Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi (UNICAMP/CNPq)*
Deve-se levar em conta na análise do mundo bíblico que sua literatura foi construída a partir de relações de ordem social, econômica, política e cultural (GOTTWALD, 1988). Assim sendo, a fim de circunscrever o presente texto, é possível dizer que nos tempos bíblicos houve fundamentalmente três tipos de economia, ou seja, três modos de produção, denominados de tribal, tributário e escravista (PIXLEY, 1989;BRIGHT, 1980) . Em ordem linear é necessária uma descrição objetiva dos primeiros a fim de observarmos sinóticamente as diferenças entre eles e posteriormente uma análise mais detalhada do modo de produção escravista. Isso implica em dizer que a construção da literatura bíblica está indelevelmente marcada pelo tipo de economia e de sociedade em que as pessoas viviam.
O modo de produção tribal pode ser entendido como uma economia de partilha. Há troca de serviços e não há comercialização de produtos (DREHER:1992). Tudo é visto em função do bem comum. Valoriza-se o coletivo. A terra é percebida como de propriedade comum, impedindo assim o título de propriedade privada. A apropriação do produto se dá em base igualitária. Intercâmbios comerciais são quase inexistentes. Não se apresenta ainda uma estrutura de classe (HOUTART:1982). Na produção do campo quando há excedentes, são revertidos em favor do povo. É um modo de produção próprio ao campo. A terra na sociedade camponesa, as pastagens e os rebanhos na sociedade pastoril, são propriedades do clã ou da tribo. A única condição para o uso dos meios de produção e para o acesso ao produção social é que se pertença à comunidade.
O modo de produção tributário é baseado fundamentalmente em impostos e tributos (HOUTART:1982). Nesse sentido a sociedade passava a apresentar contradições cada vez mais intensas. Uma sociedade dividida que estava sob o controle de uma elite dominante. A economia, nesse tipo de sociedade, era dominada pelos reis, pelos dignatários da corte, pelos chefes do exército, os chefes-sacerdotes do templo, os grandes comerciantes e ainda os grandes proprietários de terra. O exercício da política e da economia acontecia a partir da cidade com o apoio irrestrito de duas instituições fundamentais: o exército e o templo. Numa sociedade de economia tributária o imposto poderia ser pago de várias maneiras, a saber: em produtos, em moeda ou ainda em dias de trabalhos forçados.
No tributarismo a organização do trabalho continua em sua forma coletiva, como também é coletiva a propriedade real dos meios de produção (DREHER:2002). A diferença essencial está no fato de existir uma minoria dominante que se apropria do excedente de produção. Originalmente, esta minoria pertencia a um grupo de pessoas destacadas na sociedade para a realização de trabalhos de ordem econômico, religioso ou militar. Como essas atividades ultrapassam as atividades precípuas do clã ou da tribo, cria-se uma relação de contrato, no qual o clã ou a tribo se dispõe a garantir o sustento desta minoria, fornecendo-lhe parte de seu excedente de produção.
Segundo Maurice Godelier
as vantagens particulares de que se beneficia esta minoria, a título dos serviços prestados às comunidades, transformam-se em obrigações sem oposição, ou seja, exploração. Constantemente, as comunidades sofrem a expropriação do solo, que se converte em propriedade do rei, personificação da comunidade superior. Há, pois, a exploração do homem, o aparecimento de uma classe exploradora, sem que exista propriedade privada da terra.
A expropriação do excedente da maioria produtora pela minoria dominante acontece sob a forma do tributo. Contudo, essa relação somente adquire ares de legitimidade pela relação de contrato existente entre os dois grupos e pode perfeitamente ser considerado ilegítimo pela classe produtora, quando o poder exercido pela minoria não lhe parece mais preencher sua função e/ou cobrança do tributo passa a ser vista como arbitrária.
Trata-se, portanto, de uma relação entre uma entidade superior, que exerce o controle econômico do conjunto por meio da arrecadação de um tributo, e unidades locais, que conservam uma ampla autonomia em virtude da posse do meio de produção e do controle sobre a organização do trabalho.
Nesse modo de produção os camponeses continuam organizando livremente a produção. A cidade não controla a força de trabalho nem os meios de produção de modo direto. O controle da economia acontece através da arrecadação do tributo (DREHER: 2002).
Deve-se salientar que o não pagamento dos impostos aumentava o endividamento dos camponeses, chegando às vezes até a escravidão (PIXLEY:1989). Se o interesse primeiro era a arrecadação de impostos, essa situação se intensificou a partir do domínio de potências estrangeiras (assírios, babilônios, persas, gregos e romanos) na região do mundo bíblico, multiplicando os impostos. A bi-tributação esgarçava ainda mais o já corroído tecido social da sociedade camponesa.
A questão do Modo de Produção Escravista só transparece em alguns escritos tardios da literatura do Antigo Testamento (DONNER:1997). A razão pode ser creditada ao fato de que apenas a partir das dominações grega e romana o mundo bíblico teve contato com o escravismo propriamente dito. Mas devemos tomar cuidado para não afirmar que o mundo bíblico não tenha conhecido a escravidão. Pode-se dizer que a conheceu e até em grande escala. Porém, não a conheceu como Modo de Produção.
