Setenta anos depois de publicado, Raízes do Brasil mantém sua atualidade e revela o projeto maior de seu autor: examinar possibilidades, direções e limites da civilização no país
Fernando Novais
Atualmente, há uma tendência patente para desqualificar as grandes interpretações do Brasil, principalmente no que se refere aos três livros marcantes da “geração de 30” (Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda), os “Intérpretes do Brasil”, como ficou registrado no ensaio clássico de Antonio Candido (prefácio à 5ª edição de Raízes do Brasil, 1969). Existem duas linhas que seguem esta tendência. Uma delas é a que aponta esses estudos como pouco importantes, pré-modernos e tradicionais, interpretações muito gerais, ultrapassados pela produção da universidade. A outra está ligada aos estudos sobre essas obras, muito em voga nestes dias, centralizados nas investigações sobre as inspirações teóricas presentes nos textos e afirmando a existência neles de ideologia – o que realmente existe – como demérito. Dessa forma, não avançamos muito na compreensão dessas obras e no aproveitamento de suas inspirações.
Ao tomarmos essas tendências dominantes, acabamos por perder certas características específicas da cultura brasileira. Uma delas é essa obsessão pela interpretação geral, presente em todos os momentos decisivos da História – na Independência, na República, na belle époque, na Semana de Arte, no Modernismo de 30. Neste sentido, há um bom exemplo, um intelectual paradigma da modernização: Florestan Fernandes, introdutor da sociologia moderna no Brasil. Depois de ter feito os trabalhos canônicos que fez na academia, ele produziu grandes livros, que culminam em A Revolução Burguesa no Brasil, cuja primeira edição foi publicada em 1975, e volta então à interpretação geral. A explicação que se dá não me convence. É de que ele foi perseguido, expulso, exilado, e voltou a fazer interpretação do Brasil por isso. É claro que isso teve importância – sofreu muito no exílio –, mas estou convencido de que, se tivesse continuado na universidade, também voltaria às interpretações globais.
O verdadeiro problema, o que fica escamoteado por essa rejeição, é pensar que a interpretação é tradicional e não extremamente moderna, como foram essas novas leituras do país a partir da segunda metade do século XX. Portanto, muitas vezes não se enxerga essa modernidade. O fato é que, no Brasil e em outros países, há essa obsessão pela interpretação, comum nos países latino-americanos, nos países periféricos de maneira geral. E tem sido uma tendência avassaladora da globalização dizer que essa prática não tem valor.
Pensando dessa maneira, estive tentando situar os três grandes autores e suas obras. Acredito que a peculiaridade, tanto em Gilberto Freyre quanto em Caio Prado Júnior, e sobretudo em Sérgio Buarque, é a idéia de definir o que é o Brasil, o que é o brasileiro; é a busca da identidade nacional. O que muda em 30, nesses três autores, é que o Brasil começa a ser visto a partir de dentro – e por dentro. Assinalamos isto, Maria Arminda do Nascimento Arruda e eu, na pequena introdução que fizemos ao “Dossiê Intérpretes do Brasil” (Revista da USP, nº 38, jun-ago., 1998).
Essa virada é clássica em Gilberto Freyre, e mesmo em Caio Prado – por isso ele é heterodoxo em seu marxismo. Por isso os marxistas ortodoxos achavam que ele não era bom marxista, porque realmente começa a ver o Brasil deste interior. E eu me lembro de uma entrevista que Caio Prado, pouco antes de morrer, deu à revista da Unesp, Transformação, em que um entrevistador perguntou por que ele, atuando em 1940, escrevia um marxismo não-ortodoxo, já que era membro do Partido Comunista, não ortodoxo. Ele deu a seguinte resposta: “O meu assunto sempre foi o Brasil. Eu adotei o marxismo porque acho que é um bom instrumento para entender o Brasil. Se eu chegasse à convicção de que não era, adotava outros instrumentos. O objeto vem antes do método para mim”. É essa preeminência do Caio, e o que está presente em Gilberto Freyre; por isso ele também é um heterodoxo. No Sérgio Buarque, não. É diferente.
