domingo, 31 de maio de 2009

Mécia, Matilde e Beatriz: Imagens Femininas Refletidas nas Rainhas de Portugal do Século XIII*

Adriana Zierer (UEMA)

Resumo
Apresentação da importância da mulher medieval através de crônicas portuguesas dos séculos XIV ao XVI sobre três rainhas: D. Mécia Lopes de Haro, D. Matilde de Bolonha e D. Beatriz. As crônicas de que nos valemos foram redigidas para tratar dos governos dos maridos destas damas, respectivamente Sancho II, rei deposto de Portugal em 1245 e seu irmão Afonso III, autor da deposição e monarca até 1279, ano de sua morte. Nas entrelinhas das crônicas podemos ver o papel dado à mulher. Enquanto Matilde e Beatriz representam a mulher-mercadoria, elemento da nobreza para garantir aos varões terras e títulos — motivo pelo qual Afonso III se casa pela segunda vez mesmo já sendo casado — Mécia exerce o papel da mulher-diaba, a Eva-pecadora, que graças aos "feitiços" e "maus conselhos" teria levado à deposição do marido.

Abstract
Presentation of the importance of medieval woman by the study of portuguese cronicles from the 14th to 16th centuries about three queens: Mecia Lopes of Haro, Matilde of Bologne and Beatriz. These cronicles had been written to explain the governation of the ladies’ husbands, respectively Sancho II, king deposed of Portugal in 1245 and his brother Afonso III, responsible for the deposition and king from 1248 until 1279, year of his death. It is possible to see a little of these women in the interlineation of the texts. While Matilde and Beatriz represent the woman-merchandize, as elements of the nobility to garantee to men properties and titles – reason by which Afonso III has got married for the second time when he was already married – Mécia represents the role of the devil-woman, the Eve-sinner, who thanks to her "whitchcrafts" and "bad advises" has taken his husband to be deposed from the power.

Mulheres Medievais
Sabemos pouco sobre as mulheres da Idade Média. Quase tudo o que lemos sobre elas nos foi deixado pelos homens e é através dos olhos deles, filtradas pelo o que pensavam é que as vislumbramos.

A visão da mulher medieval era muito influenciada pelo relato bíblico contido no Gênesis. Eva, a primeira pecadora e que levou toda a humanidade ao pecado era associada a todos os representantes do sexo feminino. Seu oposto e modelo ideal era Maria, mãe de Jesus, a qual engravidou virgem e foi escolhida para ser a mãe do Salvador e redentor da humanidade.

Dividia-se assim a imagem feminina entre esses dois modelos. De modo geral, a mulher, descrita pelos clérigos como ser fraco e inferior ao homem era vista com grande suspeita, pois a ela eram atribuídos como naturais diversos vícios: a mentira, a luxúria, os feitiços. Era considerada inferior por ter sido feita através da costela do homem e por isso deveria submeter-se a ele. Adão, neste caso teria assumido uma posição divina, aproximando-se de Cristo, pois através de seu corpo Deus deu origem a outro ser que, embora associado a Adão, deveria ser controlado por este. Adão representaria o princípio racional e Eva o princípio animal manifestado pela sensualidade e pelo desejo de igualar-se ao homem.

Para Santo Agostinho, a subordinação da mulher está ligada à criação, pois enquanto o homem foi feito por Deus da argila (Gen 2,7), a mulher veio do homem, através de sua costela. Segundo a Bíblia:

Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: ‘Esta, sim, é osso de meus ossos/ e carne de minha carne!/Ela será chamada ‘mulher’,/ porque foi tirada do homem. (Gen 2, 21-23).

Assim, a desigualdade na criação dos corpos havia garantido ao feminino a sujeição ao masculino. Houve no período medieval uma tendência a assimilar a mulher ao seu corpo; segundo se acreditava, ela era auxiliar do homem e inferior a ele; sua função seria a de procriar. Para Agostinho a harmonia do casal se dava com base na obediência ao marido e esta obediência existia desde o Éden. (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 141-142)

Santo Tomás de Aquino via o feminino como um macho imperfeito e incompleto. Acreditava que a mulher funcionava apenas como receptáculo na procriação, sendo somente o homem o agente ativo no momento da concepção, motivo pelo qual a mulher seria subordinada ao homem. Ele via a sujeição feminina como algo benéfico uma vez que o feminino estaria associado ao corpo, à carne e ao corruptível, ao passo que o masculino estava ligado ao conhecimento e à cultura (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 144)

Numa sociedade voltada para Deus e controlada ideologicamente pelo pensamento dos oratores, a mulher só poderia ter valor pela virgindade — e nesse caso estavam as santas e mártires. Quanto ao casamento, havia grandes controvérsias. Se este havia chegado à condição de sacramento e era defendido por uma parte dos religiosos, como santo Agostinho, outros o condenavam. Para São Jerônimo, justificando que poucos seriam aqueles capazes de levar uma vida casta, esta seria a melhor forma de se atingir a Deus, pois "o casamento enche a terra, a virgindade o paraíso"(Nuptiae terram replent, uirginitas paradisum) (BROOKE, 1989: 64).