Modo de Produção é um conceito teórico, assim definido por HOUTART (1982): uma representação simplificada, ideal, de diversas formas de organização social, ou seja, da natureza dos elementos que as compõem, de suas relações e das bases estruturais de sua própria transformação. É um modelo que serve de instrumento de análise e de interpretação de uma determinada realidade social (GEBRAN, 1978). Este modelo parte do pressuposto de que a forma assumida por uma determinada sociedade sempre depende da maneira pela qual é organizada a sua vida material. Como diz o nome, um determinado modo de organizar a produção da vida material vai levar esta sociedade a assumir uma determinada forma de organização social, político-jurídica, além de uma ideologia que explica, às vezes questiona e representa a realidade que se vive. As estruturas político-jurídica e ideológica sempre serão determinadas pela estrutura econômica, isto é, pelo modo de organizar a produção da vida material. Nem sempre a base econômica tem o papel dominante num determinado Modo de Produção. Muitas vezes as outras estruturas terão esse papel. Mas será sempre a economia que determinará o Modo de produção. Só teremos um novo Modo de Produção à medida que a maneira de organizar a produção da vida material se alterar (FIORAVANTE:1978).
Em função disso, para perceber um Modo de Produção é preciso estar atento para os três elementos-fatores da base econômica (HOUTART:1982): 1) o trabalhador, que é o produtor direto ou força de trabalho; 2) os meios de produção, que são os objetos e meios de trabalho; 3) o não-trabalhador, que não intervém na produção direta, mas que se apropria do produto. Destes três fatores e de sua articulação irá depender toda a organização social, política e ideológica de uma determinada sociedade.
É importante salientar que Modo de Produção é um conceito hipotético. Não existe em seu estado puro. Diferente é o que chamamos de Formação Social. Este conceito indica uma sociedade historicamente determinada. Numa Formação Social podem existir, de maneira combinada, diferentes modos de produção. Um deles, porém, será determinante. Em outras palavras: numa Formação Social sempre haverá um Modo de Produção que se imporá ao conjunto, caracterizando o todo social (ANDERSON:1988; GEBRAN:1978).
A simples existência de escravos numa sociedade ainda não significa que possamos falar de um Modo de Produção Escravista. Também as sociedades tribais e tributárias conheceram a escravatura. Porém com um diferencial: a prática da escravidão nessas sociedades não alterava a sua estrutura econômica. O modo de organizar a sua produção da vida material não dependia da existência de escravos. O modo de produção dominante na Grécia clássica, que regia a complexa articulação de cada economia local e dava o seu cunho a toda a civilização da cidade-estado, era o escravista. O conjunto do mundo antigo nunca foi marcado pelo predomínio de trabalho escravo.
Quando, porém, escravos – ou seja, pessoas transformadas em propriedade jurídica de alguém – passam a ser utilizados sistematicamente na produção, permitindo que surja uma classe de homens livres que não trabalham e têm sua subsistência garantida pelo trabalho daquelas pessoas reduzidas a instrumentos e meio de produção, então podemos falar de escravismo ou de um Modo de Produção Escravista (HINDESS & HIRST:1976). Decisivo é que a sociedade escravista não subsiste sem a existência de escravos. Toda a economia, a organização do trabalho, e a própria existência daquela classe de homens livres dependem de sua base, ou seja, do trabalho escravo.
Contudo, para que a economia possa ser organizada sobre o trabalho escravo, há que contar com outros dois fatores anteriores. O primeiro deles é o surgimento da propriedade privada da terra (DREHER:2002). É desta propriedade privada que os cidadãos livres irão extrair o excedente que lhes permitirá concentrar terras além do que lhes seja possível cultivar em regime familiar. Esta concentração exigirá, então, a existência de uma mão de obra permanente e extrafamiliar que permita aos cidadãos livres usufruir do produto, sem participar da produção. Esta mão de obra será encontrada no escravo.
Ao mesmo tempo deve haver uma economia mercantil suficientemente desenvolvida. Escravos são mercadoria que se pode adquirir. Mesmo que isso ainda não ocorra em bases monetárias, há que contar com outra mercadoria que permita comprar escravos, ou seja, a produção do campo, basicamente.
Estes dois fatores fazem com que, em decorrência da inexistência de um suprimento interno de mão de obra dependente, se passe a buscar escravos fora. A guerra e a caça de pessoas irão propiciar, então, uma maior oferta dessa mercadoria tão ambicionada, em vista das novas necessidades na produção. De acordo com VENDRAME (1981) “o prisioneiro de guerra, uma vez caído na mão do inimigo, tornava-se coisa dele e podia ser utilizado da maneira que o vencedor achasse mais conveniente para si”. Seria, pois correto afirmar que em etimologias do antigo Oriente Médio, o termo que designa o escravo deriva da mesma raiz do termo que designa o estrangeiro. O que leva a concluir num primeiro momento que os primeiros escravos não pertenciam ao mesmo país de seus donos, mas eram estrangeiros capturados no calor da guerra. Quanto maior for o número de escravos, tanto maior será a produção, a concentração de terras devolutas e a própria atividade mercantil.
Como Modo de Produção dominante, escravismo existiu, no mundo antigo, apenas na Grécia, a partir do final do século V aC e início do século IV dC. Na antiguidade grega a escravidão era praticada primariamente pelo Estado, freqüentemente em atos de conquista e reconquista imperial. Depois das conquistas de Alexandre, juntamente com o luxo aumentaram as prestações dos escravos, exigindo um número sempre maior deles. É sobretudo a partir do IV século que o número de escravos aumentou enormemente. Segundo dados recolhidos em VENDRAME (1981), calcula-se que “em Atenas, para 20.000 cidadãos, houvesse 10.000 metecos e 400.000 escravos. Em Corinto, os escravos eram cerca de 460.000”. O seu ponto alto foi atingido em Roma, entre os séculos III aC e III dC. Nesse o escravo está totalmente incorporado aos meios de produção, sendo compreendido como um tipo de instrumento que fala.
