apreender as idéias no ar. Ou, como definiu seu maior amigo, o crítico Nestor Vitor: “Ele preferiu a cultura por audição, ou por meditação e contemplação, à que se faz com os olhos nos livros”.
Que autores formaram o gosto de Cruz e Sousa em sua juventude? Aluno do Ateneu Provincial, em Desterro, lia e escrevia em francês e, provavelmente, lia também em inglês. R. Magalhães Jr., seu biógrafo, teve nas mãos um livro que pertencera ao poeta, um manual escolar intitulado History of Rome. Nele havia anotações marginais sobre o significado das palavras que ignorava. Uma delas era “bucklers”. Estava sublinhada e trazia na margem a tradução: escudo, broquel. Esta palavra o marcou profundamente, pois anos depois — o livro fora adquirido em 1874, segundo anotação do poeta no lado interno da capa —, Cruz e Sousa a consagra, no plural, como título de seu livro mais conhecido: Broquéis, de 1893.
Cruz e Sousa escreveu poesias a vida toda. Só uma parte foi organizada por ele para publicação, em Missal, Broquéis, Últimos Sonetos e Evocações. Destas obras, só viu editadas as duas primeiras. As demais foram publicadas graças ao interesse e à persistência de Nestor Vítor. Quando jovem, ainda em Desterro, deixou muitos inéditos, hoje incorporados à sua obra. Entre estes, há um poema sem maior valor, intitulado “Decadentes” (acervo Araújo Figueiredo, depositado na Biblioteca Nacional. S/d), que se inicia com o grito “Richepin, Rollinat!”.
Richepin e Rollinat, poetas franceses qualificados de “menores”, fizeram sucesso em sua época e foram lidos por Cruz e Sousa. Jean Richepin nasceu em 1849, e depois de brilhantes estudos engajou-se na Comuna de Paris (1870-71). Em 1875, reapareceu no meio boêmio e intelectual dos cafés parisienses e, devido a suas idéias e maneiras excêntricas, rapidamente se tornou célebre. Em 1876, publicou La chanson des gueux, sua obra mais conhecida e importante, tornada célebre na época por ter sido apreendida e causado a condenação do autor por “atentado aos bons costumes”, com pena de um mês de reclusão.
La chanson des gueux (“A canção dos miseráveis”) consiste em uma série de poesias cheias de calor e entusiasmo, nas quais celebra os marginalizados, os “pobres de Paris”, vendedores ambulantes, camelôs e mendigos que tremem de frio nas noites de inverno e nos Natais sem pão e sem fogo. Os versos de Richepin pareceram à crítica bastante triviais, mas por sua eloqüência e sonoridade, pelo brilho de algumas imagens e o fogo de sua inspiração, é obra singular, cujas idéias libertárias devem ter impressionado Cruz e Sousa. A temática de Richepin sobre os seres “à margem” encontrava ressonância nas experiências pessoais do jovem poeta, ele também, pela cor e pela pobreza, um ser à margem no Brasil da época. Podemos ler em vários poemas de Cruz e Sousa essa ligação intertextual, mas, sobretudo, no belíssimo “Litania dos pobres”, do livro Faróis.
O poema traz cenas de sonho ou de pesadelo que vão criando quadros ligados ao expressionismo, ao fantástico. Verdadeiro mergulho no inconsciente, “Litania dos pobres” emprega certos motivos freqüentes na poesia de Cruz e Sousa, como o das “procissões, massas, desfiles ou legiões”. Também em Richepin aparecem tais grupos. São bandos de poetas, sedentos de poesia: “ils sont, avant tout, des fils de la Chimère/ Des assoiffés d'azur, des poètes, des fous” (eles são, antes de mais nada, filhos da Quimera, sedentos de azul, poetas, loucos). Em Cruz e Sousa, lemos: “E o vosso bando é de eleitos/Que vestis a pompa ardente/ Do velho Sonho dolente/ Que por entre os estertores/ Sois uns belos sonhadores”.
Era uma voz nova na poesia brasileira, uma verdadeira “explosão”, como afirma o crítico Andrade Muricy. Congregava várias vozes, algumas lidas na fonte, na obra de outros poetas, outras apreendidas quase “no ar”, numa espécie de zeitgeist, ou espírito do tempo.
