Semíramis Corsi Silva
medeiapoetisa@yahoo.com.br
Mestre em História/UNESP-Franca
Profª Coord. Do curso de História – UNIESP (São Sebastião do Paraíso-MG)
1) Introdução
Os fenômenos conhecidos como magia, feitiçaria e bruxaria, têm despertado um grande interesse em estudiosos de diversas áreas como Antropologia, Arqueologia e História. Nosso interesse inicial pelo tema foi despertado durante o mini-curso “Magia e Poder no Império Romano”, ministrado pelo Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva[i], por ocasião do XX Encontro Nacional de Estudantes de História, no ano de 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desde então, passamos a reunir fontes bibliográficas e documentais que tratassem, mesmo que em pequenas passagens, o tema da magia no mundo romano, constatando uma superioridade de trabalhos para o período medieval, em detrimento do período clássico greco-romano.
Ainda na fase das leituras bibliográficas, verificamos que as fontes arqueológicas e os dados epigráficos mostravam que o cenário da magia clássica era basicamente masculino. Os papiros e tabletes com imprecações mágicas[ii] descobertos pelos arqueólogos, no território greco-romano, colocavam o homem como o praticante da magia, em superioridade à mulher, geralmente em rituais de magia amorosa. (GRAF, 1994, p. 211). Este dado arqueológico nos intrigou, já que havíamos percebido que nas fontes textuais, na literatura do período do Alto Império Romano, era a mulher que estava representada como feiticeira, seja ela de magia erótica ou de outra natureza.
É importante notarmos que a imagem da feiticeira velha, má, vestida de negro, com os cabelos desgrenhados e unhas compridas é comumente aceita como uma criação da literatura cristã medieval. Porém, mais uma vez podemos notar as influências da cultura romana no pensamento Ocidental, sendo tal estereótipo nada mais que uma criação dos poetas latinos. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é demonstrar a imagem da mulher feiticeira nas obras dos poetas Horácio e Ovídio, ambos importantes poetas romanos, contemporâneos do Principado de Augusto. Visamos compreender possíveis motivações que levaram estes poetas a criar tal representação através da análise de suas obras (mais especificamente dos poemas Épodo III, V, XVI, XVII e Sátira V de Horácio e Os remédios do amor, Amores VIII, Os fastos e Arte de amar de Ovídio), dentro da concepção vigente no período sobre magia, moralização e relações de gênero.
A originalidade de uma pesquisa não depende apenas da investigação de documentos inéditos, mas da colocação de novas questões elaboradas a partir da documentação existente. Desta forma, acreditamos que a abordagem historiográfica do nosso tema se justifique, posto que relacionar práticas de magia e universo feminino em Roma além de ser um assunto pouco estudado contribui para um melhor entendimento sobre o papel da mulher nas religiões pré-cristãs, tendo em vista uma relação de hierarquização entre homem e mulher em diversos aspectos da vida pública e privada.
2) Considerações sobre a magia em Roma
A crença em poderes mágicos pode ser interpretada como um fenômeno sociocultural, sendo recorrente em inúmeras sociedades. Suas origens remontam a tempos e espaços amplamente divergentes, aspecto que funda um consenso entre os estudiosos sobre um conjunto de práticas e representações mágicas inerentes à todas culturas. Tais práticas perpetuam-se ao longo do tempo, influenciando-se e adaptando-se através de uma relação dinâmica junto a outros saberes sociais (SANTOS, 1999, p. 11).
Tal crença generalizada foi amplamente conhecida pelos romanos. Tanto na literatura, em tratados naturais e nas leis verificamos que houve uma grande preocupação dos romanos com a magia. Entretanto, deve-se fazer uma distinção entre a sobrevivência de práticas mágicas na religião oficial e os usos populares da magia. Assim, separam-se as formas de magia entre práticas introduzidas nos rituais de deuses cujo ritual incorporava ritos de cunho mágico (como a festa da Lupercalia[iii], por exemplo) e práticas secretas, consideradas maléficas.
Assim, separa-se as formas de magia em Branca e Negra, termos que permanecem populares até nossos dias e que exprimem intuitivamente a convicção de que do ponto de vista social uma é pública e benéfica, a outra é secreta, anti-social e maléfica na sua essência. Para Anne-Marie Tupet (1976, p. XII), a magia negra se identificaria justamente com as práticas de feitiçaria, havendo na Antiguidade uma distinção análoga entre theurgia (ciência – magia como filosofia fundamentada) e goetia (práticas mágicas vulgares). Jeffrey Burton Russell (1993, p.16) coloca que a forma suprema de magia na Grécia era conhecida como theourgia, o que significava trabalhar coisas pertinentes aos deuses. Uma theourgia benevolente se aproximava da religião. Um grau considerado inferior destas práticas era conhecido como mageia e se aproximava da feitiçaria. Abaixo da mageia estava a goetia, práticas rudimentares, despretensiosas e de cunho mágico. Porém Barb (1989, p. 117) diz ser difícil traçar uma linha entre o bom e o mau porque muitas vezes as duas práticas se misturam[iv].
medeiapoetisa@yahoo.com.br
Mestre em História/UNESP-Franca
Profª Coord. Do curso de História – UNIESP (São Sebastião do Paraíso-MG)
1) Introdução
Os fenômenos conhecidos como magia, feitiçaria e bruxaria, têm despertado um grande interesse em estudiosos de diversas áreas como Antropologia, Arqueologia e História. Nosso interesse inicial pelo tema foi despertado durante o mini-curso “Magia e Poder no Império Romano”, ministrado pelo Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva[i], por ocasião do XX Encontro Nacional de Estudantes de História, no ano de 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desde então, passamos a reunir fontes bibliográficas e documentais que tratassem, mesmo que em pequenas passagens, o tema da magia no mundo romano, constatando uma superioridade de trabalhos para o período medieval, em detrimento do período clássico greco-romano.