Como, então, eu situaria Sérgio Buarque? A primeira coisa que é preciso dizer é que, em 1936, Raízes do Brasil se mostra atual em dois sentidos. Quando é publicada, a obra revela como seu autor estava em dia com os principais problemas da historiografia. Se nós pensarmos na história geral da historiografia, acho que é possível dizer que o grupo da Escola dos Annales, na França, que marca a historiografia moderna, institucionalizou o diálogo da História com as Ciências Sociais. É isso que está no manifesto de March Bloch e Lucien Febvre; e esse diálogo é institucionalizado com todas as Ciências Sociais; não com uma ou com outra, mas com todas.
Em seu livro, Sérgio Buarque mobiliza, sobretudo, a Sociologia; é um ensaio sociológico, mas para classificar a História. Mas pode-se dizer: trata-se de um movimento tradicional, é um ensaio – como se ensaio carregasse um fato pejorativo por ser ensaio. Isto mostra que ele, apesar de não ter essa formação francesa, estava em dia com movimentos da História. Tanto que, já nos anos 1950, é convidado para um debate no Reencontres de Genève (1954), por Lucien Febvre, para falar sobre “Le nouveau monde et l’Europe”. E ele era o único brasileiro presente.
Em segundo lugar, esse diálogo está ligado à idéia de que Sérgio Buarque se coloca, sobretudo e antes de tudo, como um historiador. A sua marcha segue, dessa maneira, do ensaio sociológico para a História. Ele vai caminhando nessa direção, e seu último livro, sobre o qual vou falar duas palavras rapidamente, é exatamente a culminação desse caminho, quando ele faz sua virada total. Apesar de ter sido, desde o princípio, um historiador. Essa minha posição não é para dizer que a História é mais importante que outra coisa. Acho apenas que assim fica mais inteligível todo esse percurso.
Sobre essa questão do diálogo das Ciências Sociais com a História, proposto pelo grupo dos Annales, perguntava-se: qual é a diferença entre os dois? E que eles diziam: História não tem conceitos. O Braudel dizia que o único conceito de História é o conceito de duração, que não é um conceito, mas uma idéia. A História usa os conceitos das Ciências Sociais. Então, o que diferencia o uso dos conceitos das Ciências Sociais pelo historiador e pelos cientistas sociais? O historiador os historiciza. E como você historiciza? Não há regra. Cada um, com o seu tema, descobre sozinho.
A questão de Sérgio Buarque sempre foi a identidade nacional, fonte inesgotável de seus questionamentos. Alguns leitores, os mais apressados, dizem que isso está “fora da moda”, fora da agenda: que hoje não se estuda mais identidade. E outros dizem mais: doutor Sérgio não estudava identidade, porque ele nunca falou nisso. Mas doutor Sérgio era um escritor, e não começaria nunca um livro dizendo: “O objetivo desta tese é definir a identidade nacional...”. Ele diz então: eu quero entender por que até hoje nos sentimos uns desterrados em nossa própria terra. Sobre o que ele está falando? Até o fim, ele não pensou em outra coisa. Quando ele estuda Metastásio, é porque ele quer entender os árcades mineiros, não porque tem interesse em Metastásio. Há interesse em Metastásio também, mas é tudo orientado. Como Caio Prado, como Gilberto Freyre. É o Brasil, a partir de dentro.
Para essa empreitada, Sérgio Buarque recorre a Weber. Onde está a originalidade? Está no fato de que ele construiu os tipos ideais de uma maneira totalmente nova. Mas não há um exemplo de Weber – ou de weberianos – que construa um tipo ideal, tal como ele construiu “o Homem Cordial”, por tipos opostos. Weber exagera, delimita um objeto, mostra o tipo ideal e depois volta para a realidade, para ir entendendo. E o que faz Sérgio Buarque? Parte de tipos contrapostos, rapidamente esboçados, o semeador e o ladrilhador, o anglo-saxônico e o ibérico, o espanhol e o português, para concluir no “Homem Cordial”, que pode ser lido como um tipo ideal weberiano. Qual era então o seu tema central? O modo de sociabilidade, que ele procurou formular com a idéia da cordialidade, e que depois suscitou um novo debate.