A coletânea Faróis, embora conservando as “marcas” do poeta, é bastante diferente de Broquéis: pelos temas variados, pela quase ausência do soneto, pelo tom verdadeiramente simbolista e baudelairiano, lúgubre, pela musicalidade wagneriana, orquestral. Nessa série, a atmosfera é noturna, tal como em Evocações, dominando a “noite criadora mãe dos gnomos e dos vampiros”. Em Faróis, encontramos temas recorrentes da poesia de Cruz e Sousa, como os ligados ao “rio” (“rio morto”, “rio do esquecimento”, “rios amarelos”), ao mar (“mar antigo”, “mar cego”, “mar amargo”) e a símbolos da alquimia, além de estranhos versos, antecipando os modernistas. É o caso do poema “Esquecimento”:
Esquecimento! eclipse de horas mortas,
Relógio mudo, incerto,
Casa vazia... de cerradas portas,
Grande vácuo, deserto.
Haverá maior acerto e beleza na imagem de uma “casa vazia de cerradas portas” para dizer da dor e do vazio do esquecimento? Essas constantes imagéticas formam, pela reiteração, uma espécie de mito do poeta: o do inferno dantesco, via Baudelaire, por exemplo. O rio morto do esquecimento, onde bóiam luas, diabos... Mas o inferno é o esquecimento, e o medo não é o de esquecer, mas o de ser esquecido. O caminho de Cruz e Sousa é uma verdadeira senda dos ocultistas que, pelo sofrimento e pela experimentação poética, chega à beleza de Faróis. Somente com essa coletânea o autor se desvencilha totalmente das amarras parnasianas e escreve os mais belos poemas simbolistas de nossa língua.
Por muito tempo, o simbolismo foi julgado como o menos brasileiro dos movimentos literários. Isso ocorreu por conta de sua abertura ao mundo. A literatura brasileira deixava de procurar ser somente nacional para se internacionalizar, assimilando várias influências. Entre nós, o parnasianismo teve vida muito longa, maior do que na França. E sobreviveu mesmo depois do “frisson nouveau” — expressão de Victor Hugo em relação a Baudelaire, trazida por Cruz e Sousa. A expressão “frisson nouveau” foi usada por Victor Hugo em carta a Baudelaire, aludindo a tudo o que o poeta criou de novo no poema “Les sept Vieillards et les Petites Vieilles”.
A ele pode-se atribuir a iniciativa de nossa entrada na modernidade. Haverá maior modernidade do que ver um negro em um país escravista alçar-se à posição por ele conquistada? Muitos acham que já se falou demais da questão da cor de Cruz e Sousa. Pois continua sendo impossível estudá-lo sem levar isso em conta. É estarrecedor o paradoxo entre as idéias dominantes nas últimas décadas do século XIX e a vida e a obra de Cruz e Sousa. E é esse paradoxo que o fez ser o que foi.
Mas não só. Entra também nesse contexto o esforço redobrado do jovem poeta em se dedicar à leitura dos franceses, dos ingleses, de Shakespeare, de Baudelaire, de Poe. Leituras por ele apreendidas, decantadas e transformadas a partir de sua visão de mundo, mas que ainda podem ser rastreadas na poesia de Cruz e Sousa.
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART é professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina e organizadora de Cruz e Sousa, Poesia Completa (Fundação Catarinense de Cultura/Fundação Banco do Brasil, 1993).
Livros de Cruz e Sousa:
Julieta dos Santos – Homenagem ao genio dramatico brazileiro (em colaboração com Virgílio Várzea e Santos Lostada). Desterro: Typ. Commercial, 1883.
Tropos e fantasias (em colaboração com Virgílio Várzea). Desterro: Tip. da Regeneração, 1885.
Missal. Rio de Janeiro: Magalhães & Cia., 1893.
Broquéis. Rio de Janeiro: Magalhães & Cia., 1893.
Evocações. Rio de Janeiro: Tip. Aldina, 1898 (com fac-símile da assinatura, um retrato de Cruz e Sousa, por Maurício Jubim, e outro de Cruz e Sousa, morto, do mesmo autor).
Faróis. Rio de Janeiro: Tip. do Instituto Profissional, 1900 (com uma nota de Nestor Vítor).
Últimos sonetos. Paris: Aillaud & Cia., 1905 (com um desenho de Maurício Jubim e um prólogo de Nestor Vítor).