Ainda na fase das leituras bibliográficas, verificamos que as fontes arqueológicas e os dados epigráficos mostravam que o cenário da magia clássica era basicamente masculino. Os papiros e tabletes com imprecações mágicas[ii] descobertos pelos arqueólogos, no território greco-romano, colocavam o homem como o praticante da magia, em superioridade à mulher, geralmente em rituais de magia amorosa. (GRAF, 1994, p. 211). Este dado arqueológico nos intrigou, já que havíamos percebido que nas fontes textuais, na literatura do período do Alto Império Romano, era a mulher que estava representada como feiticeira, seja ela de magia erótica ou de outra natureza.
É importante notarmos que a imagem da feiticeira velha, má, vestida de negro, com os cabelos desgrenhados e unhas compridas é comumente aceita como uma criação da literatura cristã medieval. Porém, mais uma vez podemos notar as influências da cultura romana no pensamento Ocidental, sendo tal estereótipo nada mais que uma criação dos poetas latinos. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é demonstrar a imagem da mulher feiticeira nas obras dos poetas Horácio e Ovídio, ambos importantes poetas romanos, contemporâneos do Principado de Augusto. Visamos compreender possíveis motivações que levaram estes poetas a criar tal representação através da análise de suas obras (mais especificamente dos poemas Épodo III, V, XVI, XVII e Sátira V de Horácio e Os remédios do amor, Amores VIII, Os fastos e Arte de amar de Ovídio), dentro da concepção vigente no período sobre magia, moralização e relações de gênero.
A originalidade de uma pesquisa não depende apenas da investigação de documentos inéditos, mas da colocação de novas questões elaboradas a partir da documentação existente. Desta forma, acreditamos que a abordagem historiográfica do nosso tema se justifique, posto que relacionar práticas de magia e universo feminino em Roma além de ser um assunto pouco estudado contribui para um melhor entendimento sobre o papel da mulher nas religiões pré-cristãs, tendo em vista uma relação de hierarquização entre homem e mulher em diversos aspectos da vida pública e privada.
2) Considerações sobre a magia em Roma
A crença em poderes mágicos pode ser interpretada como um fenômeno sociocultural, sendo recorrente em inúmeras sociedades. Suas origens remontam a tempos e espaços amplamente divergentes, aspecto que funda um consenso entre os estudiosos sobre um conjunto de práticas e representações mágicas inerentes à todas culturas. Tais práticas perpetuam-se ao longo do tempo, influenciando-se e adaptando-se através de uma relação dinâmica junto a outros saberes sociais (SANTOS, 1999, p. 11).
Tal crença generalizada foi amplamente conhecida pelos romanos. Tanto na literatura, em tratados naturais e nas leis verificamos que houve uma grande preocupação dos romanos com a magia. Entretanto, deve-se fazer uma distinção entre a sobrevivência de práticas mágicas na religião oficial e os usos populares da magia. Assim, separam-se as formas de magia entre práticas introduzidas nos rituais de deuses cujo ritual incorporava ritos de cunho mágico (como a festa da Lupercalia[iii], por exemplo) e práticas secretas, consideradas maléficas.
Assim, separa-se as formas de magia em Branca e Negra, termos que permanecem populares até nossos dias e que exprimem intuitivamente a convicção de que do ponto de vista social uma é pública e benéfica, a outra é secreta, anti-social e maléfica na sua essência. Para Anne-Marie Tupet (1976, p. XII), a magia negra se identificaria justamente com as práticas de feitiçaria, havendo na Antiguidade uma distinção análoga entre theurgia (ciência – magia como filosofia fundamentada) e goetia (práticas mágicas vulgares). Jeffrey Burton Russell (1993, p.16) coloca que a forma suprema de magia na Grécia era conhecida como theourgia, o que significava trabalhar coisas pertinentes aos deuses. Uma theourgia benevolente se aproximava da religião. Um grau considerado inferior destas práticas era conhecido como mageia e se aproximava da feitiçaria. Abaixo da mageia estava a goetia, práticas rudimentares, despretensiosas e de cunho mágico. Porém Barb (1989, p. 117) diz ser difícil traçar uma linha entre o bom e o mau porque muitas vezes as duas práticas se misturam[iv].
De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2003, p. 212), Flitz Graf, em estudos de papiros mágicos gregos, demonstrou não haver nenhuma distinção formal entre a prece feita por um mago e aquela feita por um sacerdote. Uma característica da interpenetração destas práticas pode ser evidenciada na evocação (ato de atrair espíritos para auxiliar rituais de magia e adivinhações diferente de invocação, ao de fazer descer o espírito sobre um corpo) de deuses da religião oficial greco-romana nos rituais mágicos.
Na literatura os romanos criaram personagens, buscaram inspirações e referencias nas gregas Circe da Odisséia e Medéia da tragédia homônima de Eurípides, e também se mostraram muito originais, podemos citar vários autores: Plínio, o antigo, Horácio, Ovídio, Virgílio, Petrônio, Lucano, Filostrato, Sêneca e Apuleio. Destaca-se que a maioria dos romanos acreditavam ser tais práticas maléficas e orientais. Para Plínio, o antigo, a magia era uma falsa medicina de origem no mundo persa de Zoroastro, porém ao chegar no solo itálico assemelhou a alguns ritos autóctones (GRAF, 1994, p. 61).
Constatamos que mesmo que representada como uma prática essencialmente feminina pelos romanos, como já exposto por nós, as fontes arqueológicas e dados epigráficos latinos nos revelam uma verdade sobre a magia romana: o cenário era basicamente masculino. Os papiros e tabletes com imprecações mágicas (os famosos defixios, tabuletas de chumbo encontradas em poços, leitos de rios e antigos cemitérios por arqueólogos) colocam o homem como praticante da magia em superioridade à mulher. As imprecações destes tabletes se voltam principalmente para situações de rivalidades e conflitos sociais (amorosos, comerciais, processos jurídicos, disputas esportivas), com a intenção de intervir na ordem dos acontecimentos.