Outros religiosos defendiam o casamento como forma de controle da mulher, essa Eva enrustida que habitava todo o ser feminino pela crença da época. Casada estava submetida ao marido e exercia como tarefa positiva à procriação. Enquanto era jovem a mulher era motivo de desconfiança e ao envelhecer era menos temida por perder os encantos que podiam "enfeitiçar" os homens.

A cupidez atribuída à mulher e sua tendência à luxúria e ao adultério nos é mostrada amplamente nas obras literárias como os fabliaux, narrativas de cunho cômico-satírico que mostram os truques femininos para trair o marido sem que ele percebesse. No fabliau Duas Tranças mesmo após a descoberta do adultério, a mulher consegue lograr o marido e convencê-lo de que este havia sonhado com a falta praticada (MACEDO, 2000: 187-221).

Por isso, esses seres misteriosos e temidos pelos homens deviam sofrer ampla vigilância e manter as suas mentes ocupadas. Se as camponesas eram obrigadas a uma vida penosa de trabalho doméstico e no campo, as nobres deveriam ser confinadas a um recinto determinado, o quarto, onde deveriam fiar, pois mantê-las no ócio poderia aumentar o seu desejo de pecar (DUBY, 1990: 90).

Por serem vistas como seres irresponsáveis, o marido poderia castigar a esposa como lhe aprouvesse para corrigir seus desvios, inclusive com a aprovação da legislação canônica, a qual aprovava a prática dos espancamentos (RICHARDS, 1993: 36, COUTINHO e COSTA, 2003). Os maridos tinham direito ainda de punir as adúlteras com a morte. Nos romances da época, é possível ver Isolda ou Guinevere conseguindo escapar desta penalidade por diversas atitudes.

Isolda, por ter sua reputação ameaçada e ser acusada de traição, seria julgada por um tribunal no qual estaria presente o rei Artur. A prova consistia em segurar um ferro em brasa. De acordo com o costume medieval do ordálio, se ela fosse inocente, não se queimaria. Assim, a adúltera convence o amante Tristão a vestir-se de leproso. O mesmo leproso a leva nas costas para que não se sujasse de lama no dia do seu julgamento, uma vez que nenhum nobre quis carregá-la. Na hora da prova, ela afirmou a seguinte artimanha: (...) juro que jamais homem algum entrou nas minhas coxas senão o rei Marcos, meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como um animal de carga." (Tristão e Isolda, 1982: 133). Assim, por falar uma meia-verdade, não se queimou com a brasa e foi declarada inocente pelos juízes.

Quanto a Guinevere (ou Genevra, na versão portuguesa), quando a traição cometida por ela e Lancelot é descoberta, o rei Artur e seus conselheiros decidem que sua pena seria queimar na fogueira. Mas a adúltera é salva pelo amante, que a resgata, iniciando-se uma guerra entre a Linhagem de Artur e a poderosa linhagem de Lancelot, a Linhagem de Bam. Lancelot vence o combate, a rainha é salva, e posteriormente, segundo a versão portuguesa contida em A Demanda do Santo Graal (1970, II: 449), o soberano é aconselhado por um bispo a aceitar a adúltera de volta. Como o rei não concorda, o bispo da Cantuária, parente da rainha, ameaça o reino de excomunhão e o rei acaba por obedecer ao religioso:

E acima perdera i el-rei todo, se o arcibispo de Contúrbe nom fôsse, que era parente da ra~ia, e escomungou todo o reino de Logres, porque el-rei nom queria tornar a sa molher; mas quando el-rei viu que a santa igreja o constrangia assi, filhou-a. (DSG, II: 449)

Os exemplos de Guinevere e Isolda, mulheres muito conhecidas na literatura medieval e ambas adúlteras, era mais um indício do pensamento da época de que nunca se deveria confiar no sexo feminino.