Sérgio Buarque é um grande escritor. Sendo assim, o livro todo é muito bem escrito. Na realidade, há uma mudança de tom, de andamento, ao longo da obra. Sem querer invadir a área dos literatos, eu diria que há quase uma mudança de estilo. Até o quinto capítulo do “Homem Cordial”, ele vai construindo o argumento. Depois, passa a ser mais narrativo, para transformar o estudo em um ensaio propriamente dito somente no último capítulo, “A nossa Revolução”, em que ele está realmente tentando ver quais eram as possibilidades inscritas na nossa formação.
Tudo mais, dali em diante, segue como investigações em torno desse tema. Até quando ele tomou Caminhos e Fronteiras houve quem pensasse que estava falando sobre os limites territoriais e os caminhos dos bandeirantes. Sérgio Buarque fala disso também, mas ele está, antes de tudo, examinando possibilidades, direções e limites da civilização no Brasil. E porque tomou São Paulo no século XVII e a vida material como mote para isso, faz da obra uma experiência absolutamente fantástica.
Quando passa para Visão do Paraíso, publicado em 1959, a mesma questão está presente. Ele, portanto, partiu do que foi esboçado em Raízes do Brasil, e tentou ver isso do ponto de vista do imaginário. Mais tarde, quando faz a História do Brasil, dirige a História Geral da Civilização Brasileira, a partir de 1960, disse-me, assim como para outras pessoas, que queria, sem pressionar autores, dar uma certa unidade, e achava que os capítulos assinados por ele eram capazes de dar essa unidade ao projeto. Sérgio Buarque achou que conseguiu alcançar esse objetivo, mais ou menos, na parte sobre a Colônia. No que se refere ao século XIX e ao Império, ele achou que falhou. E resolveu escrever um outro volume, que é o quinto, Do Império à República, inteiramente sozinho. Do ponto de vista cronológico, o quarto volume da monarquia já tinha chegado até a República – mas ele reescreve tudo. Mas Sérgio, de fato, não gostava do livro. Disse que ia reescrevê-lo em dois volumes, mas não acabou. Ele havia me dito também, várias vezes, que queria acabar essa obra, e só depois iria escrever um trabalho que o perseguiu, e que nunca escreveu, que se chamaria A era do barroco no Brasil. O que sobrou desses escritos, Antonio Candido publicou como Capítulos de Literatura Colonial.
Quando tento analisar Do Império à República, sempre acho muito difícil. Sei que ele funciona de maneira oposta a Raízes do Brasil, uma vez que parte do evento para as estruturas, em vez de partir das estruturas para os eventos. É impressionante. Ele fixa um evento: a queda do gabinete Zacarias, em 1868. Para entender o acontecimento é preciso entender o poder pessoal. Fala, portanto, um pouco do poder pessoal, analisa a Constituição de 1823, que foi derrogada, a Constituição outorgada de 1824, parte para analisar Benjamin Constant, vira, volta, descreve o poder pessoal exercido por D. Pedro. Está ali presente uma análise notável de D. Pedro II, que termina dizendo: “muito lastro para pouca vela”. D. Pedro II era muito lastro para pouca vela – quer dizer, não anda. E esta é a pior observação que poderia fazer sobre um estadista. Eis o fim do capítulo. E dessa maneira ele vai alargando, para entender a crise do regime, a passagem do Império para a República.
O outro momento seria a proclamação da República. Ele planejava reescrever este livro, mais uma vez, de maneira inversa a Raízes do Brasil. Por isso insisto que ele realmente sai da Sociologia e se dirige à História; sai do ensaio e vai para a narrativa concreta. O outro livro, ele queria que fosse feito em dois volumes. O primeiro iria se chamar “O pássaro e a sombra”, devido a um discurso de um parlamentar, acho que foi Nabuco, que teria falado: “não adianta ficar atacando a sombra se não apontar para o pássaro. Vocês ficam criticando o ministério Zacarias, mas preservam o imperador”. E o segundo, que seria sobre a proclamação da República, iria se chamar “A fronda pretoriana”.