Os gregos introduzem uma nova economia, que precisava de escravos. Essa nova economia grega tem seu eixo fundamental no comércio. Para VENDRAME (1981), a maior fonte de escravos para a Grécia era o comércio regular, sobretudo com os países onde existiam colônias gregas. A primeira coisa que o comércio precisa é da mercadoria, isto é, de produtos que não são produzidos para consumo próprio, mas que servem para a exportação. A promoção do comércio seria, portanto, um incremento à produção.
Se pensarmos numa flecha do tempo guiando os modos de produção relativos ao mundo bíblico, poderíamos perceber uma onda de progresso linear ao longo do tribal – tributário – escravista. Esclarecendo: pode-se dizer que somente no período da sedentarização que a escravidão assumiu proporções relevantes. As tribos nômades não podiam evidentemente levar consigo uma quantidade expressiva de escravos. Era muito mais fácil eliminá-los. Nos tempos antigos o crescimento do fenômeno da escravatura andava paralelo ao progresso dos países. Com o advento do comércio, com a criação de cidades, a construção de palácios, a abertura de estradas e a fabricação de navios, os escravos aumentam aos milhares e vêem sua sorte comprometida pelo progresso inexorável da flecha do tempo.
O modo de produção escravista pode ser considerado um tipo de economia que reduz tudo a mercadoria. Tudo passa a ser visto sob a ótica do que pode ser comercializado. Assim, as pessoas são reduzidas a objetos de mercado. São compradas e vendidas como qualquer outra mercadoria. Pode-se dizer que os escravos valem pelo corpo que têm e pela capacidade de produção. A escravidão se torna a base da economia. De acordo com ANDERSON (1988) o trabalho escravo da antiguidade clássica incorporava dois atributos contraditórios, que poderiam ser assim descritos: 1) a escravatura representava a mais radical degradação do trabalho rural imaginável. Essa situação indicaria a conversão dos próprios homens em meios de produção inertes através de sua privação de todos os direitos sociais e da sua assimilação jurídica a besta de carga; 2) a escravatura era simultaneamente a mais drástica comercialização urbana do trabalho que se possa conceber, ou seja, a redução da pessoa total do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda nos mercados metropolitanos de troca de mercadorias.
Comparativamente a exploração é mais forte no modo de produção escravista do que no modo de produção tributário. Afinal, não se exploram apenas os produtos, mas também os que trabalham, transformando-os em meras mercadorias. Conseqüentemente, as pessoas perdem o seu valor, sua subjetividade e sua identidade própria. Vivem numa crescente instabilidade e insegurança não sendo mais sujeitos de si mesmos. Um modo de produção onde as relações sociais encontram-se pervertidas. Segundo HORSLEY (1998) os escravos eram pessoal socialmente mortas e isoladas da herança social de seus antepassados.
O aumento da produção, por sua vez, exige o aumento do trabalho. Na cultura grega o trabalho é coisa dos escravos. O homem livre não trabalha ou então trabalha o mínimo possível. Cabem-lhes ações mais nobres como o cultivo do saber (filosofia), da beleza (arte), do lazer (esporte), etc. Temos a impressão de que a nova economia introduzida pelos gregos precisava de escravos e a guerra seria um dos instrumentos privilegiados para aumentar o número deles.
Neste Modo de Produção, ser escravo significa ser propriedade jurídica de outra pessoa. O escravo é mercadoria e, como tal, objeto. É obrigado a trabalhar para seu dono, produzindo riqueza e prestando serviços gerais. Trabalha tanto no campo, nas minas (onde se movimentavam legiões de escravos – VENDRAME, 29) - e no artesanato quanto nas atividades domésticas. Economicamente o escravo é, ao mesmo tempo, produtor direto e meio de produção, uma vez que, como propriedade de outro, passa a ser visto como instrumento de trabalho. Do trabalho que realiza, cabe-lhe como parte apenas o mínimo necessário para reproduzir a sua força de trabalho. Para HINDESS & HIRST (1976) a posse efetiva do escravo como propriedade, onde o processo de trabalho se baseia na escravidão, a posse efetiva dos escravos pressupõe a possibilidade de aplicação de sua força de trabalho a alguma atividade definida.
O impacto desse modo de produção sobre o mundo bíblico é inigualável. Não há como negar que sempre houve escravos ao longo da história da humanidade, mas a escravidão como base da economia e da sociedade é produto da cultura greco-romana (ANDERSON:1988). Desenvolveu-se a partir do domínio grego à época de Alexandre. O avanço da cultura escravista da sociedade abalou sensivelmente a vida do povo da Bíblia, tão ligado às tradições clânico-familiares, deixando-o como estrangeiro em sua própria terra. O abalo na sociedade é tão sensível que entre 167-142 aC encontramos aquilo que é denominado de insurreição macabaica, uma ousada tentativa de impedir o avanço da cultura grega e do escravismo, em detrimento das tradições clânicas (cfe 1 Macabeus 2.19-28). A linguagem religiosa do texto bíblico julga negativamente a dominação grega, afirmando: “Eles multiplicaram os males sobre a terra” (1 Macabeus 1.9).