Em relação às leis romanas, o crime de magia foi proibido em toda tradição jurídica latina. Pela Lei das XII Tábuas, escrita em meio a uma sociedade basicamente agrária, o praticante de magia era punido por usar de sortilégios para transportar a colheita de um vizinho para seu próprio campo e usar conjuros para causar danos a alguém. Em ambos os casos a pena era a morte por fustigação. Em 81 a.C. foi instituída por Sila a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis que daí em diante pontuou as ações legais contra a magia. Nesta lei temos a punição àqueles que atentarem contra a vida de outrem a mão armada, a confusão se dava devido ao veneno usado para o assassinato receber o mesmo nome que a poção mágica (veneficium).
Com Augusto vemos o agravamento das penalidades contra magos e adivinhos considerados uma criação de poderes paralelos dentro do Império. Em 33 a.C. Agripa, edil e homem de confiança de Augusto, proíbe a permanência de magos e adivinhos no território de Roma.
É neste sentido de proibição da magia pelas leis e de oposição entre prática (algo colocado pelas fontes arqueológicas como superiormente masculino) e representações literárias (em sua totalidade femininas) que buscaremos compreender as referências à feitiçaria nos poemas de Horácio e Ovídio.
3) As representações da feitiçaria em Horácio e Ovídio
3.1) O poeta Horácio (65 – 8 d.C.)
O poeta lírico satírico Horácio foi um escritor oficial do Imperador Augusto, deixando em suas obras traços desta sua opção política através de escritos que exaltavam a figura do Imperador e pregavam as mesmas censuras e padrões morais pautados nas suas leis, assim como a preocupação constante de Augusto com a preservação dos costumes ancestrais, como nos trechos abaixo:
Quando tantos negócios e tão graves
Só nos teus ombros, pesam o Império
Com as armas solícito proteges
Com leis corriges, com a virtude ilustras, contra o público bem pecara, ó César,
Detento-te com prática prolixa. (HORÁCIO, Epístolas, II, I, 1906)
Dilapidar de nossos pais a herança,
Boa reputação perder é sempre. (HORÁCIO, Sátiras, I, II, 83 ao 84).
O sábio te dirá, por que motivos
Devas isto evitar, seguir estoutro;
A mim basta-me, ó filho, que te ensine
A guardar dos avós os bons costumes (HORÁCIO, Sátiras, I, IV, 158 ao 161).
Em relação à magia, Horácio a colocou a serviço das paixões humanas. Seus textos são cheios de detalhes ricos e precisos, cada poema apresenta uma problemática particular, mas em todos aparecem as mesmas personagens e características análogas, variando apenas o tom.
No Épodo III, Horácio descreve a crueldade da feiticeira Medéia em uma tentativa de alertar o amigo Mecenas sobre o perigo de se envolver com tais moças, identificando a magia com a fabricação de venenos. Neste poema já aparece Canídia, feiticeira de presença constante nos seus versos. Muitos estudiosos acreditam ser esta personagem baseada em uma famosa perfumista napolitana amiga de Horácio chamada Gratídia, outros colocam que ela era uma amante do poeta que tendo o rejeitado lhe despertou a raiva. Acreditamos, porém que o nome Canídia tenha sido etimologicamente criado pelo poeta, assim o sufixo canis,i (em latim cachorro) teria sido empregado com o prefixo idius-idia (esbranquiçado). Desta forma, podemos interpretar que Horácio colocou a feiticeira como uma velha de cabelos brancos, comparada com uma cadela, assim Canídia e sua companheira Sagana uivam na Sátira VIII e chama Canídia de cadela esfomeada no Épodo V.
Com a velha Sagana errar uivando:
Dava-lhe palidez hediondo aspecto:
Entram a esgravatar o chão coas unhas;
Rasgam c’os dentes negra cordeirinha;
Derramam sobre a cova o quente sangue,
Para ali os Manes atraídos,
Aos nefandos conjuros lhes respondam. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 35 ao 41).
Das fauces da cadela esfomeada (HORÁCIO, Épodos, V, verso 31)
A identificação da bruxa na Antiguidade Clássica com os cães talvez esteja relacionada por serem estes companheiros de Hécate, a deusa padroeira da magia greco-romana. Conforme E. Burris (Apud TUPET, 1976, p. 311), os cães seriam como companheiros das bruxas pelos caminhos errantes da magia negra, sempre noturna, o horário mais propício para práticas ilícitas. Na Idade Média, quando a bruxaria tomará formas judiciais mais sérias e extensivas, este companheiro mudaria para o gato, animal identificado com o demônio e com a traição. Destacamos, porém que são sempre animais noturnos, assim como a coruja e o sapo aparecem em representações, ou seja, é na noite que estas práticas tomam forma.
A bruxa Sagana, por sua vez, teria seu nome vindo do vocábulo saga, que significa feiticeira ou sábia em latim, saga/ae. Por ser a magia considerada um saber pelos romanos, ela seria, desta maneira, a feiticeira por excelência. Segundo Cícero, sagire significa compreender de forma penetrante e por isso se relacionaria a bruxa, aquela que parece saber muita coisa, também os cachorros são chamados de sagaces. (MONTERO, 1996, p. 46). O nome de Folia estaria relacionado a maneira que eram chamadas as cortesãs no grego e Veia seria uma palavra que Horácio usou para se aproximar do nome do Deus infernal Vedius (TUPET, 1976, p. 297).
No Épodo V, intitulado Contra Canídia feiticeira, Horácio irá relatar a morte cruel de uma criança para a preparação de um filtro de amor. Outros autores, como Lucano (Farsália) fizeram alusão a este tipo de crime que era uma crença popular no período. (BAROJA, s.d. p. 56). Assim como a morte de uma criança com finalidades mágicas acreditava-se que as mulheres grávidas eram sacrificadas para tirar delas o feto. A morte de uma criança é assassinato forçosamente premeditado, recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis. Uma inscrição encontrada no Esquilino, no túmulo de Iucundus, uma criança de quatro anos, nos remete a tradição desta crença em mortes de crianças com finalidades mágicas.