Portanto, ele é atualíssimo. Mas se nós pensarmos uma outra dimensão da sua atualidade, quando examinamos o conjunto da obra e voltamos a Raízes do Brasil, lembro-me da polêmica com Cassiano Ricardo, em que ele termina dizendo: vamos parar de discutir. Cassiano Ricardo dizia referindo-se à obra, especificamente ao “homem cordial”, que não se tratava de cordialidade, mas de bondade, e Sérgio Buarque explicava: “Acho que já gastamos muita vela com esse defunto”. Ele estaria falando da possibilidade de o homem cordial já ter morrido? Se eu bem entendo, o que ele está discutindo desde o início na procura dessa identidade nacional são as estruturas do nosso modo de ser, a possibilidade de modernização que está inscrita na nossa formação. Melhor dizendo, a crise presente na modernização que tende a negar os princípios resultantes da nossa formação.
E a conclusão, no último capítulo, é extremamente cética, o que mais uma vez o aproxima do cenário intelectual de 1930, com Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior. Ele insinua, projeta, diagnostica: ou nos modernizamos e deixamos de ser o que somos, ou continuamos a ser o que somos, e não nos modernizamos. Isto não é muito diferente de saber se devemos dizer Adeus ao desenvolvimento (título da obra de João Antonio de Paula publicada em 2005), nos resignamos ao ajuste, à globalização, ou se devemos insistir na utopia e em sermos agentes de nossa história. Ele já estava pensando nisso nos anos 1930. To the best of my understanding, a sua atualidade.
* Este texto é a versão editada da conferência proferida no XII Seminário sobre a Economia Mineira, realizado em Diamantina entre 29 de agosto e 2 de setembro de 2006.
Fernando A. Novais é professor da USP e da Unicamp. Autor do prefácio de Caminhos e Fronteiras (edição de 1994) e de “De Volta ao Homem Cordial” publicado em Aproximações – Estudos de História e Historiografia.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Fernando Novais
Atualmente, há uma tendência patente para desqualificar as grandes interpretações do Brasil, principalmente no que se refere aos três livros marcantes da “geração de 30” (Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda), os “Intérpretes do Brasil”, como ficou registrado no ensaio clássico de Antonio Candido (prefácio à 5ª edição de Raízes do Brasil, 1969). Existem duas linhas que seguem esta tendência. Uma delas é a que aponta esses estudos como pouco importantes, pré-modernos e tradicionais, interpretações muito gerais, ultrapassados pela produção da universidade. A outra está ligada aos estudos sobre essas obras, muito em voga nestes dias, centralizados nas investigações sobre as inspirações teóricas presentes nos textos e afirmando a existência neles de ideologia – o que realmente existe – como demérito. Dessa forma, não avançamos muito na compreensão dessas obras e no aproveitamento de suas inspirações.
Ao tomarmos essas tendências dominantes, acabamos por perder certas características específicas da cultura brasileira. Uma delas é essa obsessão pela interpretação geral, presente em todos os momentos decisivos da História – na Independência, na República, na belle époque, na Semana de Arte, no Modernismo de 30. Neste sentido, há um bom exemplo, um intelectual paradigma da modernização: Florestan Fernandes, introdutor da sociologia moderna no Brasil. Depois de ter feito os trabalhos canônicos que fez na academia, ele produziu grandes livros, que culminam em A Revolução Burguesa no Brasil, cuja primeira edição foi publicada em 1975, e volta então à interpretação geral. A explicação que se dá não me convence. É de que ele foi perseguido, expulso, exilado, e voltou a fazer interpretação do Brasil por isso. É claro que isso teve importância – sofreu muito no exílio –, mas estou convencido de que, se tivesse continuado na universidade, também voltaria às interpretações globais.