As mulheres valorizadas no medievo estão geralmente ligadas a algum homem. São vistas como a filha, irmã ou mulher de alguém importante e por isso as mulheres ricas têm por vezes a sua biografia narrada pelos cronistas (DUBY, 1989: 41-58). As biografadas casadas são consideradas como dotadas de aspectos de virilidade porque muitas vezes exercem um papel ativo, governando suas casas e bens enquanto os maridos estiveram fora, nas Cruzadas, por exemplo, o que era justificado pelos clérigos, como uma forma de ultrapassar o seu sexo, normalmente fraco e tentado ao mal.

Aos olhos da época, todas as mulheres teoricamente guardam uma mácula, o pecado original, causado por Eva ao comer a maçã. Já a culpabilidade masculina é minimizada. Eva queria transgredir, queria o poder e duvidara de Deus. Os pensadores do século XII, como Pedro Abelardo, afirmaram que Adão ao contrário, não duvidara do Criador e que tinha aceitado a maçã entregue por Eva para não desgostá-la (DUBY, 2001: 57).

Os primeiros manuais de confissão consideravam como tarefa do homem controlar a mulher. Já a partir do século XII ela é vista como responsável por seus próprios pecados. Cabia aos padres e ao marido exortá-la para que se voltasse para o bem. Aliás, o único meio dos leigos resistirem as Evas e evitar as fornicações e o concubinato era o casamento, mas mesmo após a este, a "pecadora" em potencial deveria ser vigiada para que não cumprisse sua principal tendência, a do adultério.

Nos manuais de confissão aparecem as punições para o infanticídio, o sexo fora dos dias estipulados pela igreja, os feitiços exercidos pelas mulheres para se tornarem mais belas ou diminuir a potência dos homens, as práticas abortivas, mostrando, na verdade, que todas estas ações eram realizadas e por isso a Igreja buscava controlá-las ou reprimi-las. Quando se trata de pecado, as punições aos homens eram inferiores às impostas às mulheres.

A forma mais sublime de amor entre um homem e uma mulher, para os clérigos, é o amor espiritual. André Capelão em seu Tratado do Amor Cortês (1180) apesar de discorrer sobre as formas de conquista, aconselha no final de seu tratado que o amor não consumado é o mais desejável. Georges Duby relata que a Igreja louva aquelas noivas ou viúvas que não chegaram à consumação do casamento. Segundo os padres, poderiam continuar amando espiritualmente o ente querido sem haver contaminado os seus corpos. Desta forma, chegariam ao verdadeiro esposo, Jesus, purificadas (DUBY, 2001: 81-83).

O casamento no período feudal era um contrato realizado pelos pais. As mulheres desempenhavam um papel importante na política de alianças. Os noivos não tinham direito de fazer escolhas e o contrato baseava-se na conveniência da família. A mulher representava terras. Muitos nobres secundogênicos resolviam o problema da terra através do casamento, mas não havia mulheres para todos. Também era comum que as famílias esperassem que os primogênitos fizessem casamentos com mulheres de linhagem superior a sua.

A partir do IV Concílio de Latrão (1215), para que o casamento se efetivasse era necessário o consentimento mútuo, mas as uniões nobres continuaram a ser feitas pelos interesses das linhagens. Considerava-se que o amor estava separado do casamento, pois no casamento havia obrigações (o marido é dono do corpo feminino e vice e versa) e a liberdade só era possível em relações extra-conjugais. De acordo com André Capelão:

o amor não pode estabelecer seus domínios entre cônjuges. Porque os amantes concedem-se tudo mutuamente a título gratuito, sem serem impelidos por obrigação nenhuma. Os esposos, ao contrário são obrigados por dever a obedecer às vontades recíprocas e não podem recusar-se um ao outro. (ANDRÉ CAPELÃO, 2000: 137)

Desta forma, de acordo o pensamento medieval era impossível conciliar amor e vida conjugal, que era marcada por relações de obrigação e por isso o amor só poderia existir fora do casamento.

Era comum o repúdio, principalmente a esposas estéreis e também para aquelas que não gerassem uma descendência masculina. Mulheres adúlteras eram punidas quando podiam interferir nos interesses dos familiares próximos em suas terras. Também eram comuns as anulações dando por justificativa algum parentesco entre os cônjuges (a Igreja proibiu num primeiro momento o casamento entre parentes até o sétimo grau e depois baixou a exigência para o quarto grau).

Este estudo versa sobre as mulheres do topo da escala social: as rainhas. É claro que essas mulheres foram fundamentais para consolidar alianças e garantir bens aos maridos.