A feiticeira de mão cruel me arrancou a vida (Eripud me saga manus crudelis); enquanto esteja sobre a terra e faça dano com sua arte, vós, pais protegei vossos filhos! (MONTERO, 1996, p. 184).
As feiticeiras portam os cabelos soltos e em desordem, assim, como Medéia que é descrita sempre com cabelos sobre os ombros. Canídia traz ainda pequenas serpentes sobre seus cabelos. De acordo com Anne-Marie Tupet (1976, p. 288), a idéia de trazer serpentes nos cabelos está associada à certas divindades infernais, como Hécate e as Fúrias. Tal representação era comum entre os poetas e artistas da Antigüidade que se referiam sempre à personagens mitológicos em suas obras.
Em um ritual de consagração do local aparece a feiticeira Veia. Ela corre desesperadamente, borrifa a terra, cava o solo e arruma a cova onde a criança será enterrada. Nesta mesma passagem, Horácio descreve o local onde estão as feiticeiras: uma casa. Veia demonstra estar em um estado de agitação, ela corre pela casa com os cabelos arrepiados e sem remorso de praticar um ato tão cruel.
Depois, correndo em torno,
A feroz maga, os ângulos da casa:
Borrifa a nua terra
Com o licor que tirou do estio lago.
Qual javali que foge
Qual o marinho ouriço, se lhe irriçam
Na cabeça os cabelos;
Veia insensível ao grito
Á voz da consciência,
Com a dura enxada escava a terra fria,
E geme de trabalho;
Forma cova profunda onde soterre
O mísero menino. (HORÁCIO, Épodos, V, 32 ao 44).
As feiticeiras usarão o fígado e as medulas do menino, que segundo o próprio poema se acreditava serem elementos de um poderoso filtro, sem dúvida o poder do filtro estava no fato de ter sido obtido ao preço de uma vida humana.
E arrancando-lhe o fígado, e as medulas
Para formar um filtro
Poderoso em amor, quando em seus olhos
Fitos nas iguarias (HORÁCIO, Épodos, V, 53 ao 56).
Outra feiticeira aparece nos próximos versos, é Folia, que faz descer a lua do céu e que segundo o próprio poeta não podia faltar no ritual. A lua, símbolo da noite está presente nas representações de rituais mágicos, propicia aos mistérios e ao secreto, é na noite, que por sua obscuridade favorável às obras infames e ao crime, que as feiticeiras praticam seus rituais tendo sempre a lua como fundo do cenário nos poemas.
Se embacisse a luz: já não faltava
Ao feitiço horroroso,
Mais que a torpe Folia a cujo encanto
Dos céus se despegavam
A branca lua, as lúcidas estrelas. (HORÁCIO, Épodos, V, 57 ao 61).
Canídia volta à cena, roendo as unhas e parecendo estar nervosa, suas unhas são negras, dando um aspecto horrendo, é ela que evoca os deuses do ritual, suas ordens nos mostram uma divisão hierárquica entre as feiticeiras, Veia e Folia aparecem neste poema como Sagana nos demais, apenas como ajudantes de Canídia, no Épodo III, XVI, e XVII, só aparece Canídia, o que prova a relação de superioridade que Horácio representa nesta personagem.
Eis chega a feiticeira,
Canídia está roendo as negras unhas,
Que meditou, que disse?
Testemunhas fiéis destas fadigas,
Que reinas no silêncio,
Quando mágicos se formam. (Horácio, Épodos, V, 64 ao 69).
Horácio cita os padroeiros das feiticeiras: a deusa Diana[v] e os numes vingadores, escreve sobre cães citando o bairro pobre de Suburra, refere-se ao vestido enfeitiçado de Medéia e demonstra a feiticeira tentando quebrar um feitiço com outro mais poderoso. Canídia deixa clara a intenção do feitiço: trazer seu amado Varo de volta, ela mostra seu grande amor e seu sofrimento por não tê-lo e descreve os poderes que terá seu sortilégio.
A última parte do poema se caracteriza pela maldição que roga a criança às feiticeiras, vendo que já não há mais como evitar sua morte ele as amaldiçoa dizendo que não as deixará dormir e serão apedrejadas pela plebe que lhes vingará, assim como os manes e as Fúrias[vi] que ele invoca.
A tais palavras o infeliz menino
Já não procura meigo tais monstros abrandar, suspenso um pouco
Rompe o silêncio, e brada,
Como bradava o mísero Tiestes,
As fúrias invocando
Podem, malvados os encantos vossos
Contra os monstros mesquinhos
Contra os clamores da justiça, podem,
Porém não vos isentam
Da merecida pena, e tal delito.
As vítimas não pagam.
Devo expirar enfim; mas sombra nua,
Como noturno espectro,
Ululando continuo, o atroz semblante,
Vos rasgarei raivoso;
O sono espancou de vossos olhos,
Com fúnebres bramidos
(Terão tal força os indignos manes)
A plebe alvoraçada
Vos irá de apedrejar de rua em rua;
Infames feiticeiras,
Hão de ser vossos lacerados membros
Posto de ferozes lobos,
Posto de corvos de Esquilino monte
E meus pais desgraçados,
Possam ver com seus olhos inda um dia
Esta horrorosa cena. (HORÁCIO, Épodos, V, 112 ao 143).
A Sátira VIII, conhecida como Refere-se Priapo às feiticeiras Canídia e Sagana ou O Deus Priapo contra as feiticeiras Canídia e Sagana, é considerada pelos críticos da obra de Horácio como a sátira de caráter mais agressivo escrita pelo poeta. Neste poema, Horácio imagina um tronco de figueira no qual foi esculpida a figura do Deus Priapo, assistindo a cena que a já conhecida Canídia, feiticeira dos Épodos, e sua companheira Sagana procedem encantamentos e magias.
