por Christophe Courau
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Desfile militar na Coreia do Norte em 10 de outubro de 1995 comemora os 50 anos do fim da dominação japonesa
Han-ung, filho do deus do céu, sente-se aborrecido no paraíso. Ele desce, então, à Terra e surge ao pé de uma árvore de sândalo, sobre o monte Taebaek. Alguns animais, entre os quais uma ursa, pedem a ele que lhes concedam forma humana. O novo rei ordena: Façam um retiro de cem dias no fundo de uma caverna, levando como alimento 20 dentes de alho e um buquê de artemísia. Só a ursa segue as suas instruções e é, assim, transformada em mulher. Han-ung casa-se com ela e lhe dá um filho: Tan-gun, que se torna o primeiro coreano. Este evento é datado com precisão, 2333 a.C., e ainda é comemorado na Coreia com o nome de festa da abertura do Céu.
Esta é a lenda. A realidade é menos poética. Desde o fim da II Guerra mundial, a Coreia dividiu-se em dois países: uma ditadura ao Norte e uma democracia ao Sul. Há mais de 50 anos, o regime despótico estabelecido – com a ajuda da China de Mao – por Kim Il-sung e prolongado por seu filho, Kim Jong-il, não deixou de oscilar entre posições opostas. O último avatar dessa política é a chantagem nuclear, com o anúncio do relançamento de uma central nuclear e de ameaças diretas contra os Estados Unidos. Antes de a Coreia tornar-se um país, a China esteve presente nesta península da Ásia oriental quando, em 108 a.C., o imperador Wou-ti, da dinastia Han, invadiu a região. Wou-ti funda no oeste e no centro da região quatro prefeituras, com o núcleo político em Loiang (perto da atual Pyongyang). Este protetorado chinês não impediu, entretanto, os coreanos de constituir, entre o século I e o início do século IV, o país dos Três Reinos: o Koguryo, ao norte, o Paikche, a sudoeste e o Silla, a sudeste. Esses reinos rivalizaram entre si até o século VII. A supremacia passa de Koguryo para Silla, que atinge o apogeu entre 670 e 780. Fundada em 918, na Coreia Central, a dinastia de Koryo submete o reino de Silla, e unifica a Coreia. A capital passa a ser Songdo (atual Kaesong).
A partir de 1231, inicia-se uma guerra de 30 anos contra os mongóis de Gengis Khan, que dominam os coreanos. Os mongóis estimulam os coreanos a conquistar o Japão, mas duas tentativas nesse sentido, em 1274 e 1281, fracassam. Em 1364, um jovem guerreiro coreano, Li Song-gye, aproveita-se do declínio dos mongóis, expulsa-os da península, e restabelece a unidade coreana. Coroado rei, funda, em 1392, a dinastia Li (ou Yi), que reinará na Coréia até 1910. Conforme explica André Fabre em sua História da Coreia , o país torna-se Choson, ou país da manhã fresca, expressão que uma tradução errônea transformou em país da manhã calma. O poder de Li não mais se apóia no budismo, mas no confucionismo. A nova capital passa a ser em Seul. Desde 1401, o governo emite papel-moeda, abre cinco escolas na capital e institui novo alfabeto de 28 letras, empregado até hoje. Mas a renovação coreana não teve tempo para se desenvolver: os japoneses, em 1592 e 1598, e depois os manchus, em 1627 e 1638, invadem o país. Choson não consegue se restabelecer após essa dupla invasão. A Coreia isola-se do mundo e torna-se o reino eremita que não pode ser visitado por nenhum ocidental.
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Em agosto de 2003, em Seul, manifestante sul-coreano queima a bandeira da Coreia do Norte em protesto contra o programa nuclear do país.
Um primeiro contato, porém, ocorre em 1653, quando um navio holandês afunda em suas costas. Os marinheiros são bem tratados, mas aprisionados. Em 1668, oito desses marinheiros conseguem escapar e chegar ao Japão. Entretanto, apenas no século XIX outros ocidentais interessaram-se pelo reino eremita. Em 1816, 1832 e 1833, os ingleses propõem o estabelecimento de relações comerciais aos coreanos, que recusam.
