quarta-feira, 6 de maio de 2009

Os olhos cheios de cores


Explorando contrastes estéticos e propondo uma forma mais colorida de se entender o país, o movimento tropicalista virou pelo avesso a cultura popular brasileira no final dos anos 60
Santuza Cambraia Naves e Frederico Oliveira Coelho

“Por entre fotos e nomes/ os olhos cheios de cores...” Os versos de Caetano Veloso, embalados pelas guitarras estridentes, sacudiam as jovens tardes de domingo da nascente mídia eletrônica no final de 1967. Nascia o Movimento Tropicalista, com a proposta de engolir tudo que se repudiava como kitsch ou rançoso, produzindo uma nova forma, muito mais colorida, de enxergar as coisas, de entender o país, de assumi-lo ambiguamente como antigo e moderno ao mesmo tempo.

Em vez do nacionalismo, sugeria pensar a cultura local em diálogo permanente com a cultura universal; em vez de algo impalpável tratado como popular, lidar com a realidade concreta das massas urbanas e de seus meios de comunicação. Propunha, enfim, a contaminação do cenário popular pelo show business, associando-se a guitarra do rock de Jimi Hendrix e dos Beatles ao berimbau da capoeira e à sanfona do baião de Luiz Gonzaga. E, heresia das heresias, para a crítica cultural da época, apresentar-se no Programa do Chacrinha, um ícone popular da televisão e do mau gosto.

Pouco menos de quarenta anos antes, o poeta Oswald de Andrade, num tom muito semelhante, havia escrito o “Manifesto Antropófago”. No “Manifesto”, Oswald propunha uma experiência de contaminação com as culturas que nos cercam, o que condiz com a estética e a prática tropicalistas. Quatro anos antes, no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, ele já ensaiava essa linha de entendimento do país, numa visão do Brasil em cores, e não em preto-e-branco. Dizia Oswald no manifesto publicado pelo Correio da Manhã em 1924: “Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.”


O fato é que a linguagem moderna de João Gilberto e Tom Jobim, entre outros, tinha tudo a ver com o traço de Niemeyer, de busca de uma linguagem artística objetiva e funcional, que cortasse qualquer excesso. Por isso, esses intérpretes e compositores recusavam os estilos musicais da geração anterior, ligados, principalmente, à Rádio Nacional, considerados exagerados, operísticos e melodramáticos. Não por acaso a gravadora Elenco, uma das mais modernas da época, contrata o designer César Vilella para introduzir nas capas de discos uma outra concepção de design, usando desenhos geométricos e fotografias em alto contraste em preto-e-branco, em contraposição às fotos coloridas e formais dos intérpretes. Tudo muito afinado com o estilo contido dos cantores e com o desempenho discreto no palco à base de banquinho e violão.

O advento do Movimento Tropicalista reintroduz estrategicamente no cenário a rejeição ao que já tinha sido recusado dez anos antes pela bossa nova, o que se entendia como sendo uma estética excessiva, borrada de tinta pelo kitsch. Não só isso: sugere a ambigüidade, juntando o jeito clean de João Gilberto ao “sujo” de Vicente Celestino; o intimismo da voz limpa de Nara Leão com a extroversão do Chacrinha; o fino da poesia concreta ao brega dos boleros; o purismo nacionalista dos sons regionais nordestinos às informações trazidas de fora pelo rock. Os artistas baianos redescobriram Oswald e um país rico de contrastes. Essa sensibilidade se manifesta no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, na peça O Rei da Vela, do Grupo Oficina, na atuação desafiadora do artista plástico Hélio Oiticica e no desempenho, nas canções e nos figurinos, do que à época se chamou de Grupo Baiano, virando pelo avesso o que se entendia por cultura popular brasileira.

Caetano, em entrevista ao poeta Augusto de Campos, em abril de 1968, sugere ser possível a criação e a inventividade no circuito de comunicação de massa, verdadeiro tabu naquele momento. O cantor e compositor argumenta que o artista de sua época tem duas escolhas possíveis: ou adere aos meios de comunicação ou se dedica à pesquisa “pura”, não contaminada pelos interesses vulgares da mídia.


Se a primeira opção, raciocinava Caetano, envolveria um compromisso do artista para com o patrocinador, o gosto do público e outros entraves à sua liberdade de experimentação musical, ela solucionaria, por outro lado, o risco de se cair, justamente em decorrência de um excesso de resguardo, numa espécie de ostracismo no cenário cultural. É a partir dessa reflexão que Caetano assume radicalmente os novos meios de comunicação, pois, embora atuassem como “freio”, se constituiriam em via privilegiada, no mundo contemporâneo, para o exercício de inovações musicais. Apesar dos entraves postos no caminho do músico, os novos meios de comunicação não seriam mais perniciosos do que o excesso de seriedade – atitude assumida, segundo Caetano, pelos criadores da bossa nova ao longo da década de 60.

Assim, numa tomada de posição contra o excesso de austeridade, Caetano procura conciliar João Cabral e Oswald de Andrade, o rigor e a alegria, a experimentação e o deboche, a “informação” e a “redundância”, ou, como lembra Augusto de Campos, “o fino e o grosso”. Nessa entrevista, Caetano define o tropicalismo como um “neo-antropofagismo”.

Hélio Oiticica fez coro com os músicos baianos ao adotar radicalmente a perspectiva estética de Oswald de Andrade na busca de uma nova imagem para a cultura brasileira. Sua formação se inicia como artista plástico ligado aos projetos construtivistas, lidando com as idéias de contenção e equilíbrio presentes no neoconcretismo, movimento carioca das artes plásticas de que participou no final da década de 50. A partir de 1964, Oiticica revolucionou sua vida e obra através de sua experiência com os casebres “nos verdes das favelas”, que, como Oswald, eram vistos por ele como “fatos estéticos”. E foi naquele ano que ele conheceu o morro da Mangueira, seus moradores, sua escola de samba e seu carnaval. Tornando-se freqüentador do morro e passista da escola, Oiticica procurou enxergar a favela e sua população com “olhos livres”. Os barracos e as manifestações culturais dos moradores do morro eram vistos por ele para além de seus aspectos folclóricos na cultura popular brasileira, pois foi a partir da descoberta da Mangueira que sua obra se voltou definitivamente para o uso inovador do corpo e para a participação do espectador nas suas instalações. Trabalhos como os Parangolés e conceitos como o Crelazer abriram novos horizontes para as artes e para a cultura brasileira, ligando-se diretamente às suas andanças pelas favelas cariocas. Sua identificação com a Mangueira, suas vielas e barracos foi conseqüência de uma trajetória artística que sempre questionou padrões acadêmicos pré-definidos. A obra Tropicália, de 1967, foi a síntese estética dessa revolução.


Em textos escritos sobre o tropicalismo, Oiticica destacou o projeto de modernização da música popular de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Afirmava que suas ações ganhavam contornos “dramáticos”, pois levavam para a arena da cultura de massas temas ligados aos “problemas universais na arte de vanguarda”. Esse era um debate que, até o surgimento dos músicos, travava-se apenas nos meios acadêmicos ou na crítica cultural especializada. Para Oiticica, as manifestações de Gil, Caetano e os Mutantes não eram simples apresentações de músicos. Quebrando os padrões estéticos que imperavam no show business brasileiro da época, ainda ligados ao estilo de contenção e refinamento da bossa nova, os tropicalistas não mais vestiam smoking em suas performances. Também dispensavam em suas apresentações o banco servindo de apoio ao violão e uma orquestra ou conjunto musical discreto no fundo do palco. Os tropicalistas adotaram inovações, como o uso de guitarras, amplificadores, cenários e figurinos. O excesso banido pelos anos da bossa nova voltava à cena, fazendo parte de uma organização estratégica em que tais elementos não eram apenas acessórios “aplicados sobre uma estrutura musical”, mas sim uma síntese criativa de diferentes áreas da arte, como a música, o teatro e as artes plásticas. Oiticica observava em várias frentes – shows, capas de disco, roupas – a existência de uma linguagem visual complexa e universal. No palco tropicalista, “os elementos não se somam como 1+1=2, mas se redimensionam mutuamente”. Nos trabalhos e apresentações dos baianos – e no seu trabalho também – o artista plástico procurou ir ao encontro dos elementos descritos por Oswald em “Pau-Brasil”: a “síntese”, o “equilíbrio”, a “invenção”, a “surpresa”, uma “nova escala” e uma “nova perspectiva”.

O tropicalismo rompeu radicalmente com o país em preto-e-branco, contido e de smoking, e inaugurou um país colorido, fragmentado e universal, criando uma nova imagem para o Brasil. A cor local é recuperada, sem dúvida, embora não atenda a expedientes exóticos, folclorizantes. Mesmo porque o movimento incorpora, como prescrevia Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, “o melhor da nossa tradição lírica” – como as canções sentimentais e melodramáticas divulgadas pela Rádio Nacional –, sem deixar de contemplar “o melhor da nossa demonstração moderna” – como as canções da bossa nova interpretadas por João Gilberto. O tropicalismo, paradoxalmente, adotou uma prática colorida e aberta o suficiente para incluir a estética cool do preto-e-branco. É como se o receituário de Oswald, no sentido de sermos “apenas brasileiros de nossa época”, não se completasse sem o modelo de desafinação legado pelos bossa-novistas. Segundo Caetano, em “Saudosismo”, canção de 1968, os tropicalistas teriam aprendido com João Gilberto “pra sempre a ser desafinados”.

Santuza Cambraia Naves é autora de Da bossa
nova à tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, e professora do Departamento de Sociologia
e Política da PUC-Rio.
Frederico Oliveira Coelho é doutorando
em Letras na mesma instituição. Ambos integram
o Núcleo de Estudos Musicais – CESAP/UCAM.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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