Diferente do Épodo V, a Sátira VIII não possui um tom trágico e sim um humor satírico. O local do ritual é o Esquilino, antigo cemitério de escravos e pobres que Mecenas transformou em um grande jardim, onde as feiticeiras vão buscar ervas e ossos. Quem descreve toda cena é o indignado espantalho de madeira, imagem do Deus Priapo.
Como no Épodo V, as feiticeiras encontram em um grande estado de agitação, elas escavam a terra com as unhas e rasgam um cordeiro com os dentes, um gesto sem dúvida ritual, mas que implica em uma profunda agitação. Segundo Anne-Marie Tupet (1976, p. 293), as feiticeiras da Antigüidade conheciam as propriedades de drogas tóxicas de origem vegetal, o uso destas drogas poderia ser a causa destes estado de transe e movimentação rápida durante os rituais.
Tal representação mais do que uma fantasia do poeta poderia reproduzir uma realidade da feitiçaria antiga. Também na Écloga VIII de Virgílio, pode ser notado este estado de agitação da feiticeira. Anne-Marie (1976, p. 301) acrescenta que este é um gesto ritual comum, praticado pelas bacantes que usavam vinho para entrar em êxtase. As drogas, o haxixe em especial, eram absorvidas como poções, fumo ou ungüentos.
Horácio coloca Canídia, como no Épodo V, com os cabelos soltos e em desordem, o que talvez fosse uma forma usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto engraçado. Seus trajes são reconstruídos pelas indicações do poeta: Canídia usa uma longa toga preta e tem os pés descalços, já em Horácio notamos um estereótipo comum às feiticeiras que dura até os dias atuais.
Eu mesmo vi Canídia - solta a grenha,
Nus os pés, sobraçada a negra toga. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 33 e 34).
Em seguida, vemos um rito consagrado na magia de todos os tempos: o uso de figuras com a finalidade de representar o que se quer atingir. As feiticeiras trazem duas estátuas, uma de cera e outra de lã, objetos que nos remetem à Lei da Similaridade de Frazer – imagem e objeto semelhante que serve para sua representação. A cera tem uma maior recorrência neste tipo de operação, vemos mais referências a este material nas descrições mágicas em diversas obras, mas a lã é um elemento novo, pouco conhecido.
De acordo com J. Pley (TUPET, 1976, p. 303), a lã seria usada em práticas mágicas com valores medicinais, religiosos e mágicos por fornecer o material para as bandagens empregadas em curativos, estando associada com o desatar de magias. Esta colocação nos faria supor que o rito descrito nesta Sátira seria um ritual que busca desfazer uma magia. Horácio não descreve, como faz no Épodo V, a vítima da magia, nos permitindo levantar várias suposições, podendo este rito ser de magia amorosa ou vingativa, o que é fato é que a figura de lã se mostra superior podendo representar Canídia ou a pessoa que quer desatar uma magia e a de cera, que amedrontada representa a pessoa que se quer atingir, o feitor do outro ritual. Mas a feitiçaria também poderia ser para Sagana ou para alguém que contratou o serviço das feiticeiras. Ao evocar a fúria Tisífone, a magia pode demonstrar ter um valor de vingança. Tanto a magia vingativa quanto a amorosa foram comuns em Roma, como demonstram os defixios.
Neste momento o espantalho do Deus Priapo não agüenta mais ver a cena e emite terríveis sonidos com os quais coloca em fuga as duas feiticeiras.
O tronco me estalou, bem como estala
Disparada bexiga. Ei-las em fuga
Para a cidade; e não sem grande riso
E grande zombaria, cair viras
Os dentes a Canídia, e à vil Sagana
A levantada cabeleira, as ervas,
E dos braços os vínculos do encanto. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 67 ao 73).
Nos versos acima vemos uma descrição cômica e satírica das feiticeiras, que lhes expõe ao ridículo. Canídia perde os dentes e Sagana, de cabelos arrepiados, deixa as ervas que recolheu no cemitério cair dos braços. O fato dos dentes de Canídia caírem pode nos indicar o uso de uma dentadura o que poderia se referir à idade da personagem como uma mulher um pouco mais velha.
No Épodo XVI, intitulado À Canídia, temos o poeta pedindo à feiticeira que não mais use de seus feitiços e não se volte contra ele por tê-la atacado em seus versos. Ele associa os feitiços ao mal, ao inferno, pede por Prosérpina, a Perséfone romana, e por Diana, as mesmas deusas que as bruxas pedem por ajuda, Horácio ainda se mostra crente no poder da magia.
Canídia eu cedo enfim, e as mãos entrego
Vencido os conjuros.
Humilde, eu te suplico pelo horrendo
Trono de Prosérpina;
Por Diana também, tremendo nume;
Pelos mágicos versos
Que podem desempenhar dos céus os astros,
Que nunca mais profiras
Místicas vozes de fatais encantos,
Que abandones de todo
A veloz roda de infernais feitiços. (HORÁCIO, Épodos, XVI, 1 ao 11).
O poeta fala da punição se referindo à sua idade e trata Canídia com carinho. Ele escreve sobre perfumes ao se referir às poções mágicas, o que pode fazer uma alusão ao que é colocado por alguns estudiosos de ser Canídia uma famosa perfumista amiga de Horácio. Mais uma vez ele mostra acreditar nos sortilégios e pede para que Canídia não se vingue dele. Horácio demonstra Ter medo das feiticeiras. A. Kiessiling e R. Heinze (TUPET, 1976, p. 329) acreditam que o acúmulo de medo e a inquietude dos espíritos supersticiosos pode ser traduzida em um sentimento irônico de superioridade sobre as coisas, o que Horácio parece fazer na Sátira VIII, assim, para este poeta a magia deve ser ridicularizada à fim de sua desmistificação. (grifo nosso).
No Épodo XVII, intitulado Resposta de Canídia, Horácio escreve como em uma simulação as respostas da feiticeira a seus conjuros. Ela diz não perdoar o poeta que através de seus versos a tornou a fábula do povo. Canídia responde que não irá matá-lo, mas o desgraçará, seus dias serão mais longos e ele preferirá a morte.