Rainhas de Portugal e seu Papel nas Crônicas

Antes de explicar as imagens das rainhas de Portugal de meados do duzentos, é necessário falar dos reis, os centros dos relatos cronísticos produzidos no final do período medieval.
Portugal no século XIII é um reino independente, que surgiu de Castela, o reino gerador. Para manter-se assim precisava ter um papel de destaque na Reconquista, expulsando os inimigos dos cristãos da Península Ibérica. Assim foram fazendo todos os reis portugueses, iniciando-se com Afonso Henriques (1139-1185), o que lhes conferia autoridade frente à nobreza. Ser rei era manter a ordem interna, garantindo a paz entre os bellatores e aumentar os territórios portugueses, expulsando de lá os muçulmanos que os ocupavam.

Sancho II (1223-1248), quarto rei de Portugal, deu continuidade à política de seus antecessores. Governou por vinte e dois anos antes que estourasse em Portugal a guerra civil (1245) quando seu irmão Afonso, conde de Bolonha, foi nomeado pelo papa regedor do reino e o antigo monarca, deposto e excomungado.

Todas as crônicas a partir de Afonso III (1248-1279) afirmam que Sancho não conseguiu controlar as turbulências da nobreza, que realizava roubos e guerras privadas em decorrência da própria crise deste grupo social no século XIII, ocorrido especialmente com os secundogênitos que não tinham terras.

O rei perdeu a guerra civil. O seu irmão assumiu o governo, resolveu os problemas internos (as lutas entre a nobreza) e aumentou o território português pela guerra e pelo casamento. Era, pois, relevante no campo das idéias, uma justificativa para deposição do legítimo monarca. Se as crônicas da época de Sancho II valorizaram o seu governo, em especial a participação na Reconquista (Toledano e a Primeira Crónica General de España), as narrativas posteriores ao seu reinado encarregaram-se em desqualificar a atuação política do soberano, o que justificava que este fosse substituído e que um novo ramo na Dinastia de Borgonha se iniciasse com Afonso III (ZIERER, 1999: 143-196).

Dos mais de vinte anos do reinado de Sancho II, as crônicas centram-se nos últimos anos do governo, a partir de 1240 quando a crise entre a nobreza começou a se refletir em instabilidade social e o clero se interferiu nos problemas do reino, depondo o rei. É como se o governo de Sancho fosse todo ele um período de Crise e como se a Reconquista tivesse parado, havendo um vácuo após a morte de Afonso II (pai de Sancho e Afonso), que só teria sido preenchido com Afonso III. Por coincidência o casamento de Sancho II com Mécia foi realizado justamente na época da crise, isto é após 1240. Talvez por este motivo a mulher tenha sido responsabilizada pelos problemas do governo.

Figura 1: Afonso III e Sancho II.
(À Esquerda) "Afonso III". In: Serrão, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1976, v. I, p. 40. (À Direita) "Sancho II". Pintura do século XVIII. In: ZÚQUETE, Afonso Eduardo. (Dir.). Nobreza de Portugal. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960, v. I, p. 159.

A escolha da imagem destes dois reis de meados do século XIII foi feita para exemplificar como as imagens régias podem estar associadas nas crônicas aos casamentos e mais especificamente a relação entre bom/mau governo e boa/má esposa. Analisarei estas representações em relatos dos séculos XIV ao XVI, conforme pode ser visto no quadro abaixo.

Crônicas a serem estudadas:

CRÓNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344 (Cr.1344)
atribuída ao Conde D. Pedro, influenciou as posteriores

CRÓNICA DOS SETE PRIMEIROS REIS DE PORTUGAL OU CRÓNICA DE 1419

(Cr. 1419)
atribuída a Fernão Lopes, dá seqüência a eventos da Crónica de 1344, desenvolvendo-os com mais detalhes

CRÓNICA DE D. SANCHO II E D. AFONSO III (CRP)
de autoria de Rui de Pina, escrita por volta de 1519, baseada nas anteriores


Além destas crônicas também será consultado o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340). É atribuído ao Conde D. Pedro, neto de Afonso III, a autoria não só da Crónica Geral de Espanha de 1344, como também deste nobiliário. A diferença é que a crônica era voltada aos feitos dos reis e o nobiliário aos da nobreza, porém em ambos podemos ver um pequeno resumo sobre os reinados de Sancho II e Afonso III.

As imagens dos dois monarcas em todas as obras citadas aparecem como cada um sendo o contraponto do outro, os atributos positivos dirigidos a apenas Afonso III, apresentado como bom rei, justo e guerreiro. Já Sancho II, o perdedor da guerra, é descrito nos mesmos relatos como fraco e mal aconselhado. Nestas narrativas pode-se perceber o papel fundamental exercido pela figura feminina na construção de cada um como bom ou mau rei.