O verdadeiro problema, o que fica escamoteado por essa rejeição, é pensar que a interpretação é tradicional e não extremamente moderna, como foram essas novas leituras do país a partir da segunda metade do século XX. Portanto, muitas vezes não se enxerga essa modernidade. O fato é que, no Brasil e em outros países, há essa obsessão pela interpretação, comum nos países latino-americanos, nos países periféricos de maneira geral. E tem sido uma tendência avassaladora da globalização dizer que essa prática não tem valor.
Pensando dessa maneira, estive tentando situar os três grandes autores e suas obras. Acredito que a peculiaridade, tanto em Gilberto Freyre quanto em Caio Prado Júnior, e sobretudo em Sérgio Buarque, é a idéia de definir o que é o Brasil, o que é o brasileiro; é a busca da identidade nacional. O que muda em 30, nesses três autores, é que o Brasil começa a ser visto a partir de dentro – e por dentro. Assinalamos isto, Maria Arminda do Nascimento Arruda e eu, na pequena introdução que fizemos ao “Dossiê Intérpretes do Brasil” (Revista da USP, nº 38, jun-ago., 1998).
Essa virada é clássica em Gilberto Freyre, e mesmo em Caio Prado – por isso ele é heterodoxo em seu marxismo. Por isso os marxistas ortodoxos achavam que ele não era bom marxista, porque realmente começa a ver o Brasil deste interior. E eu me lembro de uma entrevista que Caio Prado, pouco antes de morrer, deu à revista da Unesp, Transformação, em que um entrevistador perguntou por que ele, atuando em 1940, escrevia um marxismo não-ortodoxo, já que era membro do Partido Comunista, não ortodoxo. Ele deu a seguinte resposta: “O meu assunto sempre foi o Brasil. Eu adotei o marxismo porque acho que é um bom instrumento para entender o Brasil. Se eu chegasse à convicção de que não era, adotava outros instrumentos. O objeto vem antes do método para mim”. É essa preeminência do Caio, e o que está presente em Gilberto Freyre; por isso ele também é um heterodoxo. No Sérgio Buarque, não. É diferente.
Como, então, eu situaria Sérgio Buarque? A primeira coisa que é preciso dizer é que, em 1936, Raízes do Brasil se mostra atual em dois sentidos. Quando é publicada, a obra revela como seu autor estava em dia com os principais problemas da historiografia. Se nós pensarmos na história geral da historiografia, acho que é possível dizer que o grupo da Escola dos Annales, na França, que marca a historiografia moderna, institucionalizou o diálogo da História com as Ciências Sociais. É isso que está no manifesto de March Bloch e Lucien Febvre; e esse diálogo é institucionalizado com todas as Ciências Sociais; não com uma ou com outra, mas com todas.
Em seu livro, Sérgio Buarque mobiliza, sobretudo, a Sociologia; é um ensaio sociológico, mas para classificar a História. Mas pode-se dizer: trata-se de um movimento tradicional, é um ensaio – como se ensaio carregasse um fato pejorativo por ser ensaio. Isto mostra que ele, apesar de não ter essa formação francesa, estava em dia com movimentos da História. Tanto que, já nos anos 1950, é convidado para um debate no Reencontres de Genève (1954), por Lucien Febvre, para falar sobre “Le nouveau monde et l’Europe”. E ele era o único brasileiro presente.
Em segundo lugar, esse diálogo está ligado à idéia de que Sérgio Buarque se coloca, sobretudo e antes de tudo, como um historiador. A sua marcha segue, dessa maneira, do ensaio sociológico para a História. Ele vai caminhando nessa direção, e seu último livro, sobre o qual vou falar duas palavras rapidamente, é exatamente a culminação desse caminho, quando ele faz sua virada total. Apesar de ter sido, desde o princípio, um historiador. Essa minha posição não é para dizer que a História é mais importante que outra coisa. Acho apenas que assim fica mais inteligível todo esse percurso.