3.2) O poeta Ovídio (43 a.C. –17 d.C.)
Típico filho da elite romana, Ovídio nasceu na cidade do Lácio e provinha de uma família eqüestre. Quando jovem foi para Roma continuar seus estudos. Diferente de Horácio, Ovídio não simpatizava com as condições políticas de sua época, acreditando que Augusto governava como um monarca despótico apesar do esforço para demonstrar o contrário. O poeta pertencia a uma geração que não se formou em meio à guerra civil e, embora bastante capaz de produzir um poema patriótico, já não se interessava muito pelo nacionalismo e pela moral augustana. Freqüentando as cortes dos poetas profissionais, notadamente a de Messala, adversário de Augusto, não alcançou as simpatias do Imperador como Horácio e Virgílio.
No ano de 8 d.C., o poeta foi mandado para o exílio em Tomos (atual cidade de Constância na Romênia). Ele descreve as acusações que o levaram a esse resultado como “um poema e um erro”, referindo-se ao poema Arte de amar, considerado demasiado imoral para padrões impostos por Augusto, pois Ovídio ria cinicamente da sociedade metropolitana refinada. O erro de que o poeta fala, pode estar relacionado com o adultério da neta de Augusto. Conforme nos indica Grant (1987, p. 238) “o Imperador talvez suspeitasse que Ovídio sabia demais e não se calara sobre o que sabia”. A maioria dos historiadores acredita que o envolvimento do poeta nos escândalos de Julia foi o fator do exílio de Ovídio, pois Augusto não queria ver sua obra moralizadora ridicularizada com as atitudes de sua neta.
O tema freqüente da poesia de Ovídio foi o amor[vii], não deixando porém de retratar a feitiçaria antiga. Em Ovídio a bruxa é uma alcoviteira, ela aparece como uma velha má e há referências ao arquétipo da bruxa antiga: Medéia. Poderosa ela faz, na Canção VIII dos Amores, rios voltarem às suas fontes, o céu abrir, renasce o dia, retira sangue da lua, cava um buraco no chão com as próprias unhas, assim como os cães e as bruxas de Horácio na Sátira VIII.
Vós, que não conheceis tártea velha,
Vil corretora de venais carícias,
Lede nos seus versos meus o retrato.
- Sorvedouro de vinho – a chama o vulgo
Nunca livre dos báquicos vapores
Viu de Memnos a mãe o róseo carro;
Entende a fundo os mágicos segredos;
Os versos canta a feroz Medéia.
E os rios para trás remete às fontes;
Sabe a virtude à grama, ao rombo em giro,
Ao vírus seminal de égua ciosa;
Quando lhe apraz, no céu se apinham nuvens;
No céu quando lhe apraz, renasce o dia.
Eu vi a sua voz, se fé mereço,
Os astros destilar sangüíneas gotas,
E em cruento rubor tingir-se a lua
Suspeito que nas trevas esvoaça,
Perdida a antiga forma, e revestido
O corpo anosos de encantadas plumas
Suspeito... e é fama. Dúplices pupilas
Vibram dos olhos seus fulmíneo lume.
Avós e bisavós extrai das campas,
E rasga o duro chão c’os longos carmens. (OVÍDIO, Canção VIII, Terceira de Amores, 1 ao 23).
Em Ovídio vemos a metamorfose da feiticeira, ela muda de forma e se reveste de plumas, mata crianças como as de Horácio. Temos ainda a difusão da crença no poder da bruxa de se transformar em striga (espécie de pássaro) em Os Fastos. O termo striga parece ter dado origem ao termo bruxa em latim (striga/ae) e no próprio italiano (bruxaria/stregoneria, bruxo/stregone).
Existem de brutal voracidade
Umas infames aves; não já essas,
Que de Fineu a mesa espoliavam,
Mas da mesma relé; cabeça grande,
Fito olhar, bico audaz, grisalhas plumas,
Garra adunca; esvoaçavam pela noite;
Onde encontram criança ao desamparo,
Que a ama deixou só, prestes a empolgam,
Arrancam-na do berço, e a dilaceram;
Diz que as lactentes vísceras com os rostros
Lhes picam, lhes devoram; têm as fauces
Sempre repletas de sorvido sangue.
Do estridor, com que as trevas alvorotam,
Lhes vem o nome, estrigas se nomeiam. (OVÍDIO, Os Fastos, Estriges).
Na obra Remédios para o amor e na Arte de Amar, espécies de manual para “dores de cotovelo” a primeira, e arte da sedução e amor a segunda, Ovídio aconselha as pessoas que não façam uso de práticas mágicas, diz que o caminho do maléfico é proibido e em nada vale em assuntos amoroso, cita Circe que mesmo depois de usar da magia não consegue atrair Ulisses, cita também Medéia que com todo seu conhecimento mágico não foi capaz de evitar que Jasão se apaixonasse pela filha de Creonte. Ovídio relata ainda o mito de Medéia na obra As metamorfoses, considerada, por muitos estudiosos, um dos maiores poemas que a Antiguidade nos legou.
Se alguém pensa que as ervas maléficas da Hemônia[viii] e as artes mágicas podem servir de alguma utilidade, o problema é dele. Esse caminho do malefício é proibido. Apolo oferece-nos, com sua inspiração sagrada, recursos inócuos. Sob minha orientação, as sombras não serão convocadas a erguerem-se de seus túmulos; uma velha não romperá a terra com baixa feitiçaria; as plantações não serão transportadas de um campo para outro[ix]. o disco de febo não empalidecerá subitamente [...] de que serviram, princesa de Cólquida, as plantas do Fásis, quando desejavas permanecer na casa paterna?[x] De que te valeram, Circe, as ervas de Perseide, quando o vento favorável levou os navios de Nérito? [...] Tu, pois que buscas para ti socorro em nossa arte, deixa de ter fé em sortilégios e magias. (OVÍDIO, Remédios para o amor).