A insurreição macabaica irrompeu na zona rural, conduzida pelo sacerdote Matatias e seus filhos (GOTTWALD:1988). Pode-se dizer que em Matatias está representada a consciência nacional, que não se conforma com a opressão e anseia pela liberdade (GALAZZI:s/d). A guerra civil e religiosa dividia o país. Judas, terceiro filho de Matatias – morto em 166 a.C., - foi o sucessor natural de seu pai como líder do movimento revolucionário. Ele é descrito como um “valente guerreiro desde a sua juventude” (1 Macabeus 2.66) e semelhante a um “leão em seus objetivos” (3.4). A ele foi dado o apelido de Macabeu, cujo significado é “martelo” ou ainda “cabeça de martelo”, tomado, sem dúvida, de sua bravura militar. Embora este nome se aplique estritamente ao próprio Judas, ele é geralmente usado também como referência aos seus irmãos que continuaram a revolta macabaica.
Têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judéia e a conseqüente resistência macabéia. Contudo, a lógica que parecia estar imperando naquela época era a da economia. Afinal, parece que os conflitos com os macabeus não têm objetivos tão somente religiosos. Contudo, esse conflito será transmitido a partir da simbologia religiosa que tentará exprimir os interesses igualitários dos camponeses (KIPPENBERG:1988). Os macabeus, líderes da resistência judaica, saem em defesa da manutenção dos laços de parentesco e da solidariedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém. Essas relações de parentesco podem ser assim descritas (KIPPENBERG: 1988): a) a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família; b) a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles; c) a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco.
Pode-se dizer, então, que há motivos econômicos para o conflito que o processo desencadeia (KIPPENBERG, 1988). O texto de 1 Macabeus 10.29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma idéia dos tributos recolhidos pelos selêucidas na Judéia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos, do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e á metade dos frutos das árvores, que me cabiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-lo à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galiléia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém será considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.
É também significativo que a primeira notícia a respeito da gênese do conflito com o helenismo aponte uma razão de ordem econômica. É o que lemos em 2 Macabeus 3.4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”. Nesse sentido, pode-se adiantar, que a pressão que a aristocracia exercia sempre mais em direção à helenização total da Judéia, tinha como objetivo claro quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança com Deus.
Economia e comércio caminhavam pari passu. No começo de 167 a.C., Antíoco IV envia a Jerusalém um determinado Apolônio, comandante das tropas mísias, com forte contingente militar. A ação é devastadora: assassinatos em massa e escravidão. As muralhas da cidade são destruída e edifica-se uma poderosa fortaleza militar em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra = cidadela. Esta cidadela funcionava como sede de uma guarnição e estava encostada no Templo. Durante aproximadamente 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, verdadeiro espinho atravessado na garganta dos judeus,
Dois textos bíblicos ajudam a compreender essa situação. 2 Macabeus 5.23b-24 retrata a intervenção de Apolônio como segue: “Nutrindo para com os súditos judeus uma disposição de ânimo profundamente hostil, o rei enviou o misarca Apolônio á frente de um exército de vinte e dois mil homens, com a ordem de trucidar todos os que estavam na força da idade e de vender as mulheres e os mais jovens”. A pilhagem, o tributo e os escravos seriam, na opinião de ANDERSON (1988), os objetos centrais de engrandecimento da expansão colonial. Nesse sentido, o poder militar estava mais estreitamente ligado ao crescimento econômico do que talvez qualquer outro modo de produção. E ainda em 1 Macabeus 1.33-35 encontramos a descrição da construção da Acra: “Então reconstruíram a cidade de Davi, dotando-a de grande e sólida muralha e torres fortificadas, e dela fizeram a sua Cidadela. Povoaram-na de gente ímpia, homens perversos, e nela se fortificaram. Abasteceram-na de armas e víveres e nela depositaram os despojos tomados em Jerusalém, tornando-se eles assim uma armadilha enorme”.
Definido desta maneira, o escravismo, enquanto Modo de Produção, a partir do domínio grego sobre a Palestina (333 aC em diante), irradiará sua influência nas relações de ordem social, econômica, política e cultural.
Referência Bibliográfica
ANDERSON, P. “O Modo de Produção Escravista” In: Modos de Produção na Antiguidade. São Paulo: Global Editora, 1988.
BRIGHT, J. História de Israel. São Paulo: Paulus, 1980.
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DREHER, C. A constituição dos exércitos no reino de Israel. São Paulo: Paulus, 2002.
DREHER, C. Modos de Produção Pré-capitalistas. São Leopoldo: CEBI, 1992.
FIORAVANTE, E. “Modo de Produção, Formação Social e Processo de Trabalho” In: Conceitos de Modo de Produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
GEBRAN, P. (org) Conceito de Modo de Produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
GODELIER, M. Hipóteses sobre a natureza e as leis de evolução do modo de produção asiático. In Conceito de Modo de Produção. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1978.
GOTTWALD, N. Introdução Sócioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulinas, 1986.
HENGEL, M. Judaism and Hellenism. Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I. London: SCM Press, 1981.
HINDESS, B. & HIRST, P. Modos de Produção Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Zahar Editoers, 1976.
HORSLEY, R.A. “The Slave Systems of Classical Antiquity and Their Reluctant Recognition by Modern Scholars” in SEMEIA 83/84. Madison: Society of Biblical Literature, 1998.