Saiba Mais - Livros:
AUTORES E LIVROS. Suplemento de A Manhã. Número especial dedicado a Cruz e Sousa. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1942.
BASTIDE, Roger. A poesia afro-brasileira. São Paulo: Martins, 1943.
MAGALHÃES JR., Raimundo. Poesia e Vida de Cruz e Sousa. 3ª ed., refundida e aum. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
MURICI, José Cândido de Andrade. Para conhecer melhor Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.
VÍTOR, Nestor. Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: [s. n.], 1899.
Saiba Mais - Filmes:
“Alva paixão”, de Maria Emília Azevedo. Curta-metragem,1994.
“Cruz e Sousa – o poeta do Desterro”, de Sylvio Back, 1998.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Zahidé Lupinacci Muzart
Cada época lê os poetas à sua maneira, de acordo com suas experiências, sua história, sua cultura. Por isso, o sentido de um texto é sempre variado, mutável, ambíguo. Assim, apesar da enorme fortuna crítica de Cruz e Sousa (1861-1898), sempre haverá outra maneira de lê-lo.
A viagem pelas leituras que o próprio poeta realizou e absorveu pode nos mostrar o longo e reflexivo caminho que traçou em sua curta vida. O que motiva este artigo é o ensaio intitulado “Espelho contra espelho” (do livro Evocações, de 1898). Escrito em prosa poética, ele remete às influências literárias do autor:
Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho.
Sempre este espelho – Homero, contra este espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare, contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante, ou contra este espelho – Hugo. [...]
Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos nas gerações, paralelamente igualados, medidos e pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo-lhes a delicadeza e fulguração dos cristais.
Ao mencionar seus diálogos com autores que lê ou admira, o poeta sugere caminhos para o entendimento de sua própria obra. Na base desse texto-chave para a interpretação de Cruz e Sousa está a idéia da intertextualidade, das ligações que tinha com poetas antecessores. Nota-se que entre os autores “primeiros” encontra-se Shakespeare, que, não por acaso, aparece inúmeras vezes em sua obra – é quase uma obsessão –, em personagens, temas, palavras e títulos de peças.
Para Cruz e Sousa, há sempre um poeta primeiro que serve de espelho para outros. Com isso, ele não pretende diminuir o valor dos que se espelham, mas enaltecer o primeiro, reconhecendo uma verdadeira cadeia de criadores: “Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho”. Porém, mesmo aceitando a idéia de “influências”, Cruz e Sousa — herdeiro do Romantismo e da idéia-base de originalidade — tece uma forte crítica aos repetidores, aos plagiadores, aos imitadores, tomando como objeto aquele a quem chama de “Asinino”, palavra hoje em desuso, significando “pertencente a asno” ou, de modo figurado, “estúpido”.
O poeta critica os que seguem sempre todas as regras e rotinas, aqueles que apenas caminham sobre os trilhos, que não ousam inovar ou reprovam quem apresenta algo novo. E ele, um “astro singular”, coloca-se fora dessa casta de asininos. Vinga-se, assim, da indiferença e do desprezo que recebia do meio literário. Eram críticas duras, injustas e racistas, como as de Araripe Jr. e José Veríssimo. Chamando-os implicitamente de asininos, Cruz e Sousa mostra belíssima consciência de seu valor, manifestada com orgulho e coragem.
Cruz e Sousa respeitava os “espelhos”, mas julgava-se, com muita razão, capaz de ser espelho ele mesmo, de ser um iniciador. Consciência que adquiriu pelas leituras que fez quando saiu de sua província natal, Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), e por sua extraordinária capacidade de apreender as idéias no ar. Ou, como definiu seu maior amigo, o crítico Nestor Vitor: “Ele preferiu a cultura por audição, ou por meditação e contemplação, à que se faz com os olhos nos livros”.
Que autores formaram o gosto de Cruz e Sousa em sua juventude? Aluno do Ateneu Provincial, em Desterro, lia e escrevia em francês e, provavelmente, lia também em inglês. R. Magalhães Jr., seu biógrafo, teve nas mãos um livro que pertencera ao poeta, um manual escolar intitulado History of Rome. Nele havia anotações marginais sobre o significado das palavras que ignorava. Uma delas era “bucklers”. Estava sublinhada e trazia na margem a tradução: escudo, broquel. Esta palavra o marcou profundamente, pois anos depois — o livro fora adquirido em 1874, segundo anotação do poeta no lado interno da capa —, Cruz e Sousa a consagra, no plural, como título de seu livro mais conhecido: Broquéis, de 1893.