Sobre essa questão do diálogo das Ciências Sociais com a História, proposto pelo grupo dos Annales, perguntava-se: qual é a diferença entre os dois? E que eles diziam: História não tem conceitos. O Braudel dizia que o único conceito de História é o conceito de duração, que não é um conceito, mas uma idéia. A História usa os conceitos das Ciências Sociais. Então, o que diferencia o uso dos conceitos das Ciências Sociais pelo historiador e pelos cientistas sociais? O historiador os historiciza. E como você historiciza? Não há regra. Cada um, com o seu tema, descobre sozinho.
A questão de Sérgio Buarque sempre foi a identidade nacional, fonte inesgotável de seus questionamentos. Alguns leitores, os mais apressados, dizem que isso está “fora da moda”, fora da agenda: que hoje não se estuda mais identidade. E outros dizem mais: doutor Sérgio não estudava identidade, porque ele nunca falou nisso. Mas doutor Sérgio era um escritor, e não começaria nunca um livro dizendo: “O objetivo desta tese é definir a identidade nacional...”. Ele diz então: eu quero entender por que até hoje nos sentimos uns desterrados em nossa própria terra. Sobre o que ele está falando? Até o fim, ele não pensou em outra coisa. Quando ele estuda Metastásio, é porque ele quer entender os árcades mineiros, não porque tem interesse em Metastásio. Há interesse em Metastásio também, mas é tudo orientado. Como Caio Prado, como Gilberto Freyre. É o Brasil, a partir de dentro.
Para essa empreitada, Sérgio Buarque recorre a Weber. Onde está a originalidade? Está no fato de que ele construiu os tipos ideais de uma maneira totalmente nova. Mas não há um exemplo de Weber – ou de weberianos – que construa um tipo ideal, tal como ele construiu “o Homem Cordial”, por tipos opostos. Weber exagera, delimita um objeto, mostra o tipo ideal e depois volta para a realidade, para ir entendendo. E o que faz Sérgio Buarque? Parte de tipos contrapostos, rapidamente esboçados, o semeador e o ladrilhador, o anglo-saxônico e o ibérico, o espanhol e o português, para concluir no “Homem Cordial”, que pode ser lido como um tipo ideal weberiano. Qual era então o seu tema central? O modo de sociabilidade, que ele procurou formular com a idéia da cordialidade, e que depois suscitou um novo debate.
Sérgio Buarque é um grande escritor. Sendo assim, o livro todo é muito bem escrito. Na realidade, há uma mudança de tom, de andamento, ao longo da obra. Sem querer invadir a área dos literatos, eu diria que há quase uma mudança de estilo. Até o quinto capítulo do “Homem Cordial”, ele vai construindo o argumento. Depois, passa a ser mais narrativo, para transformar o estudo em um ensaio propriamente dito somente no último capítulo, “A nossa Revolução”, em que ele está realmente tentando ver quais eram as possibilidades inscritas na nossa formação.
Tudo mais, dali em diante, segue como investigações em torno desse tema. Até quando ele tomou Caminhos e Fronteiras houve quem pensasse que estava falando sobre os limites territoriais e os caminhos dos bandeirantes. Sérgio Buarque fala disso também, mas ele está, antes de tudo, examinando possibilidades, direções e limites da civilização no Brasil. E porque tomou São Paulo no século XVII e a vida material como mote para isso, faz da obra uma experiência absolutamente fantástica.
Quando passa para Visão do Paraíso, publicado em 1959, a mesma questão está presente. Ele, portanto, partiu do que foi esboçado em Raízes do Brasil, e tentou ver isso do ponto de vista do imaginário. Mais tarde, quando faz a História do Brasil, dirige a História Geral da Civilização Brasileira, a partir de 1960, disse-me, assim como para outras pessoas, que queria, sem pressionar autores, dar uma certa unidade, e achava que os capítulos assinados por ele eram capazes de dar essa unidade ao projeto. Sérgio Buarque achou que conseguiu alcançar esse objetivo, mais ou menos, na parte sobre a Colônia. No que se refere ao século XIX e ao Império, ele achou que falhou. E resolveu escrever um outro volume, que é o quinto, Do Império à República, inteiramente sozinho. Do ponto de vista cronológico, o quarto volume da monarquia já tinha chegado até a República – mas ele reescreve tudo. Mas Sérgio, de fato, não gostava do livro. Disse que ia reescrevê-lo em dois volumes, mas não acabou. Ele havia me dito também, várias vezes, que queria acabar essa obra, e só depois iria escrever um trabalho que o perseguiu, e que nunca escreveu, que se chamaria A era do barroco no Brasil. O que sobrou desses escritos, Antonio Candido publicou como Capítulos de Literatura Colonial.