HOUTART, F. Religião e Modos de Produção Pré-Capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982.
JOSEFO, F. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 1992.
KIPPENBERG, H.G. Religião e formação de classes na antiga Judéia. São Paulo: Paulinas, 1988.
MOSCONI, L. Para uma leitura fiel da Bíblia. Loyola: São Paulo, 1996.
OTZEN, B. O judaísmo na antiguidade. São Paulo: Paulinas, 2003.
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PIXLEY, J. A história de Israel a partir dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1989.
RUSSEL, D.S. The Jews from Alexander to Herod. Glasgow: Oxford University Press, 1967
SAULNIER, C. A revolta dos Macabeus. São Paulo: Paulus, 1987.
VENDRAME, C. A escravidão na Bíblia. Ática: São Paulo, 1981.
* O professor Luiz Alexandre Solano Rossi, bolsista de Pós-Doutoramento do CNPq, atua em programa de Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari, no Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP, com apoio, também, do Centro de Pensamento Antigo da UNICAMP.
Revista Mirabilia
Deve-se levar em conta na análise do mundo bíblico que sua literatura foi construída a partir de relações de ordem social, econômica, política e cultural (GOTTWALD, 1988). Assim sendo, a fim de circunscrever o presente texto, é possível dizer que nos tempos bíblicos houve fundamentalmente três tipos de economia, ou seja, três modos de produção, denominados de tribal, tributário e escravista (PIXLEY, 1989;BRIGHT, 1980) . Em ordem linear é necessária uma descrição objetiva dos primeiros a fim de observarmos sinóticamente as diferenças entre eles e posteriormente uma análise mais detalhada do modo de produção escravista. Isso implica em dizer que a construção da literatura bíblica está indelevelmente marcada pelo tipo de economia e de sociedade em que as pessoas viviam.
O modo de produção tribal pode ser entendido como uma economia de partilha. Há troca de serviços e não há comercialização de produtos (DREHER:1992). Tudo é visto em função do bem comum. Valoriza-se o coletivo. A terra é percebida como de propriedade comum, impedindo assim o título de propriedade privada. A apropriação do produto se dá em base igualitária. Intercâmbios comerciais são quase inexistentes. Não se apresenta ainda uma estrutura de classe (HOUTART:1982). Na produção do campo quando há excedentes, são revertidos em favor do povo. É um modo de produção próprio ao campo. A terra na sociedade camponesa, as pastagens e os rebanhos na sociedade pastoril, são propriedades do clã ou da tribo. A única condição para o uso dos meios de produção e para o acesso ao produção social é que se pertença à comunidade.
O modo de produção tributário é baseado fundamentalmente em impostos e tributos (HOUTART:1982). Nesse sentido a sociedade passava a apresentar contradições cada vez mais intensas. Uma sociedade dividida que estava sob o controle de uma elite dominante. A economia, nesse tipo de sociedade, era dominada pelos reis, pelos dignatários da corte, pelos chefes do exército, os chefes-sacerdotes do templo, os grandes comerciantes e ainda os grandes proprietários de terra. O exercício da política e da economia acontecia a partir da cidade com o apoio irrestrito de duas instituições fundamentais: o exército e o templo. Numa sociedade de economia tributária o imposto poderia ser pago de várias maneiras, a saber: em produtos, em moeda ou ainda em dias de trabalhos forçados.
No tributarismo a organização do trabalho continua em sua forma coletiva, como também é coletiva a propriedade real dos meios de produção (DREHER:2002). A diferença essencial está no fato de existir uma minoria dominante que se apropria do excedente de produção. Originalmente, esta minoria pertencia a um grupo de pessoas destacadas na sociedade para a realização de trabalhos de ordem econômico, religioso ou militar. Como essas atividades ultrapassam as atividades precípuas do clã ou da tribo, cria-se uma relação de contrato, no qual o clã ou a tribo se dispõe a garantir o sustento desta minoria, fornecendo-lhe parte de seu excedente de produção.
Segundo Maurice Godelier
as vantagens particulares de que se beneficia esta minoria, a título dos serviços prestados às comunidades, transformam-se em obrigações sem oposição, ou seja, exploração. Constantemente, as comunidades sofrem a expropriação do solo, que se converte em propriedade do rei, personificação da comunidade superior. Há, pois, a exploração do homem, o aparecimento de uma classe exploradora, sem que exista propriedade privada da terra.
A expropriação do excedente da maioria produtora pela minoria dominante acontece sob a forma do tributo. Contudo, essa relação somente adquire ares de legitimidade pela relação de contrato existente entre os dois grupos e pode perfeitamente ser considerado ilegítimo pela classe produtora, quando o poder exercido pela minoria não lhe parece mais preencher sua função e/ou cobrança do tributo passa a ser vista como arbitrária.
Trata-se, portanto, de uma relação entre uma entidade superior, que exerce o controle econômico do conjunto por meio da arrecadação de um tributo, e unidades locais, que conservam uma ampla autonomia em virtude da posse do meio de produção e do controle sobre a organização do trabalho.
Nesse modo de produção os camponeses continuam organizando livremente a produção. A cidade não controla a força de trabalho nem os meios de produção de modo direto. O controle da economia acontece através da arrecadação do tributo (DREHER: 2002).