Para a chama do amor alimentar
Não servirão as ervas de Medéia
As fórmulas dos Marsos e os seus mágicos cânticos
[...]
E também Circe Ulisses reteria
Se perdurasse o amor pela força da magia
Nada espere dos filtros
Que a cor faria desmaiam face das donzelas.
Espalham os filtros a confusão na mente
E engendram loucura certamente
Longe de nós meios nefastos de empregar
Para ser amado deve o homem ser amável. (OVÍDIO, Arte de amar, Livro II).
5) A representação da feitiçaria feminina como um veículo de moralização ao homem romano
Acreditamos que se analisarmos que tais fontes foram escritas por homens e não serão lidas por mulheres, mas pelos próprios homens de uma mesma camada social, notamos que estas obras são, dentro das motivações de cada uma, formas de veiculação moral e valores estabelecidos sobre a condição feminina para os próprios homens. Tanto o satírico Horácio, quanto o elegíaco Ovídio, buscam definir um campo de conduta e um domínio de regras válidas para o comportamento do homem romano, colocando a feitiçaria como uma prática essencialmente feminina, indigna do ideal guerreiro do homem romano, cruel, maléfica e que deve ser punida. Tais poemas demonstrariam, desta forma, uma forte expressão da diferença do gênero para os romanos, do que jamais é permitido ao homem, do que é ridículo e típico de mulheres.
No âmbito simbólico estas referências a práticas mágicas como basicamente femininas, aludiriam a uma natureza descontrolada da mulher. Diferente ao homem, elas não medem esforços para conseguir o que querem, se amam usam até mesmo da arte maléfica e punida que é a magia.
Entendemos ainda que tais poemas eram formas de Horácio e Ovídio demonstrar preocupações comuns da transição República-Império, preocupações com a moral do romano atingida pelas influências estrangeiras, manutenção das tradições e do mos maiorum (costumes dos ancestrais) e reconhecimento de uma identidade do romano, colocando sempre a magia como algo estrangeiro. Assim, a magia estaria como a cobiça, a avareza, o adultério, temas também criticados por Horácio, difundida no período e colocando em risco o patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana e que se precisava manter. Os poetas alertam a sociedade também para os perigos da liberdade que as mulheres vinham adquirindo neste período. Os casamentos encontravam-se mais livres e Augusto criou mecanismos que puniam adultérios.
Acreditamos, ainda, que mesmo que Ovídio não pregue os mesmos idéias morais que Augusto e Horácio pregavam, ele não deixa de estar inserido em uma sociedade patriarcal e ver práticas punidas e criticadas, como a magia, como imorais ao homem romano. Segundo Glaydson José da Silva (2001, p. 39), devemos considerar que para a elegia a preocupação com “’que’ de humor, de ironia permeando os textos, dando sempre a entender a existência de segundas intenções por parte dos autores”.
Moldando um diálogo com a camada social que fazem parte, as representações criadas por estes poetas para a feitiçaria nos remeteriam a teoria de Roger Chartier. Para Chartier (1988, p. 17), os grupos sociais criam suas representações do mundo social, de maneira a impor seus limites e valores, forjando representações determinadas por seu interesse de grupo.
Devemos considerar, também, a existência de uma crença generalizada no poder feminino em agir de maneira sobrenatural que remonta às sociedades antigas clássicas. Excluída dos cultos oficiais e afastada para um lugar marginal, viam na mulher uma maior probabilidade a aproximar-se de práticas consideradas desviantes. Porém, para o mundo romano, objeto de nosso trabalho, as fontes arqueológicas comprovam uma superioridade masculina no âmbito da magia, através dos defixios. Também as acusações de magia do período remetem a um universo masculino, como por exemplo, as acusações contra o liberto Furio Cresimo (II séc. a.C.) e contra o filósofo Apuleio (II séc. d.C.). Acreditamos que a preponderância do masculino na prática diga respeito às próprias relações de poder no mundo antigo, limitadas à participação feminina, assim os casos mais freqüentes de imprecações mágicas (disputas esportivas, comercias, jurídicas) ficavam restritas aos homens que usavam da magia, considerada como formação de poderes paralelos dentro do Império, temida e perseguida pela autoridade oficial.
Portanto, a mulher por não ser considerada um perigo iminente a ordem política, não participar diretamente do “jogo de forças”, não representava um perigo maior que o homem quando praticante de magia, o que estava de fato em perigo eram as tradições que deviam ser mantidas, o poderio romano, a identidade construída em um momento de transição política. Práticas desviantes, temidas e ridicularizadas jamais poderiam ser algo masculino, principalmente para a elite detentora do poder político da qual faziam parte ambos os poetas.
6) Bibliografia
6.1) Fontes documentais
APULEIO. O asno de ouro. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora Cultrix, s.d.
_________. Apologia. Tradução, introdução e notas de Santiago Segura Munguía. Madrid: Editorial Gredos, 1980.
HORÁCIO. Obras Completas. Tradução de Elpino Duriense, José Agostinho de Macedo Antonio Luís de Seabra e Francisco Antonio Picot. São Paulo: Edições Cultura, 1941.
__________. Sátiras. Tradução de Antônio Luís Seabra. São Paulo: Jackson Editores – Clássicos Jackson, vol. IV. 1952.
JUSTINIANO. El Digesto de Justiniano. Tomo III. Libro 48. Título 8. Versión Castellana por A. D’ Ors, F. Hernández-tejero, P. Fuenteseca , M. García-Garrido y J. Burillo. Pamplona: Editorial Aranzadi, 1975.
OVÍDIO. Remédios para o amor. Tradução, introdução e notas de Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
________. Os Amores. In: _______. Obras 2ª ed. Tradução de Antônio Feliciano de Castilho. São Paulo: Edições Cultura, 1945.