Alguns relatos do próprio século XIII como De Rebus Hispaniae (também conhecido como Toledano), a Primeira Crónica General de España e algumas cantigas de escárnio e mal dizer mostram uma imagem diferente acerca de Sancho II, e no caso das cantigas, criticam inclusive a tomada do poder por Afonso III, assunto do qual tratei na dissertação de Mestrado (ZIERER, 1999: 182-191). A imagem sobre este rei na historiografia portuguesa contemporânea é ainda muito negativo (ZIERER, 1999: 176-181).

Porém neste artigo o embate entre bom/mau rei visa mostrar que a maior justificativa para Sancho II ser considerado um monarca ruim, fraco, teria sido a "má influência" de uma mulher, isto é, de sua esposa. Pode-se notar que o mesmo acontece com a construção da imagem de outro rei português nas crônicas, D. Fernando (1367-1383). Para engrandecer a figura de D. João I (1385-1433), primeiro monarca avisino, procurou-se também nas crônicas escritas por Fernão Lopes no século XV contrapô-lo àquele rei, mostrado como um fraco, devido, em primeiro lugar, à má influência de sua esposa, D. Leonor Teles, que também, segundo as narrativas, tal qual Mécia Lopez, teria enfeitiçado o soberano (SARAIVA, 1997: 76).

Assim, na Crónica de D. Fernando o cronista sugere que segundo os mais sábios D. Fernando havia agido por "sandice" (SARAIVA, 1997: 80) uma vez que desagradou a população ao casar-se com uma dama cujo primeiro casamento foi anulado para que pudesse contrair matrimônio com o monarca.

No leito de morte, D. Fernando aparece arrependido por seus pecados: "(...) creio que ele [Deus] me deu estes reinos para os manter em direito e justiça, e eu por meus pecados fiz de tal maneira que lhe darei deles muito má conta." (SARAIVA, 1997: 138). Obviamente, as faltas deste rei, segundo Fernão Lopes, estão diretamente ligadas a um casamento que não era aprovado por muitos, de forma que, o fato de não conseguir vencer as guerras contra Castela empreendidas no seu reinado foi diretamente associado à fraqueza pelo "mau casamento".

Importante dizer acerca dos pares Sancho II/Afonso III, D. Fernando/D. João I é que a imagem do rei fraco que governa mal devido à influencia feminina aparece nas crônicas portuguesas desde o século XIV. O final de cada reinado é que foi diferente. Sancho II foi deposto pelo irmão. Já D. Fernando, morreu pacificamente e sem herdeiros masculinos, porém, após a sua morte iniciou-se o que ficou conhecido mais tarde como Revolução de Avis (1383-1385), com o início de uma nova dinastia no poder. Podemos concluir que, de acordo com a lógica das crônicas, o mau casamento, em virtude da má esposa, levava à instabilidade política.

Voltemos a Sancho II e D. Mécia. Na Idade Média a monarquia era considerada a forma ideal de governo, desejada por Deus na Terra, seguindo o que se encontrava na Bíblia, onde os bons monarcas como Davi, Salomão e Josias eram tementes a Deus e empreenderam uma política expansionista.

Para depor um monarca que, conforme se acreditava, havia sido escolhido por Deus para governar, era necessário uma forte justificativa, pois a culpa pelo mau governo não poderia ser do monarca, mas sim de seus auxiliares próximos, os "maus conselheiros".

Além disso, alguém já ligado ao pecado teria tido um papel negativo com relação ao rei, e este alguém no nosso caso, só poderia ser a esposa de Sancho II, D. Mécia Lopes Haro.

Na história de Sancho II tudo ligado à mulher é apresentado de forma negativa. Além de esta ser uma viúva castelhana (dois aspectos negativos: não era virgem e provinha de Castela, que queria teoricamente dominar Portugal), lhe é atribuído um parentesco com o monarca, o que impediria o casamento. Além disso, como não tiveram filhos, a união pôde ser vista como não agradável aos olhos de Deus. É interessante a citação abaixo, associando o mau governo atribuído a Sancho II com o casamento na Crónica de 1419:

Segundo alguns dizem, começou de ser boom Rey, e depojs por sua synpreza e maos comselheyros ya se a terra toda a perder, fazendo todo mal em ela. (...) casou-se com Dª Meçia Lopiz (...). A qual cousa os pouos ouuerom por estranha (...), mormente seu diujdo aquem do quarto grao e não aver por elo despemçação, e por esto fose gramde mjmguoa de sua omrra. (...) E daly em diante foy ajmda o Reyno majs pera mal, em gujsa que matauom e roubauom, furtando e poendo foguo, asy os grandes como os pequenos (...). E ele leyxava pasar estas cousas, não tomando a elo, nem fazendo nemhuma justiça, com fraqueza de coração (Cr. 1419: 211-212). (os grifos são meus)

Um terceiro fator é que D. Mécia foi raptada durante a guerra civil, não se sabe se com o seu consentimento ou não. O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340) e outras fontes nos deixam na dúvida sobre o caso, sugerindo que Mécia teria aderido à causa do cunhado, o Conde de Bolonha. Assim, de acordo com o Nobiliário, foi raptada contra a sua vontade por João Raimundo de Porto Carrero (LL,II/2,44D6), que era aliado de Afonso III.

O que importa dizer é que Sancho II não conseguiu reavê-la, o que é mais um indício para que ele fosse considerado "fraco".

Vemos assim que nas construções cronísticas acerca de Sancho II e Afonso III as mulheres ocupam um papel secundário, porém importante para justificar aqueles governos como bons ou maus. O "mau casamento" de Sancho é apresentado nas crônicas como o principal motivo que levou em primeiro lugar à consolidação do mau governo e depois à deposição.

Quanto a Afonso III fez não apenas um, mas dois casamentos que revelaram ser muito positivos ao monarca: o primeiro com a condessa de Bolonha, que lhe garantiu territórios na França (que depois ele deixou após ter repudiado a mulher) e o segundo com Beatriz Guzman, filha bastarda do rei de Castela, Afonso X, que garantiu a posse da terras do Algarve para Portugal.

A justificativa do mau governo de Sancho associada ao casamento com Mécia vem das crônicas e nobiliários desde o século XIV, mas o processo da Mécia-diabólica completa-se na crônica de Rui de Pina, do século XVI, a qual baseou-se nos relatos anteriores e que no seu tece uma rede de oposições, comparando Mécia não só com as esposas de Afonso III, mas também com a tia de Sancho II,

D. Berenguela, que na narrativa aparece como boa e contrária ao casamento.

A oposição Berenguela/Mécia, que atinge um alto grau de sofisticação com Rui de Pina, já evidencia-se em relatos anteriores, como no Nobiliário do Conde D. Pedro:

[Sancho II] Começou mui bem de seer mui boo rei e de justiça, mas houve maos conselheiros, e des ali adeante nom fez justiça. E saio de mandado da rainha dona Biringuela, sa tia, e casou-se com Micia Lopez, e des ali foi pera mal (LL,7C4). (os grifos são meus)

Já em Rui de Pina, a tia aparece como próxima de Maria, mãe de Jesus, possuídora de grande juízo e que por isso desaconselha o casamento, no que não é atendida. Segundo o cronista, Dona Berenguela era "Princeza de muy singulares virtudes, e Reaaes perfeyções, e muyta prudencia (...) ella muitas vezes enviou a conselhar ha seu sobrinho assi bem." (CRP: 132). (os grifos são meus)

Porém, maus conselheiros levam o monarca a casar-se com D. Mécia, "Dona fermosa, e viuva, filha de Don Lopo, senhor de Biscaia" com quem o monarca tinha parentesco, o que teria levado ao "grande escandalo e nojo dos do Regno" (CRP: 132) (o grifo é meu). O cronista atribui uma série de adjetivos negativos associados à esposa do rei:

El Rey andava em poder della enfeytiçado, e ceguo do juízo seem se poder apartar, e que ajudavam muito ho maao conselho, daquelles, que sostinham ha parte da Rainha Dona Mecia, por cujo favor em que ha esse tempo havia o poder, e authoridade com grande desoluçam elles tomavam e destruyam do Regno todolo que queriam (...) hos quaees males ElRey por fraqueza de coraçam nom castiguava (...) e assi teve ElRey D. Sancho esta molher alguum tempo sem della aver alguua geraçom, nom cessando no Regno estes insultos, e desoluções, antes crecendo cada vez mais. (CRP: 132-133) (os grifos são meus)

Podemos exemplificar esta oposição entre as duas mulheres através do seguinte quadro:

Primeira Oposição: Berenguela x Mécia

ASSOCIAÇÃO A MARIA ASSOCIAÇÃO A EVA

Berenguela: tia, irmã da mãe do rei Mécia: viúva, parente em quarto grau do rei

Prudente Formosa

singulares virtudes Feitiços


De acordo com as crônicas, Sancho II não conseguiu separar-se de Mécia, apesar das súplicas "dos Prelados, e poovo de Portugal, lhe enviava continuas amoestações, e sanctos conselhos, ha qual el nunca quis inteyramente obedecer (...) ha Rainha Dona Mecia sua molher, e aqueles que seguiam sua vontade ho desviavam de seu boom propósito, espiciaalmente em ha nom querer, nem poder leyxar por molher, sobre que muytas vezes, foy pelo Papa aconselhado, e amoestado, e excommungado (...) (CRP: 134) (os grifos são meus).

Isso explica, portanto, nos relatos cronistícos, a deposição de Sancho II e a "alegria dos do reino" com a chegada em Portugal do seu irmão, o Conde de Bolonha, o que deu início à guerra civil entre ambos. Como forma de justificar a intervenção ao governo do legítimo monarca, os relatos afirmam que a maioria da população concordou com a posição de Afonso III como regedor:

Ca diz a Coronjqua que tam grande prazer ouuerom as gemtes do Reyno, quamdo o Comde emtrrou em Portugal, emtendendo que por ele sejom releuados de todolas tribulações em que erom postos, que muytas as vilas e lugares que hy auyom, se lhe dauom de boa memte". (Cr.1419, v. I: 230).

Quanto à esposa de Afonso III, D. Matilde, com quem ele casou em 1238, era uma viúva, tal como Mécia, mas como garantiu-lhe inicialmente terras na França que o tornaram conde, foi assim louvada por Rui de Pina, numa segunda oposição com Mécia: "(a) Cõdessa de Bolonha sua mulher, avia nome Dona Matildes, la qual fora jaa outra vez cazada, e era da linhagem dos Rex de França, em que avia singulares boondades, e virtudes, e tinha muitas teerras, e grande fazenda." (os grifos são meus)(CRP: 139).

Figura 2 – D. Matilde, Condessa de Bolonha, 1ª esposa de Afonso III. In: "Rainhas de Portugal": http://7mares.terravista.pt/hcesarop/Rainhas.htm

A oposição entre os vícios de Mécia e as virtudes de Matilde podem ser assim exemplificadas:

Segunda Oposição: Mécia x Matilde

Matilde: esposa de Afonso III Mécia: esposa de Sancho II

Virtuosa "Bruxa"

fornece terras: amplia os domínios do marido fornece maus conselhos: leva o reino para o mal


No entanto, esta mesma Matilde é repudiada mais tarde quando após a morte de Sancho II e já como rei, Afonso III contrai um segundo casamento em 1253 com a filha bastarda de Afonso X, de Castela, D. Beatriz Guzman, que ainda não estava em idade núbil, pois tinha ainda onze anos ou menos (a idade núbil para o casamento era quatorze anos para os meninos e doze para as meninas). O casamento é de grande importância política por garantir acordos com Castela que garantiriam a posse das terras do Algarve, obtidas na Reconquista, para Portugal.

O segundo casamento mostra como era comum o repúdio nos meios nobres principalmente quando a mulher não dava ao homem uma descendência masculina, ou mesmo quando o marido conseguia um casamento melhor, como no caso de Afonso III. Seguindo o pensamento da época, as crônicas demonstram surpresa com o novo casamento e colocam numa fala de Afonso III, a explicitação da posição masculina da época e sua justificativa:

E forom as gemtes muyto maravelhadas daquele casamento, por quamto elRey D. Afonso era casado com a Comdesa de Bolonha. E elRey lhe deu em resposta, dizendo que se em outro dia achase outra molher que lhe dese outra tanta terra no Regno, pera o acreçemtar, que loguo casarja com ela. (Cr.1419, v. I: 248) (o grifo é meu)

As crônicas descrevem a ida de Matilde a Portugal para reclamar os seus direitos e a reação explosiva de Afonso III expulsando-a do reino. Ao receber os emissários da rainha, o monarca afirmou que: "se maravilhaua muyto deles, como foram ousados de chegarem a ele, (...) e que se não forem homems a que tão grande bem querja, e de que avya recebidos mujtos serujiços, que lhe mandaua cortar as cabesas (...)." Segundo o texto, a ameaça continuava, dizendo que a Condessa "se partise loguo d aly e que tonase pera sua terra, e não fose ousada de sajr em seu Regno". Do contrário, Afonso III teria com ela uma atitude "que muyto lhe pesarja." (Cr. 1419, p. 250) (os grifos são meus). Desta forma, D. Matilde não pôde tomar outra alternativa senão retornar à França.