Deve-se salientar que o não pagamento dos impostos aumentava o endividamento dos camponeses, chegando às vezes até a escravidão (PIXLEY:1989). Se o interesse primeiro era a arrecadação de impostos, essa situação se intensificou a partir do domínio de potências estrangeiras (assírios, babilônios, persas, gregos e romanos) na região do mundo bíblico, multiplicando os impostos. A bi-tributação esgarçava ainda mais o já corroído tecido social da sociedade camponesa.
A questão do Modo de Produção Escravista só transparece em alguns escritos tardios da literatura do Antigo Testamento (DONNER:1997). A razão pode ser creditada ao fato de que apenas a partir das dominações grega e romana o mundo bíblico teve contato com o escravismo propriamente dito. Mas devemos tomar cuidado para não afirmar que o mundo bíblico não tenha conhecido a escravidão. Pode-se dizer que a conheceu e até em grande escala. Porém, não a conheceu como Modo de Produção.
Modo de Produção é um conceito teórico, assim definido por HOUTART (1982): uma representação simplificada, ideal, de diversas formas de organização social, ou seja, da natureza dos elementos que as compõem, de suas relações e das bases estruturais de sua própria transformação. É um modelo que serve de instrumento de análise e de interpretação de uma determinada realidade social (GEBRAN, 1978). Este modelo parte do pressuposto de que a forma assumida por uma determinada sociedade sempre depende da maneira pela qual é organizada a sua vida material. Como diz o nome, um determinado modo de organizar a produção da vida material vai levar esta sociedade a assumir uma determinada forma de organização social, político-jurídica, além de uma ideologia que explica, às vezes questiona e representa a realidade que se vive. As estruturas político-jurídica e ideológica sempre serão determinadas pela estrutura econômica, isto é, pelo modo de organizar a produção da vida material. Nem sempre a base econômica tem o papel dominante num determinado Modo de Produção. Muitas vezes as outras estruturas terão esse papel. Mas será sempre a economia que determinará o Modo de produção. Só teremos um novo Modo de Produção à medida que a maneira de organizar a produção da vida material se alterar (FIORAVANTE:1978).
Em função disso, para perceber um Modo de Produção é preciso estar atento para os três elementos-fatores da base econômica (HOUTART:1982): 1) o trabalhador, que é o produtor direto ou força de trabalho; 2) os meios de produção, que são os objetos e meios de trabalho; 3) o não-trabalhador, que não intervém na produção direta, mas que se apropria do produto. Destes três fatores e de sua articulação irá depender toda a organização social, política e ideológica de uma determinada sociedade.
É importante salientar que Modo de Produção é um conceito hipotético. Não existe em seu estado puro. Diferente é o que chamamos de Formação Social. Este conceito indica uma sociedade historicamente determinada. Numa Formação Social podem existir, de maneira combinada, diferentes modos de produção. Um deles, porém, será determinante. Em outras palavras: numa Formação Social sempre haverá um Modo de Produção que se imporá ao conjunto, caracterizando o todo social (ANDERSON:1988; GEBRAN:1978).
A simples existência de escravos numa sociedade ainda não significa que possamos falar de um Modo de Produção Escravista. Também as sociedades tribais e tributárias conheceram a escravatura. Porém com um diferencial: a prática da escravidão nessas sociedades não alterava a sua estrutura econômica. O modo de organizar a sua produção da vida material não dependia da existência de escravos. O modo de produção dominante na Grécia clássica, que regia a complexa articulação de cada economia local e dava o seu cunho a toda a civilização da cidade-estado, era o escravista. O conjunto do mundo antigo nunca foi marcado pelo predomínio de trabalho escravo.
Quando, porém, escravos – ou seja, pessoas transformadas em propriedade jurídica de alguém – passam a ser utilizados sistematicamente na produção, permitindo que surja uma classe de homens livres que não trabalham e têm sua subsistência garantida pelo trabalho daquelas pessoas reduzidas a instrumentos e meio de produção, então podemos falar de escravismo ou de um Modo de Produção Escravista (HINDESS & HIRST:1976). Decisivo é que a sociedade escravista não subsiste sem a existência de escravos. Toda a economia, a organização do trabalho, e a própria existência daquela classe de homens livres dependem de sua base, ou seja, do trabalho escravo.
Contudo, para que a economia possa ser organizada sobre o trabalho escravo, há que contar com outros dois fatores anteriores. O primeiro deles é o surgimento da propriedade privada da terra (DREHER:2002). É desta propriedade privada que os cidadãos livres irão extrair o excedente que lhes permitirá concentrar terras além do que lhes seja possível cultivar em regime familiar. Esta concentração exigirá, então, a existência de uma mão de obra permanente e extrafamiliar que permita aos cidadãos livres usufruir do produto, sem participar da produção. Esta mão de obra será encontrada no escravo.
Ao mesmo tempo deve haver uma economia mercantil suficientemente desenvolvida. Escravos são mercadoria que se pode adquirir. Mesmo que isso ainda não ocorra em bases monetárias, há que contar com outra mercadoria que permita comprar escravos, ou seja, a produção do campo, basicamente.
Estes dois fatores fazem com que, em decorrência da inexistência de um suprimento interno de mão de obra dependente, se passe a buscar escravos fora. A guerra e a caça de pessoas irão propiciar, então, uma maior oferta dessa mercadoria tão ambicionada, em vista das novas necessidades na produção. De acordo com VENDRAME (1981) “o prisioneiro de guerra, uma vez caído na mão do inimigo, tornava-se coisa dele e podia ser utilizado da maneira que o vencedor achasse mais conveniente para si”. Seria, pois correto afirmar que em etimologias do antigo Oriente Médio, o termo que designa o escravo deriva da mesma raiz do termo que designa o estrangeiro. O que leva a concluir num primeiro momento que os primeiros escravos não pertenciam ao mesmo país de seus donos, mas eram estrangeiros capturados no calor da guerra. Quanto maior for o número de escravos, tanto maior será a produção, a concentração de terras devolutas e a própria atividade mercantil.
Como Modo de Produção dominante, escravismo existiu, no mundo antigo, apenas na Grécia, a partir do final do século V aC e início do século IV dC. Na antiguidade grega a escravidão era praticada primariamente pelo Estado, freqüentemente em atos de conquista e reconquista imperial. Depois das conquistas de Alexandre, juntamente com o luxo aumentaram as prestações dos escravos, exigindo um número sempre maior deles. É sobretudo a partir do IV século que o número de escravos aumentou enormemente. Segundo dados recolhidos em VENDRAME (1981), calcula-se que “em Atenas, para 20.000 cidadãos, houvesse 10.000 metecos e 400.000 escravos. Em Corinto, os escravos eram cerca de 460.000”. O seu ponto alto foi atingido em Roma, entre os séculos III aC e III dC. Nesse o escravo está totalmente incorporado aos meios de produção, sendo compreendido como um tipo de instrumento que fala.
Os gregos introduzem uma nova economia, que precisava de escravos. Essa nova economia grega tem seu eixo fundamental no comércio. Para VENDRAME (1981), a maior fonte de escravos para a Grécia era o comércio regular, sobretudo com os países onde existiam colônias gregas. A primeira coisa que o comércio precisa é da mercadoria, isto é, de produtos que não são produzidos para consumo próprio, mas que servem para a exportação. A promoção do comércio seria, portanto, um incremento à produção.
Se pensarmos numa flecha do tempo guiando os modos de produção relativos ao mundo bíblico, poderíamos perceber uma onda de progresso linear ao longo do tribal – tributário – escravista. Esclarecendo: pode-se dizer que somente no período da sedentarização que a escravidão assumiu proporções relevantes. As tribos nômades não podiam evidentemente levar consigo uma quantidade expressiva de escravos. Era muito mais fácil eliminá-los. Nos tempos antigos o crescimento do fenômeno da escravatura andava paralelo ao progresso dos países. Com o advento do comércio, com a criação de cidades, a construção de palácios, a abertura de estradas e a fabricação de navios, os escravos aumentam aos milhares e vêem sua sorte comprometida pelo progresso inexorável da flecha do tempo.
O modo de produção escravista pode ser considerado um tipo de economia que reduz tudo a mercadoria. Tudo passa a ser visto sob a ótica do que pode ser comercializado. Assim, as pessoas são reduzidas a objetos de mercado. São compradas e vendidas como qualquer outra mercadoria. Pode-se dizer que os escravos valem pelo corpo que têm e pela capacidade de produção. A escravidão se torna a base da economia. De acordo com ANDERSON (1988) o trabalho escravo da antiguidade clássica incorporava dois atributos contraditórios, que poderiam ser assim descritos: 1) a escravatura representava a mais radical degradação do trabalho rural imaginável. Essa situação indicaria a conversão dos próprios homens em meios de produção inertes através de sua privação de todos os direitos sociais e da sua assimilação jurídica a besta de carga; 2) a escravatura era simultaneamente a mais drástica comercialização urbana do trabalho que se possa conceber, ou seja, a redução da pessoa total do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda nos mercados metropolitanos de troca de mercadorias.
Comparativamente a exploração é mais forte no modo de produção escravista do que no modo de produção tributário. Afinal, não se exploram apenas os produtos, mas também os que trabalham, transformando-os em meras mercadorias. Conseqüentemente, as pessoas perdem o seu valor, sua subjetividade e sua identidade própria. Vivem numa crescente instabilidade e insegurança não sendo mais sujeitos de si mesmos. Um modo de produção onde as relações sociais encontram-se pervertidas. Segundo HORSLEY (1998) os escravos eram pessoal socialmente mortas e isoladas da herança social de seus antepassados.
O aumento da produção, por sua vez, exige o aumento do trabalho. Na cultura grega o trabalho é coisa dos escravos. O homem livre não trabalha ou então trabalha o mínimo possível. Cabem-lhes ações mais nobres como o cultivo do saber (filosofia), da beleza (arte), do lazer (esporte), etc. Temos a impressão de que a nova economia introduzida pelos gregos precisava de escravos e a guerra seria um dos instrumentos privilegiados para aumentar o número deles.
Neste Modo de Produção, ser escravo significa ser propriedade jurídica de outra pessoa. O escravo é mercadoria e, como tal, objeto. É obrigado a trabalhar para seu dono, produzindo riqueza e prestando serviços gerais. Trabalha tanto no campo, nas minas (onde se movimentavam legiões de escravos – VENDRAME, 29) - e no artesanato quanto nas atividades domésticas. Economicamente o escravo é, ao mesmo tempo, produtor direto e meio de produção, uma vez que, como propriedade de outro, passa a ser visto como instrumento de trabalho. Do trabalho que realiza, cabe-lhe como parte apenas o mínimo necessário para reproduzir a sua força de trabalho. Para HINDESS & HIRST (1976) a posse efetiva do escravo como propriedade, onde o processo de trabalho se baseia na escravidão, a posse efetiva dos escravos pressupõe a possibilidade de aplicação de sua força de trabalho a alguma atividade definida.
