Desta para melhor
Mais que fuga definitiva do cativeiro, o suicídio de escravos podia ser uma tentativa de voltar para casa, do outro lado do oceano
Jackson Ferreira
Em 25 de março de 1854, o subdelegado da freguesia de Santo Antônio, na cidade de Salvador, prendeu o escravo Luiz, fugido do poder de seu senhor, Antonio Montinho, morador da cidade de Santo Amaro. Motivo: o senhor não queria atender ao pedido do escravo para que o vendesse, pois não queria mais servi-lo. Com o fracasso da fuga, Luiz ameaçou enforcar-se caso tivesse que voltar para o domínio do seu dono. O subdelegado resolveu então mandá-lo para a Casa de Correção enquanto esperava Antonio Montinho decidir se o vendia ou não.
Dez anos depois, a africana Camila, 30 anos, escrava dos também africanos Domingos e Guilhermina, moradores na freguesia do Pilar, em Salvador, tentou se afogar com seu filho Marcos, de apenas cinco meses, no Dique do Tororó. Salvos por pessoas que passavam pelo local, foram conduzidos à presença do subdelegado da freguesia, a quem Camila revelou que desejava se livrar dos maus-tratos dos seus senhores e dos serviços que exigiam que realizasse sem que ela tivesse condições de atendê-los. Chamado à delegacia, Domingos foi aconselhado a vender mãe e filho. O medo de perder o patrimônio foi decisivo para que os senhores os pusessem à venda.
Documentos encontrados nos arquivos de Salvador demonstram que Luiz e Camila não foram os únicos escravos a ameaçar pôr fim à vida ou mesmo de tentar o suicídio como meio de obter melhores condições de existência dentro ou fora do cativeiro. Foram localizados 231 casos de suicídios consumados ou de tentativas, sendo 167 de escravos e 64 de escravas, entre 1850 e 1888. Em 158 deles foi possível saber a origem das vítimas – 97 africanos e 61 escravos crioulos, isto é, nascidos no Brasil. Para se ter uma idéia, na década de 1850 os africanos representavam 67% do total de escravos suicidas. O que não causa admiração, pois, além de constituírem ainda uma parcela bastante significativa da escravaria baiana naqueles anos, a violência do tráfico agora interprovincial talvez contribuísse para seu desespero.
O suicídio era um ato de resistência individual que pode ser compreendido tanto como expressão de um conflito quanto de uma negociação entre senhores e escravos. Entre estes dois pólos, os escravos se colocaram como indivíduos tentando conduzir a própria vida em meio a condições adversas. Muitos casos demonstram que o ato só era praticado como último recurso para forçar o atendimento dos desejos ou como alternativa para escapar definitivamente da escravidão.
Entre as explicações mais conhecidas para o suicídio de escravos estão a do banzo e a do retorno à África. O banzo seria a profunda tristeza que se abatia sobre os escravos recém-chegados ao Brasil, fazendo-os perder o apetite e a vontade de viver e provocando-lhes a morte. Já a teoria do retorno afirmava que a intenção dos escravos ao cometer o suicídio era voltar à sua terra natal através da Kalunga, o mar-oceano.
De fato, esta última idéia esteve presente no Brasil, se não nas mentes de todos os escravos, pelo menos nos argumentos de alguns senhores. Exemplo disso é o suicídio do africano Otelo, ocorrido em 1850. Seu senhor apontou que a causa da morte tinha sido “a superstição muito usual que se apodera de tais indivíduos, de que, morrendo, vão viver em seu país.” Mas não se pode deixar de levar em conta a possibilidade de a justificativa do senhor ter sido usada para encobrir prováveis castigos e maus-tratos.
No Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, a maioria dos escravos provinha das regiões de Angola, Congo e Moçambique atuais, ou seja, eram indivíduos majoritariamente do tronco lingüístico banto, mas que não deixavam de apresentar diferenças culturais entre si. A historiadora Mary Karasch, que estudou esse grupo de escravos, reafirma a crença do retorno por meio do suicídio. Nesse mesmo período, os cativos da Bahia eram originários principalmente da chamada África Ocidental, em especial do Golfo do Benim. De lá vieram yorubás (chamados também de nagôs), hauçás e jejes, entre outros. Portanto, também culturalmente distintos entre si e em relação aos escravos do Rio de Janeiro. Os nagôs, por exemplo, apesar de assumirem esta identidade imposta pelo tráfico, reconheciam-se dentro das suas comunidades e se identificavam como nagôs de Ijexá, de Ijebu, de Oyo e de outros estados yorubás.
As diferenças étnicas representavam também diferenças na maneira de encarar a morte. Para os nagôs, o suicídio era uma morte não-natural, como revela o pesquisador nigeriano Isola Olomola, e seus praticantes se sujeitavam a não receber as cerimônias fúnebres adequadas. Dividiam os suicídios entre os pessoais, que eram proibidos, e os convencionais, realizados em prol e com a autorização da comunidade, uma espécie de suicídio altruísta. Os suicídios pessoais eram praticados por aqueles que desejavam escapar de situações insuportáveis, angustiantes e vergonhosas diante da comunidade. Em geral, seus cadáveres eram jogados nos bosques para apodrecer ou para serem comidos por animais. Já os convencionais ocorriam em situações especiais: quando o indivíduo concordava em ser vítima sacrifical ou para provar sua lealdade a um chefe, por exemplo. Assim, não parece que a idéia de retornar à África estivesse entre os motivos do suicídio dos escravos da Bahia, majoritariamente nagôs.