Cruz e Sousa escreveu poesias a vida toda. Só uma parte foi organizada por ele para publicação, em Missal, Broquéis, Últimos Sonetos e Evocações. Destas obras, só viu editadas as duas primeiras. As demais foram publicadas graças ao interesse e à persistência de Nestor Vítor. Quando jovem, ainda em Desterro, deixou muitos inéditos, hoje incorporados à sua obra. Entre estes, há um poema sem maior valor, intitulado “Decadentes” (acervo Araújo Figueiredo, depositado na Biblioteca Nacional. S/d), que se inicia com o grito “Richepin, Rollinat!”.
Richepin e Rollinat, poetas franceses qualificados de “menores”, fizeram sucesso em sua época e foram lidos por Cruz e Sousa. Jean Richepin nasceu em 1849, e depois de brilhantes estudos engajou-se na Comuna de Paris (1870-71). Em 1875, reapareceu no meio boêmio e intelectual dos cafés parisienses e, devido a suas idéias e maneiras excêntricas, rapidamente se tornou célebre. Em 1876, publicou La chanson des gueux, sua obra mais conhecida e importante, tornada célebre na época por ter sido apreendida e causado a condenação do autor por “atentado aos bons costumes”, com pena de um mês de reclusão.
La chanson des gueux (“A canção dos miseráveis”) consiste em uma série de poesias cheias de calor e entusiasmo, nas quais celebra os marginalizados, os “pobres de Paris”, vendedores ambulantes, camelôs e mendigos que tremem de frio nas noites de inverno e nos Natais sem pão e sem fogo. Os versos de Richepin pareceram à crítica bastante triviais, mas por sua eloqüência e sonoridade, pelo brilho de algumas imagens e o fogo de sua inspiração, é obra singular, cujas idéias libertárias devem ter impressionado Cruz e Sousa. A temática de Richepin sobre os seres “à margem” encontrava ressonância nas experiências pessoais do jovem poeta, ele também, pela cor e pela pobreza, um ser à margem no Brasil da época. Podemos ler em vários poemas de Cruz e Sousa essa ligação intertextual, mas, sobretudo, no belíssimo “Litania dos pobres”, do livro Faróis.
O poema traz cenas de sonho ou de pesadelo que vão criando quadros ligados ao expressionismo, ao fantástico. Verdadeiro mergulho no inconsciente, “Litania dos pobres” emprega certos motivos freqüentes na poesia de Cruz e Sousa, como o das “procissões, massas, desfiles ou legiões”. Também em Richepin aparecem tais grupos. São bandos de poetas, sedentos de poesia: “ils sont, avant tout, des fils de la Chimère/ Des assoiffés d'azur, des poètes, des fous” (eles são, antes de mais nada, filhos da Quimera, sedentos de azul, poetas, loucos). Em Cruz e Sousa, lemos: “E o vosso bando é de eleitos/Que vestis a pompa ardente/ Do velho Sonho dolente/ Que por entre os estertores/ Sois uns belos sonhadores”.
Era uma voz nova na poesia brasileira, uma verdadeira “explosão”, como afirma o crítico Andrade Muricy. Congregava várias vozes, algumas lidas na fonte, na obra de outros poetas, outras apreendidas quase “no ar”, numa espécie de zeitgeist, ou espírito do tempo.
A coletânea Faróis, embora conservando as “marcas” do poeta, é bastante diferente de Broquéis: pelos temas variados, pela quase ausência do soneto, pelo tom verdadeiramente simbolista e baudelairiano, lúgubre, pela musicalidade wagneriana, orquestral. Nessa série, a atmosfera é noturna, tal como em Evocações, dominando a “noite criadora mãe dos gnomos e dos vampiros”. Em Faróis, encontramos temas recorrentes da poesia de Cruz e Sousa, como os ligados ao “rio” (“rio morto”, “rio do esquecimento”, “rios amarelos”), ao mar (“mar antigo”, “mar cego”, “mar amargo”) e a símbolos da alquimia, além de estranhos versos, antecipando os modernistas. É o caso do poema “Esquecimento”:
Esquecimento! eclipse de horas mortas,
Relógio mudo, incerto,
Casa vazia... de cerradas portas,
Grande vácuo, deserto.