________. A arte de amar. Tradução de Natália Correia e David Mourão Ferreira. Edição Bilíngüe. 1992.
________. Os Fastos. Tradução de Antonio Feliciano de Castilho. São Paulo: Jackson Editores, 1952.
6.2) Fontes bibliográficas
BARB, La supervivencia de lãs artes mágicas. In: MOMIGLIANO, A. et al. El conflito entre el paganismo y el cristianismo en el siglo IV. Madrid: Alianza, 1989.
BAROJA, Julio Caro. As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Coleção Janus, s.d.
CÂNDIDO, Maria Regina. Magia do Katádesmos: téchne do saber-fazer. Hélade – Revista Eletrônica de História Antiga. 3 (1), 2002. p. 23-34. Disponível no site:
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela de Galhardo, Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, 1988.
FRAZER, James. O ramo de ouro. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Círculo do Livro: 1978.
FINLEY, Moses. As silenciosas mulheres de Roma. In: Aspectos da Antiguidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GRANT, Michael. O Mundo de Roma. Tradução de Jorge Sampaio. Rio de Janeiro: Editora Arcádia, 1987.
GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70. Lugar da História, 1992.
GRAF, Flitz. La magie dans l’ Antiquité greco-romaine. Ideologie et Pratique. Paris: Les Belles Lettres, 1994.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura Clássica grega e latina. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.
MEIRA, S.A.B. A Lei das XVI Tábuas. Fonte do Direito Público e Privado. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1961.
MONTERO, Santiago. Deusas e adivinhas. Mulher e adivinhação na Roma Antiga. Tradução de Nelson Canabarro. São Paulo: Musa Editora, 1998. (Ler os clássicos).
REAL, C. A. et al. Religión, superticion y magia en el mundo romano. Cadiz: Encuentros en la Antiguidad. Universidad de Cadiz, 1985
RUSSELL, Jeffrey Burton. História da Feitiçaria. Feiticeiros, hereges e pagãos. Tradução de Álvaro de Cabral. Rio de Janeiro: Campus, 1993.
SANTOS, Dulce O. Amarante. Práticas mágicas femininas e masculinas nos Reinos Ibéricos (1250-1350). Estudos de História, Franca, vol. 06 n. 02, 1990.
SARIAN, Haiganush. Hécate duplo de Artêmis. Uma interpretação da cratera Ática de Toronto. Boletim do CPA, Campinas, n. 04, 1997.
SILVA, Gilvan Ventura da. Reis, Santos e feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da Basiléia. 337-361. Vitória: Edufes, 2003.
SILVA, Glaydson José da. Aspectos da cultura de gênero na Arte de amar de Ovídio e no Satyricon de Petrônio: representações e relações. Campinas: Dissertação de Mestrado apresentada na UNICAMP, 2001.
TUPET, Anne-Marie. La magie dans la poesie latine. Des origines à la fin du régne d’Auguste. Vol. 01. Paris: Les Belles Lettres, 1976.
--------------------------------------------------------------------------------
Notas:
[i] Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Aproveito o presente espaço para agradecer ao Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva que tem se mostrado sempre solícito às minhas pesquisas. Agradeço também minha orientadora, Profª. Drª. Margarida Maria de Carvalho, pelo apoio constante.
[ii] Estas imprecações mágicas foram encontradas pelos arqueólogos em finas lâminas de chumbo, conhecidas como defixios pelos romanos e kátadesmos pelos gregos. O nome destas plaquetas sugere a idéia de ligação de uma pessoa ao mundo subterrâneo. Ver mais detalhes sobre estes objetos mágicos no texto de Maria Regina Cândido (2002, p. 23-34).
[iii] Festa romana celebrada no dia 15 de fevereiro, provavelmente em honra ao Deus Fauno. Era um rito de fertilidade, seus celebrantes se reuniam em uma caverna do monte Palatino, onde se supunha que Rômulo e Remo haviam sido amamentados pela loba. Na ocasião realizavam-se sacrifícios de animais e uma corrida em torno do Palatino. Durante a corrida, mulheres posicionadas em torno do monte recebiam chicotadas (o chicote era considerado um objeto de purificação e fertilidade), o que acreditava transmitir fertilidade (HARVEY, 1998, p. 317). Este rito pode ser caracterizado dentro da Lei de Similaridade ou Magia Imitativa, estabelecida pelo antropólogo James Frazer (1978, p.19).
[iv] Esta mesma distinção entre magia enquanto theurgia e magia enquanto goetia é feita por autores da época como Apuleio ao defender-se de uma acusação de praticante de magia (APULEIO, Apologia, XLIII, 2- 6).
[v] Diana, deusa da caça está associada á deusa Ártemis grega, que por sua vez está associada a Hécate, ver mais sobre esta analogia em: SARIAN, 1997. Esta deusa aparece tanto neste poema como na Sátira VIII.
[vi] Conhecidas também sob a denominação de Erínies, as Fúrias eram divindades que vingavam crimes, especialmente aqueles contra parentes. Em número de três, Alectó, Mêgaira e Tisífone, são representadas como mulheres aladas.
[vii] Ovídio escreveu elegias. Inicialmente definida pelo metro específico, chamado metro elegíaco, a elegia passou a designar um gênero poético que se caracterizou não pela forma, mas pelo assunto: o amor, a tristeza dos amores interrompidos pela infidelidade ou pela morte.
[viii] A Hemônia era como um nome poético para a Tessália, terra consagrada das feiticeiras. (nota de rodapé n.24 da obra citada). Destacamos que a novela fantástica O asno de ouro de Apuleio, onde há descrições de rituais de magia, se passa justamente nesta famosa região das artes mágicas.
[ix] Aqui Ovídio reproduz fielmente o texto da Lei das XII Tábuas (Tábua VII) sobre o crime de prática de magia, que pune àquele que acreditavam ter o poder de transportar colheitas de um campo para o seu, ou seja, jogar “mau olhado” sob a colheita alheia, roubando-a.
[x] Região de onde veio Medéia, segundo a lenda da tragédia homônima.
www.klepsidra.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário