Raízes do Brasil não é atual simplesmente porque o “homem cordial” sobreviveu, mas por estimular e gerar novas reflexões sobre nossa identidade
João Cezar de Castro Rocha
O provérbio ensina: o hábito faz o monge – não o oposto. Como o alferes Jacobina – do conto “O espelho”, de Machado de Assis – descobriu com alguma inquietude, sem o espelho proporcionado pelo olhar do outro, tornamo-nos invisíveis, sobretudo aos nossos próprios olhos. Habituado a ser reconhecido pela patente de alferes, Jacobina descobre que está sozinho, ou pior, cercado por escravos – possivelmente a forma mais cruel de solidão numa sociedade escravocrata. Longe de seus pares, ele logo começa a duvidar da sua própria existência social. Na cortante formulação de Machado, “o alferes eliminou o homem”.
Sérgio Buarque de Holanda deve ter recordado o conto de Machado ao delinear o perfil do brasileiro médio e estabelecer o conceito de “homem cordial”, para o qual “a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente de viver consigo mesmo”. Raízes do Brasil é uma modalidade do espelho de Machado de Assis – forma através da qual uma comunidade se reconhece.
A sociedade brasileira parece reconhecer-se neste conceito, pois ainda hoje é comum que se aceite a cordialidade como maneira adequada de autodefinição. Os brasileiros, portanto, são cordiais. Por isso, debater a noção é importante, pois se trata de rever o modo de pensar o país que nos coube.
Contudo, na visão de Sérgio Buarque, o homem cordial era uma sobrevivência do passado agrário e, portanto, um anacronismo vivo. A urbanização e a vida moderna inevitavelmente levariam à superação da cordialidade. Logo, o conceito não poderia definir uma brasilidade atemporal. Ninguém se surpreenderia mais do que o autor de Raízes do Brasil com a atualidade do seu conceito!
No mesmo ano da publicação de Raízes do Brasil, 1936, Gilberto Freyre publicou Sobrados e mucambos, obra em que também empregou o conceito de homem cordial. A compreensão dos dois autores, porém, é muito diferente. Enquanto Sérgio Buarque desejava revelar o caráter promíscuo da relação dos domínios do público e do privado, Freyre buscava assinalar “o equilíbrio de antagonismos”, ou seja, a capacidade de conciliação, tristemente célebre na política brasileira – de ontem, de hoje e de amanhã, o leitor acrescentará.
Mas a cordialidade já dispunha de intérpretes mesmo antes desses dois autores. O próprio Sérgio Buarque relata que “Ribeiro Couto teve uma expressão feliz quando disse que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’”. De fato, numa carta, datada de 7 de março de 1931 e endereçada ao escritor e diplomata mexicano Alfonso Reyes, Ribeiro Couto lançou a idéia. Na verdade, o poeta e diplomata brasileiro foi menos parcimonioso na definição, vislumbrando no homem cordial uma autêntica herança latino-americana:
“O egoísmo europeu, batido de perseguições religiosas e de catástrofes econômicas, tocado pela intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa daquela terra, a família dos homens cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à incredulidade. Numa palavra, o homem cordial.”
Como todo gesto arqueológico inaugura uma tarefa infinita, recorde-se que Manoel Bomfim, em O Brasil na América, numa seção intitulada “A cordialidade da taba”, já tocara no tema, embora compreendesse a cordialidade como traço característico dos indígenas brasileiros. E num ousado e criativo recuo cronológico, mencione-se a Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha, lida por tantos como o “documento” definitivo acerca da cordialidade dos indígenas que “acolheram” os navegadores portugueses. Para Ribeiro Couto, o homem cordial revelaria o êxito do processo histórico da miscigenação.
Gilberto Freyre levou tal interpretação a sua conclusão lógica, afastando-se totalmente do projeto de Sérgio Buarque. Ora, o historiador paulista interpretava o passado com olhos na modernização da década de 1930, cuja marca mais importante seria a superação da cordialidade. Já para o escritor pernambucano, em Sobrados e mucambos, o mesmo aspecto representaria uma marca positiva do caráter nacional, e via a cordialidade transbordante principalmente no mulato. Destacava que “o conde de Gobineau, que todo o tempo se sentiu tão mal entre os súditos de Pedro II, vendo em todos uns decadentes por efeito da miscigenação, reconheceu no brasileiro o supremo homem cordial: ‘très poli, très accueillant, très aimable [muito polido, muito acolhedor, muito amável]’.
Para se entender o contexto em que essas idéias surgiram, é importante lembrar que Ribeiro Couto escreveu a carta a Alfonso Reyes em Marselha, quando era cônsul-adjunto na França. De igual modo, Sérgio Buarque concebeu as idéias que ganharam corpo em Raízes do Brasil durante sua estada na Alemanha, de junho de 1929 a dezembro de 1930, época em que trabalhou como correspondente internacional. Gilberto Freyre atribuiu a Casa-grande & senzala inspiração similar e, no prefácio à primeira edição, fala de sua “aventura do exílio” como uma viagem ideal para os estudos e as preocupações que seu trabalho refletia. É como se estivéssemos condenados ao eterno retorno da máxima: à distância, parece mais fácil descobrir a própria terra. Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, entre tantos recriadores de particulares “canções do exílio”, parecem comprovar a intuição. Aliás, o parágrafo de abertura de Raízes do Brasil ofereceu a célebre fórmula: “(...) somos ainda uns desterrados em nossa terra”. É como se o exílio se transformasse na condição existencial do brasileiro.
Após retornar da Alemanha, Sérgio Buarque publicou alguns textos em que o núcleo do futuro livro já se esboçava. O mais importante desses textos apareceu em 1935, na revista Espelho. O ensaio denominava-se “Corpo e alma do Brasil” e representava um esforço de síntese do futuro livro. A primeira noção tratada nesse texto era a do homem cordial. Sua conclusão, abandonada no livro, torna-se cada dia mais instigante nas circunstâncias de um mundo globalizado: “Hoje somos um povo endomingado. Uma periferia sem um centro”. Teríamos perdido a espontaneidade cordial, comprometendo gestos e intenções num ritualismo avesso à formação histórica brasileira. Delineava-se assim uma geografia incerta, habitada por homens cordiais, desterrados num país-continente.
Em entrevista ao historiador Richard Graham, Sérgio Buarque esclareceu que escreveu seus artigos tentando explicar o Brasil para os alemães. Para ele, “só quando você está longe é que consegue ver seu próprio país como um todo”. Ele conta que pretendia escrever um livro cujo título seria Teoria da América. O livro nunca foi publicado, mas dois capítulos deram origem a Raízes do Brasil e foram tirados praticamente sem modificações daquelas páginas em desordem.
O conceito de cordialidade, síntese da formação social brasileira, já se encontrava nesses textos. O homem cordial seria aquele que vive ao sabor de paixões extremas, dominado pelo coração – em latim, cor; daí, cordial. Ele é o filho dileto da família patriarcal, sentindo-se perdido no mundo impessoal da esfera pública; só se sente em casa na própria casa, na esfera privada, caracterizada pelas relações pessoais e pelo afeto. As conseqüências de tal disposição afetam diretamente a condução da coisa pública: “Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição”. O homem cordial se define por “um fundo emocional extremamente rico e transbordante”. Por isso, sempre favorece o grupo dos amigos, em vez de zelar pelo interesse público.
Sérgio Buarque, contudo, foi otimista, pelo menos no tocante à resistência do comportamento cordial. Para ele, a urbanização na década de 1930 levaria à superação da cordialidade, já que a racionalização dos meios de produção exigida pelo mundo moderno deveria domar os impulsos anárquicos do homem cordial.
No entanto, o homem cordial ainda é nosso vizinho; nos rituais mais simples do cotidiano, lá está ele. A bem da verdade, ele quer dizer todos nós, inclusive o autor e o leitor deste artigo: eu e você, bem entendido. Não se trata, portanto, de adjetivar o comportamento do homem cordial, tampouco de lamentar sua longevidade ou celebrar sua sobrevida. Pelo contrário, devemos prestar a Sérgio Buarque a única homenagem que se deve oferecer a um pensador fundamental: transformar sua obra em estímulo constante para a renovação do pensamento. É preciso abandonar a cordialidade ornamental. O que necessitamos é compreender as estratégias de sobrevivência do homem cordial – isto é, investigar as razões de sua permanência no universo brasileiro. O espelho que produz a imagem. A cordialidade nossa de cada dia. A atualidade de Raízes do Brasil.
João Cezar de Castro Rocha é professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de O exílio do homem cordial – Ensaios e revisões (Editora do Museu da República, 2004) e organizador do livro Cordialidade à brasileira: mito ou realidade? (Editora do Museu da República, 2005).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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