Haverá maior acerto e beleza na imagem de uma “casa vazia de cerradas portas” para dizer da dor e do vazio do esquecimento? Essas constantes imagéticas formam, pela reiteração, uma espécie de mito do poeta: o do inferno dantesco, via Baudelaire, por exemplo. O rio morto do esquecimento, onde bóiam luas, diabos... Mas o inferno é o esquecimento, e o medo não é o de esquecer, mas o de ser esquecido. O caminho de Cruz e Sousa é uma verdadeira senda dos ocultistas que, pelo sofrimento e pela experimentação poética, chega à beleza de Faróis. Somente com essa coletânea o autor se desvencilha totalmente das amarras parnasianas e escreve os mais belos poemas simbolistas de nossa língua.
Por muito tempo, o simbolismo foi julgado como o menos brasileiro dos movimentos literários. Isso ocorreu por conta de sua abertura ao mundo. A literatura brasileira deixava de procurar ser somente nacional para se internacionalizar, assimilando várias influências. Entre nós, o parnasianismo teve vida muito longa, maior do que na França. E sobreviveu mesmo depois do “frisson nouveau” — expressão de Victor Hugo em relação a Baudelaire, trazida por Cruz e Sousa. A expressão “frisson nouveau” foi usada por Victor Hugo em carta a Baudelaire, aludindo a tudo o que o poeta criou de novo no poema “Les sept Vieillards et les Petites Vieilles”.
A ele pode-se atribuir a iniciativa de nossa entrada na modernidade. Haverá maior modernidade do que ver um negro em um país escravista alçar-se à posição por ele conquistada? Muitos acham que já se falou demais da questão da cor de Cruz e Sousa. Pois continua sendo impossível estudá-lo sem levar isso em conta. É estarrecedor o paradoxo entre as idéias dominantes nas últimas décadas do século XIX e a vida e a obra de Cruz e Sousa. E é esse paradoxo que o fez ser o que foi.
Mas não só. Entra também nesse contexto o esforço redobrado do jovem poeta em se dedicar à leitura dos franceses, dos ingleses, de Shakespeare, de Baudelaire, de Poe. Leituras por ele apreendidas, decantadas e transformadas a partir de sua visão de mundo, mas que ainda podem ser rastreadas na poesia de Cruz e Sousa.
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART é professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina e organizadora de Cruz e Sousa, Poesia Completa (Fundação Catarinense de Cultura/Fundação Banco do Brasil, 1993).
Livros de Cruz e Sousa:
Julieta dos Santos – Homenagem ao genio dramatico brazileiro (em colaboração com Virgílio Várzea e Santos Lostada). Desterro: Typ. Commercial, 1883.
Tropos e fantasias (em colaboração com Virgílio Várzea). Desterro: Tip. da Regeneração, 1885.
Missal. Rio de Janeiro: Magalhães & Cia., 1893.
Broquéis. Rio de Janeiro: Magalhães & Cia., 1893.
Evocações. Rio de Janeiro: Tip. Aldina, 1898 (com fac-símile da assinatura, um retrato de Cruz e Sousa, por Maurício Jubim, e outro de Cruz e Sousa, morto, do mesmo autor).
Faróis. Rio de Janeiro: Tip. do Instituto Profissional, 1900 (com uma nota de Nestor Vítor).
Últimos sonetos. Paris: Aillaud & Cia., 1905 (com um desenho de Maurício Jubim e um prólogo de Nestor Vítor).
Saiba Mais - Livros:
AUTORES E LIVROS. Suplemento de A Manhã. Número especial dedicado a Cruz e Sousa. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1942.
BASTIDE, Roger. A poesia afro-brasileira. São Paulo: Martins, 1943.
MAGALHÃES JR., Raimundo. Poesia e Vida de Cruz e Sousa. 3ª ed., refundida e aum. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
MURICI, José Cândido de Andrade. Para conhecer melhor Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.
VÍTOR, Nestor. Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: [s. n.], 1899.
Saiba Mais - Filmes:
“Alva paixão”, de Maria Emília Azevedo. Curta-metragem,1994.
“Cruz e Sousa – o poeta do Desterro”, de Sylvio Back, 1998.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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