Há mais de 90 anos o Departamento de Defesa orienta a produção dos filmes de guerra americanos, que retratam os conflitos de acordo com os interesses estratégicos da Casa Branca
por Victor Battaggion
Nos bastidores de O mais longo dos dias: em 1964, o produtor Darryl F. Zanuck filma in loco o desembarque das tropas aliadas na Normandia
Luz, câmera... ação! Há quase um século os produtores americanos despejam nas salas de cinema uma quantidade impressionante de filmes de guerra que fascinam espectadores em todo o mundo. Mas será que esses aficionados sabem que muitas dessas obras jamais veriam a luz do dia sem o apoio do Departamento de Defesa dos Estados Unidos? Que este, ao conceder ajuda às produções, cuida de sua imagem junto ao público, favorece sua política de recrutamento, exerce censura e apresenta a guerra como uma solução necessária?
Produzir um filme custa caro. Preocupados em economizar, alguns cineastas pedem todo tipo de ajuda ao Pentágono: imagens de arquivo, assessoria técnica, acesso a equipamentos de última geração, autorização para filmar em instalações militares etc. Para isso, os criadores submetem seus roteiros a um dos muitos escritórios do Pentágono responsáveis por fazer a ponte entre os militares e Hollywood. Após várias leituras atentas do roteiro, os oficiais das Forças Armadas decidem dar ou não o sinal verde para a produção. Os termos da colaboração são então inscritos em um contrato restritivo: “A produção deverá ajudar os programas de recrutamento das forças armadas. (...) A companhia produtora consultará o Departamento de Defesa para todas as cenas militares durante a preparação, filmagem e montagem”. Segundo Philip Strub, assessor especial de mídia e entretenimento do Departamento de Defesa, “é nosso interesse participar da produção de filmes”.
As premissas dessa troca de gentilezas datam praticamente do nascimento do cinema, quando o clássico O nascimento de uma nação, de D. W. Griffith (1915), contou com assessoria técnica do exército americano. O primeiro escritório específico para o contato com Hollywood foi aberto pelo Pentágono nos anos 20. A primeira colaboração em grande escala data de 1927, quando as filmagens de Wings (Asas), de William Wellman, contaram com a participação de um conselheiro técnico militar da divisão aérea do exército de terra.
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Durante o período entre-guerras proliferaram filmes que exaltavam a superioridade militar americana e procuravam convencer o público de que os Estados Unidos deveriam enfrentar a escalada do totalitarismo do Velho Continente. Finalmente, em 7 de dezembro 1941, o bombardeio da frota americana em Pearl Harbor pela aviação japonesa iria convencer definitivamente os americanos de que seu país deveria entrar de cabeça na Segunda Guerra Mundial. Hollywood se mobilizou. Atores como James Stewart, Robert Montgomery, Tyrone Power, Douglas Fairbanks e Clark Gable alistaram-se no exército. Em 1942, o presidente Franklin D. Roosevelt institucionalizou as relações com Hollywood com a criação do Office of War Information (Escritório de Informações de Guerra) e convidou John Ford e Frank Capra a colocarem seus talentos a serviço do esforço de guerra. Capra assumiu a direção dos serviços cinematográficos do exército, e Ford foi enviado ao Pacífico para cobrir em primeira mão o conflito.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o cinema americano passou a ser pautado pela Guerra Fria. Em Hollywood, a “caça às bruxas” promovida pelo senador Joseph Mc- Carthy desencadeou uma perseguição contra roteiristas, produtores e atores simpatizantes do Partido Comunista Americano. Nos anos 60, o casamento entre os diretores e o Departamento de Defesa viveu um período de esplendor com filmes que celebravam os feitos do exército americano, como O mais longo dos dias, produzido por Darryl F. Zanuck (1962); Uma batalha no inferno, de Ken Annakin (1965) e Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer (1970).
A Guerra do Vietnã, porém, colocou um freio nessa aliança cordial. As manifestações contra o conflito se multiplicaram e os americanos se dividiram. Hollywood se absteve de filmar a guerra e, diante desse silêncio, em 1968 John Wayne pediu ao presidente americano que intercedesse junto ao exército para que este o ajudasse a adaptar para o cinema o romance The green berets (Boinas Verdes), no intuito de inspirar “uma atitude patriótica nos americanos”. Bingo! O exército lhe forneceu tudo que desejava, além de uma doação de vários milhões de dólares. Reacionário até não poder mais, o filme é uma apologia da luta armada conduzida no Vietnã.
Nessa mesma veia patriótica, outra produção contou com total colaboração do exército, em 1970: o inacreditável Patton – Rebelde ou herói?, de Franklin J. Schaffner. Ao assistir a esses filmes, os americanos perceberam pouco a pouco que seus filhos estavam sendo massacrados do outro lado do Pacífico. O casamento entre o exército e Hollywood caminhava para o divórcio. O fracasso no Vietnã deu origem a uma série de filmes mostrando uma visão não idealizada da guerra. Em 1979, Francis Ford Coppola dirigiu o clássico Apocalypse Now. Inspirado no romance O coração das trevas, de Joseph Conrad, o filme relata a aventura do capitão Willard (Martin Sheen), incumbido de matar um “Boina verde” desertor, o coronel Kurtz (Marlon Brando), que liderava um exército de rebeldes. Coppola pediu auxílio ao exército americano para financiar os altos custos de produção do filme, mas sua solicitação foi recusada. O motivo? Pedir a um soldado que execute outro é contrário à ética militar. O Pentágono lhe pediu que mudasse a palavra “executar”, o que o obrigaria a transformar toda a história. O diretor não aceitou e partiu rumo às Filipinas para filmar algumas cenas, alugando material do exército do ditador Ferdinando Marcos.
Outra produção dessa mesma geração, embora mais tardia, denunciou a tragédia vietnamita sem a colaboração do Pentágono. Em 1968, Oliver Stone – ferido por duas vezes no Vietnã –, dirigiu Platoon. O filme, abertamente inspirado em sua experiência na linha de frente, mostra soldados americanos hesitantes, uma atitude inaceitável aos olhos do exército. O diretor teve de esperar dez anos para conseguir financiar seu filme, mas a espera valeu a pena: quando saiu, Platoon se tornou um verdadeiro sucesso. Desde então os americanos vêem com outros olhos os veteranos dessa guerra.
O divórcio entre Hollywood e o Pentágono, porém, não durou muito. Com a eleição do antigo ator Ronald Reagan para a Casa Branca, em 1982, militares e diretores afinaram novamente seus violinos. Segundo o presidente americano, a necessidade de combater a União Soviética era primordial, e Hollywood seguiu a diretriz: musculoso e armado até os dentes, Sylvester Stallone encarnou um soldado americano que vence sozinho a Guerra do Vietnã na série Rambo. Mais asséptico, mas igualmente eficaz, Top Gun, de Tony Scott (1986), marcou várias gerações. Com seus cabelos engomados e sorrisos carniceiros, os personagens do filme restabeleceram o prestígio do exército americano. O longa-metragem recebeu total apoio da Marinha, sob a condição de valorizar o papel dos militares que atuam em alto-mar. Top Gun fez tanto sucesso que o exército instalou escritórios de recrutamento na saída dos cinemas!
A queda do muro de Berlim, em 1989, mudou a situação. A caçada ao Outubro Vermelho, de John Mc-Tiernan, em 1990, sacramentou a idéia de que a União Soviética não era mais uma ameaça para os Estados Unidos. O filme narra a história de um comandante russo, interpretado por Sean Connery, que, em vez de atacar os Estados Unidos com um submarino nuclear , o entrega aos antigos inimigos. A produção contou com grande apoio da Marinha americana, que chegou a abrir a base de Norfolk para as filmagens. Para completar, Fred Thompson, o ator que interpreta o almirante Joshua Painter do USS Enterprise, é um senador republicano carismático na vida real.
No momento em que os russos deixaram de ser uma ameaça, quem se tornaria o novo inimigo? Diante do vácuo de oponentes, a cooperação Hollywood-Pentágono criou um gênero de filme diferente. “Não se trata mais de guerra, mas de segurança nacional. A nova força narrativa coloca em cena desafios assimétricos, isto é, concentra-se em temáticas do terrorismo, de armas de destruição em massa e até da máfia”, conta Maurice Ronai, pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Os atentados de 11 de setembro de 2001 colaboraram para uma nova aproximação entre o mundo do cinema e o Pentágono, e agora, além do Departamento de Defesa, a CIA, o FBI e outros serviços secretos em permanente rivalidade também passaram a colaborar com os estúdios de cinema. Inimigo do Estado, de Tony Scott (1998); Em má companhia, de Joel Schumacher (2002); A soma de todos os medos, de Phil Alden Robinson (2002) e O novato, de Roger Donaldson (2003), são alguns exemplos de longas-metragens que tiveram auxílio dos serviços especiais americanos. Paralelamente, o estrondoso sucesso de O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg (1998), relançou a moda dos filmes com altos orçamentos que tratam da Segunda Guerra Mundial.
Mas, passada a febre pós-11 de Setembro, o Pentágono e Hollywood parecem estar novamente se distanciando. Desde que os soldados americanos começaram a ser enviados para o inferno iraquiano, o Estado-Maior vem enfrentando dificuldade cada vez maior para conseguir novos recrutas e, após um período de silêncio, Hollywood começou a produzir uma série de filmes sobre o conflito. Essas novas produções, no entanto, não expressam uma opinião muito favorável sobre as decisões tomadas pelo Departamento de Defesa nos últimos tempos.
Victor Battaggion é jornalista e colaborador da revista Historia.
Revista Historia Viva
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