O perigo vem também do interior. Uma religião, o catolicismo, importada pelos chineses, ganha adeptos entre os letrados do reino. Chamada de a ciência do Senhor do céu, a nova crença é mal vista pelas autoridades. As obras católicas são confiscadas na fronteira. Em 1791, dois cristãos são executados por terem queimado as inscrições de seus ancestrais, crime supremo aos olhos do confucionismo, explica André Fabre. Em 1801, há nova repressão aos católicos, com 300 mortos. Em 1837, um missionário, o padre Philibert Maubant, é o primeiro estrangeiro a entrar na Coreia e inicia clandestinamente a catequização. Mas, descoberto em 1839, é executado. O governo francês exige justificativas da Coréia, mas não é atendido. Em 1866, ocorre um grave incidente. Uma navio americano, o General Sherman, aparece na embocadura do rio Taedong. Depois de alguns incidentes com a população local, o navio é incendiado e a tripulação assassinada.
No mesmo ano, o almirante francês Roze embarca para a Coreia com sete navios e desembarca na ilha de Kanghwado em 13 de outubro. A fortaleza e a cidade são tomadas após fraca resistência, e, alguns dias mais tarde, os franceses decidem atacar o mosteiro situado numa colina da ilha. Os comandados do almirante Roze não sabem que o mosteiro é ocupado por uma guarnição de caçadores. Os 170 franceses avançam a descoberto e são recebidos por fogo cerrado. Vinte e quatro horas mais tarde abandonam a ilha.
Os ocidentais recuaram, mas a determinação dos japoneses será incansável. Em 1875, um navio japonês ancora perto de Icheon e os tripulantes são atacados pelos habitantes. Um ano depois, os japoneses retornam, mais bem preparados, e obrigam os coreanos a assinar um tratado de comércio. Em 1822, porém, uma insurreição popular os expulsa. Quando os japoneses voltam, a Coréia aceita pagar uma indenização e concede a Tóquio o direito de dispor de uma guarnição militar em Seul. O Império do Sol Nascente afirma, assim, sua presença no “país da manhã fresca”. O Japão apóia o partido reformista, ao passo que a China apóia os conservadores. Após a guerra sino-japonesa de 1894-1895, o Japão, pelo tratado de Shimonoseki, de 1895, afasta a China, que é obrigada a reconhecer a independência da Coreia. Resta ainda um obstáculo para a expansão nipônica: a Rússia. É acordada uma partilha provisória russo-nipônica em 1896, mas, em 1904, as duas potências entram em guerra. O Japão é vencedor e, no tratado de Portsmouth, vê reconhecido seu predomínio na Coreia. Em 1907, os japoneses assumem o controle da administração e, em 1910, pura e simplesmente anexam o país.
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Conflitos entre Japão, Rússia e China: militares do Japão e da China esmagam representante da Coreia, observados por soldado russo (caricatura/1904)
O período da dominação japonesa (1910-1945) é marcado pelo desenvolvimento econômico da Coreia. As elites coreanas, entretanto, são excluídas dos cargos de direção e formam, a partir de 1919, um movimento de resistência nacional. Em conseqüência, criam um governo provisório no exílio, primeiro em Xangai e, depois, em Washington, sob a presidência do Dr. Syngman Rhee. Em plena II Guerra Mundial, durante a Conferência do Cairo (1943), os aliados decidem restaurar a independência da Coreia, projeto executado após a derrota do Japão. Mas a Coreia é dividida em duas zonas de ocupação, uma soviética, ao norte, e outra americana, ao sul, delimitadas pelo paralelo 38.
Assim, o verão de 1948 assiste à criação de dois Estados coreanos antagônicos: ao sul, a República da Coreia, presidida por Syngman Rhee; ao norte, a República Democrática Popular da Coreia, presidida pelo comunista Kim Il-sung. Após a evacuação simultânea das tropas soviéticas e americanas (1948-1949), a Coreia do Norte tenta reunificar o país pela força. Em 25 de junho de 1950, os norte-coreanos iniciam as hostilidades. Obrigados a abandonar Seul no dia 28, os sul-coreanos obtêm a intervenção dos Estados Unidos e de uma força das Nações Unidas, composta essencialmente por americanos. A contra-ofensiva empurra as tropas da ONU para a fronteira com a China. Os chineses contra-atacam e obrigam as forças da ONU a recuar novamente para além de Seul. Progressivamente, os americanos vão ganhando terreno e estabilizam a fronteira no paralelo 38, o que significa o retorno ao ponto de partida. O armistício de Panmunjon (27 de junho de 1953) restabelece a divisão da Coreia em dois Estados separados pela linha de cessar-fogo.