A morte dos escravos crioulos Timóteo e João, ambos por arma de fogo, ocorridas em 1861 em Salvador e em 1864 em Camamu, respectivamente, mostram o quanto o suicídio escravo também estava imerso na cultura judaico-cristã. E mais uma vez revelam os dramas da vida em cativeiro e suas tentativas de solução.
A morte de Timóteo, mulato de 18 ou 19 anos, morador da freguesia de Santana, resultou da sua recusa em ser vendido, ao que tudo indica, por causa de uma falsa acusação dirigida contra ele. Timóteo sabia ler e escrever, o que lhe permitiu deixar uma carta, que tornou seu caso ainda mais revelador. Nela informava que aquele que pudesse viver sem desgosto que fosse vivendo, e que ele havia muito tempo já desejava a morte. Acreditava que era melhor a morte a uma vida desgraçada e sem oportunidade de ascensão social, que no seu caso significaria a liberdade ou uma maior autonomia dentro do cativeiro. As noções do Céu como um local agradável e do Inferno como um espaço de sofrimento, próprias da visão de mundo cristã, aparecem em seu texto. Timóteo deixou bem claro que aquela declaração também tinha a função de livrar do Inferno aqueles cujas consciências despertariam para a calúnia que tinham cometido. Esta passagem pode ser interpretada como um gesto de perdão do escravo aos seus ofensores. Mas também pode ser vista como uma atribuição de culpa àqueles que o caluniaram injustamente. Mesmo compreendendo o Inferno como um lugar onde os tormentos e os remorsos são infindáveis, Timóteo não temia o destino de sua alma, pois a morte lhe proporcionaria dias melhores que os do cativeiro, como deixou bem claro em suas palavras: “a sepultura será sabedora, e não este infame lugar, digo, e não esta terra de vivos.” Ao que parece, este escravo urbano não queria realmente a morte, mais sim uma outra vida que não aquela em que sua opinião não era ouvida. Era a fuga definitiva.
A negociação de Timóteo não foi bem-sucedida: “Tentamos fazer um acerto para mim, pois não acho doidice nesta proceder.” A rebeldia, da qual o suicídio era a expressão mais individual e radical, muitas vezes só acontecia quando todos os meios de acertos já estavam esgotados. O ato de Timóteo pode ser ainda compreendido no contexto do tráfico interprovincial, que transferiu milhares de cativos das províncias do Norte para as do Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente. Para um escravo urbano como ele, não havia algo que causasse mais temor do que ser posto à venda em praça pública, garantia de incertezas quanto ao futuro. Com sorte, poderia ser comprado por algum senhor local, que talvez permitisse que ele visitasse amigos ou parentes; caso contrário, iria para outra província, longe daqueles que amava e talvez exposto à dura vida da lavoura de café.
Já o caso de João revela de forma mais intensa os conflitos cotidianos dentro do cativeiro. Depois de um dia aparentemente normal, ele invadiu a residência senhorial, abriu o oratório da família, ajoelhou-se e rezou em voz baixa, dirigindo-se em seguida para o local onde se encontrava a espingarda do seu senhor. Tomou-a e, segundo consta, saiu pronunciando as seguintes palavras: “Deus ponha a minha alma onde quiser”. Assustada, a cunhada do senhor gritou, desesperada, que João estava armado e queria se matar. João teria pronunciado outras palavras ainda mais ofensivas e diretas que anunciavam o seu desejo: “Vosmecê pode hoje mandar o que quiser, porque hoje se acaba a lida”. Foi seguido por outro escravo que pretendia impedir aquele ato; porém, com as ameaças de João de que acabaria também com a vida do companheiro, a senhora manda este retornar. João pôs a boca da espingarda sobre o peito e, com o pé no gatilho, disparou a arma, que estava descarregada. Mas este detalhe não o impediu de realizar seu desejo. Decidido, foi à senzala, onde carregou a espingarda de encontro à parede, com seu cano dirigido para o lado esquerdo do peito, e com a ajuda do cabo do rodo de farinha, empurrou o gatilho, disparou a arma e caiu morto.
Relações afetivas também estiveram ligadas aos suicídios de escravos na Bahia. Alexandrina, escrava de Paulo Teotonio Marques, fugiu do poder do seu senhor em 1871, na cidade de Cachoeira, e passou a viver na companhia de seu amásio Vicente, crioulo e canoeiro. No momento da captura, ela estava escondida na casa dele, e antes que a polícia arrombasse a porta para prendê-la, ingeriu uma porção de solimão, substância venenosa muito comum no século XIX. Acabou salva e informou que tomara aquela decisão “porque era melhor morrer do que ir para a cadeia levar chicotadas e outros castigos”. É provável que, antes de tomar a decisão de fugir para viver com Vicente, Alexandrina tenha procurado negociar com seu senhor, e quando percebeu que suas tentativas de obter maior autonomia não seriam bem-sucedidas, fugiu. Entre ficar distante do seu amor, e ainda ser chicoteada, e atentar contra a vida, Alexandrina optou pela última alternativa.
Luiz, Camila, Timóteo, João e Alexandrina foram apenas alguns dos muitos escravos espalhados pelo Brasil que buscaram dias melhores ameaçando, tentando ou mesmo pondo fim à vida, ou melhor, àquela vida na “terra dos vivos” onde negociação e conflito muitas vezes terminavam em morte.
Jackson Ferreira é professor de História da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e autor da dissertação de mestrado “Loucos e pecadores: suicídio na Bahia no século XIX”, defendida na Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2004.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
2 comentários:
Melhor o sofrimento rapido, que morrer pela tortura ao longo dos tempos, né? Era assim que pensavam! ... Guerreiros. Gente guerreira e forte. Mas seres humanos. O desespero certamente que tomava conta sim...
Onde posso achar as cartas de suicídio completas?
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