Quando tento analisar Do Império à República, sempre acho muito difícil. Sei que ele funciona de maneira oposta a Raízes do Brasil, uma vez que parte do evento para as estruturas, em vez de partir das estruturas para os eventos. É impressionante. Ele fixa um evento: a queda do gabinete Zacarias, em 1868. Para entender o acontecimento é preciso entender o poder pessoal. Fala, portanto, um pouco do poder pessoal, analisa a Constituição de 1823, que foi derrogada, a Constituição outorgada de 1824, parte para analisar Benjamin Constant, vira, volta, descreve o poder pessoal exercido por D. Pedro. Está ali presente uma análise notável de D. Pedro II, que termina dizendo: “muito lastro para pouca vela”. D. Pedro II era muito lastro para pouca vela – quer dizer, não anda. E esta é a pior observação que poderia fazer sobre um estadista. Eis o fim do capítulo. E dessa maneira ele vai alargando, para entender a crise do regime, a passagem do Império para a República.
O outro momento seria a proclamação da República. Ele planejava reescrever este livro, mais uma vez, de maneira inversa a Raízes do Brasil. Por isso insisto que ele realmente sai da Sociologia e se dirige à História; sai do ensaio e vai para a narrativa concreta. O outro livro, ele queria que fosse feito em dois volumes. O primeiro iria se chamar “O pássaro e a sombra”, devido a um discurso de um parlamentar, acho que foi Nabuco, que teria falado: “não adianta ficar atacando a sombra se não apontar para o pássaro. Vocês ficam criticando o ministério Zacarias, mas preservam o imperador”. E o segundo, que seria sobre a proclamação da República, iria se chamar “A fronda pretoriana”.
Portanto, ele é atualíssimo. Mas se nós pensarmos uma outra dimensão da sua atualidade, quando examinamos o conjunto da obra e voltamos a Raízes do Brasil, lembro-me da polêmica com Cassiano Ricardo, em que ele termina dizendo: vamos parar de discutir. Cassiano Ricardo dizia referindo-se à obra, especificamente ao “homem cordial”, que não se tratava de cordialidade, mas de bondade, e Sérgio Buarque explicava: “Acho que já gastamos muita vela com esse defunto”. Ele estaria falando da possibilidade de o homem cordial já ter morrido? Se eu bem entendo, o que ele está discutindo desde o início na procura dessa identidade nacional são as estruturas do nosso modo de ser, a possibilidade de modernização que está inscrita na nossa formação. Melhor dizendo, a crise presente na modernização que tende a negar os princípios resultantes da nossa formação.
E a conclusão, no último capítulo, é extremamente cética, o que mais uma vez o aproxima do cenário intelectual de 1930, com Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior. Ele insinua, projeta, diagnostica: ou nos modernizamos e deixamos de ser o que somos, ou continuamos a ser o que somos, e não nos modernizamos. Isto não é muito diferente de saber se devemos dizer Adeus ao desenvolvimento (título da obra de João Antonio de Paula publicada em 2005), nos resignamos ao ajuste, à globalização, ou se devemos insistir na utopia e em sermos agentes de nossa história. Ele já estava pensando nisso nos anos 1930. To the best of my understanding, a sua atualidade.
* Este texto é a versão editada da conferência proferida no XII Seminário sobre a Economia Mineira, realizado em Diamantina entre 29 de agosto e 2 de setembro de 2006.
Fernando A. Novais é professor da USP e da Unicamp. Autor do prefácio de Caminhos e Fronteiras (edição de 1994) e de “De Volta ao Homem Cordial” publicado em Aproximações – Estudos de História e Historiografia.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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