Ao norte, a ditadura comunista retoma a tradição do reino eremita. O déspota Kim Song-ju decidiu trocar seu nome pelo de Kim Il-sung, evocando a figura de um resistente dos primeiros anos da guerrilha contra o Japão. Mais tarde, Kim Il-sung propagará a história de que seu avô estava entre os combatentes que expulsaram a tripulação do General Sherman, assinala Pierre Rigoulot, autor de Coreia do Norte, Estado Rebelde (Buchet Chastel, 2003). Kim Il-sung, o Grande Líder, inspira nova ideologia, a djoutché que, em novembro de 1970, substitui o marxismo-leninismo. Conforme esclarece Pierre Rigoulot, a filosofia da djoutché consiste em afirmar o domínio de si, a independência em relação às influências estrangeiras, a auto-suficiência, mas o país é, nesta época, totalmente dependente da China e da URSS; essa filosofia exalta ainda o ser coreano e a vontade humana, mas acrescenta imediatamente que esta vontade exprime-se por meio do líder.
Após anos de constantes incidentes na linha de demarcação, as duas Coréias decidem cessar as hostilidades. Em 1972, os dois países assinam um acordo pelo qual renunciam a qualquer provocação. Entretanto, em 1987, os norte-coreanos derrubam um avião civil da Korean Airlines ocasionando 117 mortos. Pierre Rigoulot lembra que não foi apenas uma primeira tentativa: em 9 de outubro de 1983, uma bomba explode em Rangun, na Birmânia, na comitiva sul-coreana liderada pelo presidente do Sul, em visita oficial. Vinte e uma pessoas morrem, dentre elas quatro ministros.
Outra particularidade da Coreia do Norte é o culto à personalidade. Quando Kim Jong-il sucede seu pai, morto em 1994, a propaganda continua. A agência de imprensa oficial, a Korean Central News Agency, relata que, em 24 de novembro de 1996, o Bem-Amado Dirigente encontra-se em Panmunjon, a algumas centenas de metros das forças sul-coreanas e americanas. A região, então, é envolvida por espesso nevoeiro, o que permite ao Querido Líder transitar pelas posições inimigas sem ser observado.
Desde o fim da ajuda chinesa e, depois, da soviética, a economia norte-coreana está decadente. A fome teria provocado, em 1995, a morte de 3 milhões de pessoas. O único setor em desenvolvimento é a indústria militar. Em agosto de 1998, o Japão constatou o lançamento de um míssil norte-coreano, cuja trajetória passava através do espaço aéreo japonês e terminava no Pacífico. Pierre Rigoulot aponta que a arma, com alcance de 2.000 km, era, provavelmente, um Taepodong 1, embora a Coreia do Norte tenha dito que se tratava de um lançador de satélites. A partir de então, os especialistas têm certeza de que esses mísseis poderão, em breve, atingir a costa oeste dos Estados Unidos.
E quanto à carga lançada? Os norte-coreanos assinaram, em 1985, o tratado de não-proliferação nuclear; e até aceitaram, em 1994, desativar duas centrais nucleares em troca do fornecimento, pelos Estados Unidos, de 500 mil toneladas de petróleo por ano. Mas, em dezembro de 2002, Pyongyang enviou de volta os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, alegando que a ajuda era insuficiente: Em 2001, a Coreia do Norte, embora tenha ameaçado regularmente os seus vizinhos de mergulhá-los em um ‘oceano de chamas’, é o país que mais recebe ajuda em todo o mundo. A chantagem funciona a contento. No final de fevereiro, Washington anunciou o envio de 100 mil toneladas de alimentos para Pyongyang.
OS EUA AO ALCANCE DOS MÍSSEIS
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DOS TEMPOS DE SILLA À ERA DAS CENTRAIS NUCLEARES
©KRIKA/ARTES MAPAS
Em 1953, após a guerra (3,5 milhões de mortos, entre coreanos, chineses e americanos), a divisão da Coreia é oficializada.
O MATERIAL NUCLEAR CIVIL E MILITAR
A unidade de Yongbyon é capaz de produzir urânio militar. Segundo o diretor da CIA americana, a Coreia do Norte dispõe de uma ou duas bombas. O secretário de Defesa americano anuncia cinco ou seis para antes do verão.
Christophe Courau é historiador e jornalista.
Revista Historia Viva
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