O impacto desse modo de produção sobre o mundo bíblico é inigualável. Não há como negar que sempre houve escravos ao longo da história da humanidade, mas a escravidão como base da economia e da sociedade é produto da cultura greco-romana (ANDERSON:1988). Desenvolveu-se a partir do domínio grego à época de Alexandre. O avanço da cultura escravista da sociedade abalou sensivelmente a vida do povo da Bíblia, tão ligado às tradições clânico-familiares, deixando-o como estrangeiro em sua própria terra. O abalo na sociedade é tão sensível que entre 167-142 aC encontramos aquilo que é denominado de insurreição macabaica, uma ousada tentativa de impedir o avanço da cultura grega e do escravismo, em detrimento das tradições clânicas (cfe 1 Macabeus 2.19-28). A linguagem religiosa do texto bíblico julga negativamente a dominação grega, afirmando: “Eles multiplicaram os males sobre a terra” (1 Macabeus 1.9).
A insurreição macabaica irrompeu na zona rural, conduzida pelo sacerdote Matatias e seus filhos (GOTTWALD:1988). Pode-se dizer que em Matatias está representada a consciência nacional, que não se conforma com a opressão e anseia pela liberdade (GALAZZI:s/d). A guerra civil e religiosa dividia o país. Judas, terceiro filho de Matatias – morto em 166 a.C., - foi o sucessor natural de seu pai como líder do movimento revolucionário. Ele é descrito como um “valente guerreiro desde a sua juventude” (1 Macabeus 2.66) e semelhante a um “leão em seus objetivos” (3.4). A ele foi dado o apelido de Macabeu, cujo significado é “martelo” ou ainda “cabeça de martelo”, tomado, sem dúvida, de sua bravura militar. Embora este nome se aplique estritamente ao próprio Judas, ele é geralmente usado também como referência aos seus irmãos que continuaram a revolta macabaica.
Têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judéia e a conseqüente resistência macabéia. Contudo, a lógica que parecia estar imperando naquela época era a da economia. Afinal, parece que os conflitos com os macabeus não têm objetivos tão somente religiosos. Contudo, esse conflito será transmitido a partir da simbologia religiosa que tentará exprimir os interesses igualitários dos camponeses (KIPPENBERG:1988). Os macabeus, líderes da resistência judaica, saem em defesa da manutenção dos laços de parentesco e da solidariedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém. Essas relações de parentesco podem ser assim descritas (KIPPENBERG: 1988): a) a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família; b) a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles; c) a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco.
Pode-se dizer, então, que há motivos econômicos para o conflito que o processo desencadeia (KIPPENBERG, 1988). O texto de 1 Macabeus 10.29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma idéia dos tributos recolhidos pelos selêucidas na Judéia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos, do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e á metade dos frutos das árvores, que me cabiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-lo à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galiléia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém será considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.
É também significativo que a primeira notícia a respeito da gênese do conflito com o helenismo aponte uma razão de ordem econômica. É o que lemos em 2 Macabeus 3.4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”. Nesse sentido, pode-se adiantar, que a pressão que a aristocracia exercia sempre mais em direção à helenização total da Judéia, tinha como objetivo claro quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança com Deus.
Economia e comércio caminhavam pari passu. No começo de 167 a.C., Antíoco IV envia a Jerusalém um determinado Apolônio, comandante das tropas mísias, com forte contingente militar. A ação é devastadora: assassinatos em massa e escravidão. As muralhas da cidade são destruída e edifica-se uma poderosa fortaleza militar em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra = cidadela. Esta cidadela funcionava como sede de uma guarnição e estava encostada no Templo. Durante aproximadamente 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, verdadeiro espinho atravessado na garganta dos judeus,
Dois textos bíblicos ajudam a compreender essa situação. 2 Macabeus 5.23b-24 retrata a intervenção de Apolônio como segue: “Nutrindo para com os súditos judeus uma disposição de ânimo profundamente hostil, o rei enviou o misarca Apolônio á frente de um exército de vinte e dois mil homens, com a ordem de trucidar todos os que estavam na força da idade e de vender as mulheres e os mais jovens”. A pilhagem, o tributo e os escravos seriam, na opinião de ANDERSON (1988), os objetos centrais de engrandecimento da expansão colonial. Nesse sentido, o poder militar estava mais estreitamente ligado ao crescimento econômico do que talvez qualquer outro modo de produção. E ainda em 1 Macabeus 1.33-35 encontramos a descrição da construção da Acra: “Então reconstruíram a cidade de Davi, dotando-a de grande e sólida muralha e torres fortificadas, e dela fizeram a sua Cidadela. Povoaram-na de gente ímpia, homens perversos, e nela se fortificaram. Abasteceram-na de armas e víveres e nela depositaram os despojos tomados em Jerusalém, tornando-se eles assim uma armadilha enorme”.
Definido desta maneira, o escravismo, enquanto Modo de Produção, a partir do domínio grego sobre a Palestina (333 aC em diante), irradiará sua influência nas relações de ordem social, econômica, política e cultural.
Referência Bibliográfica
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* O professor Luiz Alexandre Solano Rossi, bolsista de Pós-Doutoramento do CNPq, atua em programa de Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari, no Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP, com apoio, também, do Centro de Pensamento Antigo da UNICAMP.
Revista Mirabilia
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