A seguir, a esposa legítima escreve ao papa, que excomunga o reino português. Pouco mais tarde, porém, Matilde falece e Beatriz, nesta época já mãe, é reconhecida como mulher do rei.

As narrativas da época procuram apresentar um papel positivo e ativo da nova esposa de Afonso III, que vai pessoalmente falar com o pai para pedir que desse as terras do Algarve para Portugal, no que, segundo os relatos pesquisados, ele consentiu porque "amava muito a filha" (Cr.1419: 248 e 272).

Em alguns relatos como a Crónica Geral de Espanha de 1344, o primeiro casamento de Afonso III não é sequer mencionado, louvando-se apenas o casamento com Beatriz que representou terras e filhos ao monarca. Esta crônica "esqueceu" convenientemente o casamento com D. Matilde, esposa repudiada e trocada por um outro casamento mais vantajoso. O primeiro casamento está subentendido quando se fala que Afonso III era conde de Bolonha. A seguir a crônica menciona que "depois per tempo", ele contraiu matrimônio com Beatriz Guzman, isto é, após ter repudiado D. Matilde, cujo nome não é sequer citado no documento.

Sobre Afonso III:

E este rey dõ Affonso, ~e seendo conde de Bolonha ouve muytas batalhas ~e França e sempre foy vencedor. Depois per tempo casou com dona Beatriz, filha del rey dõ Affonso de Castella e Leon e de dona Mayor Guillhelme, e deulhe el rey de Castela todo o que avya no Algarve. E este rey dom Affonso ouve daquella re~ynha dona Beatriz estes filhos: o iffante dõ Denis, que depois foy rei (...). (Cr. 1344: 242).

Portanto, fica claro na imagem de Beatriz na crônica que a boa esposa é aquela capaz de procriar e garantir territórios aos nobres, pois devido ao casamento seu pai "deulhe todo o que avya no Algarve", o que serviu para aumentar os territórios do monarca português, seu marido. Assim, a mulher repudiada, como Matilde, não merece nem sequer ser mencionada. Já a má, como Mécia, é a que "enfeitiça" o marido e lhe dá maus conselhos, com conseqüências terríveis para o rei e o reino, conforme o pensamento da época.

Conclusão
Através das informações sobre três rainhas de Portugal do século XIII, Mécia, Matilde e Beatriz, é possível verificar que a imagem delas também correspondia à visão que se tinha da mulher na época, dividida entre os espectros de Maria e de Eva. A misoginia medieval foi utilizada para justificar a deposição de um monarca, Sancho II, sendo atribuído a Mécia, todos os males do governo e os motivos de sua queda. Enquanto Matilde e Beatriz representam a mulher-mercadoria, que era importante nas alianças para a obtenção de títulos e terras, Mécia representa a mulher-diaba, o motivo encontrado nos relatos cronísticos para justificar a deposição do monarca legítimo.

Assim, a mulher boa segundo o pensamento medieval é aquela que garante terras e descendência à nobreza, que se "conforma" com o repúdio como Matilde, que serve aos verdadeiros interesses da sociedade dirigida por homens, como o foram Matilde num primeiro momento e depois Beatriz.

Como elas eram na verdade, conhecemos pouco, mas sabemos também que não foram esses objetos passivos que os homens desejavam. Matilde reclamou com a instância máxima da época: o papa. Beatriz serviu aos interesses do marido, mas também aos seus próprios, pois de bastarda passou a mãe do futuro rei de Portugal, D. Dinis.

Quanto à Mécia, qual o destino desta mulher que é espicaçada nas crônicas? A nossa Eva deixou de ocupar lugar preponderante nos relatos após a morte de Sancho II e somente o silêncio ficou em seu lugar. Certamente ela voltou para Castela e ficou com os seus bens, livre do marido. Mas se Sancho II não tivesse perdido a guerra, Mécia não seria Eva e sim Maria, apresentada nas narrativas da época como uma mulher virtuosa e piedosa.

A mulher da sociedade ocidental vem carregando culpas há muito tempo devido aos escritos cristãos. É tempo de revisar este papel procurando uma nova imagem feminina ou valorizando a sua importância ao longo da história. Nem Ave, nem Eva, apenas seres humanos.

Bibliografia

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* Trabalho apresentado no I Congresso Internacional "A Representação da Imagem Feminina" (Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2000), com alguns acréscimos para esta publicação.

Revista Mirabilia

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