Uma das primeiras mulheres a publicar na grande imprensa brasileira, Nísia Floresta abalou as estruturas da sociedade patriarcal brasileira do século XIX ao defender a valorização da mulher
Constância Lima Duarte
Numa época em que as mulheres brasileiras viviam trancadas em casa, submetidas aos pais, maridos, ou mesmo irmãos, uma norte-rio-grandense de Papari, nascida em 12 de outubro de 1810, teve um vida diferente. Tão diferente que hoje sua cidade natal leva seu nome, Nísia Floresta. Na verdade, Nísia Floresta Brasileira Augusta era o pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, responsável pelas primeiras páginas da história da luta feminina em busca de seus direitos no Brasil e que merece destaque pela coragem revelada em seus escritos e pelo ineditismo de suas idéias.
Casada aos treze anos, separou-se e voltou a morar com a família. Aos vinte, residindo em Olinda, apaixona-se por um jovem acadêmico de direito, Manuel Augusto de Faria, com quem passa a viver e tem uma filha de nome Lívia. Em 1833, a família se transfere para Porto Alegre, onde nasce o segundo filho e, em seguida, o companheiro adoece repentinamente e falece, aos 25 anos. Nísia permanece em Porto Alegre ainda alguns anos, dando aulas particulares e escrevendo para jornais, até que os conflitos da Revolução Farroupilha praticamente a obrigam a transferir-se para a capital do Império, em 1837.
No ano seguinte, já instalada no Rio de Janeiro, ela anuncia nos principais jornais da Corte a abertura de uma escola para meninas, a que dá o nome de Colégio Augusto, que se torna uma instituição conceituada. Enquanto a maioria das escolas enfatizava a “educação da agulha”, ou a “educação de sala”, dando ênfase para as aulas de bordado, canto, francês e piano, o Colégio Augusto incluía em seu currículo o ensino do latim, italiano, francês, inglês, geografia, história, aritmética e língua pátria, até então reservados apenas aos garotos. O colégio também se destacou por condenar o uso do espartilho e por incentivar a prática de atividades físicas, uma novidade da medicina higienista, contrariando a tendência geral de manter as jovens inativas e recolhidas. Por tudo isso, foram muitas as críticas que o colégio de Nísia Floresta recebeu, condenando principalmente as disciplinas consideradas “supérfluas” e “desnecessárias” à formação das meninas.
Nísia Floresta foi uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos na grande imprensa. Desde 1830 seu nome aparece em conhecidos periódicos. Foi também pioneira ao refletir sobre a relação existente entre o desenvolvimento material e intelectual de um país e o lugar ocupado pelas mulheres. Para ela, o progresso de uma sociedade dependia da educação; e só a instrução junto com a educação moral fariam da mulher uma boa esposa e uma mãe responsável. Não custa lembrar que eram estes os objetivos da educação das meninas naqueles tempos: torná-las mais conscientes de seus deveres e papéis sociais.
Nísia Floresta publicou cerca de 15 títulos em português, francês e italiano, entre romances, contos, crônicas, ensaios e poemas, no melhor estilo romântico. E em praticamente todos se encontra a firme intenção de formar consciências e de alterar as relações entre homens e mulheres. O tema da educação está presente nos seus escritos, ora através de um tom entusiasmado e panfletário, como em Opúsculo humanitário, de 1853, e A mulher, de 1857, que trazem propostas educacionais e críticas contundentes ao governo; ora apresentam um tom afetuoso e persuasivo de mãe e professora zelosa, como em Conselhos à minha filha, de 1842, Daciz ou a jovem completa e Fany ou o modelo das donzelas, de 1847.
O primeiro livro escrito por Nísia Floresta é também o primeiro no Brasil a tratar dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho. Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi publicado em 1832, quando a grande maioria de nossas mulheres vivia enclausurada em preconceitos, submissas e analfabetas, sem qualquer direito a não ser o de ceder sempre à vontade masculina. Seu livro denuncia o mito da superioridade do homem e exige que as mulheres também sejam consideradas seres inteligentes, “dotadas de razão” e merecedoras de respeito. Foi inspirado nas novíssimas idéias que agitavam os meios letrados da Europa, que também reivindicavam uma condição mais justa para as mulheres. Nísia faz uma adaptação das idéias estrangeiras e escreve o texto fundador do feminismo brasileiro. Afirmava que a mulher era tão capaz quanto o homem de ocupar cargos de comando, como de general, almirante e ministro, ou de exercer a medicina, a magistratura e a advocacia, além de defender uma sociedade que valorizasse a função materna. Nísia vai fundo em suas intenções de acender o debate e de abalar as eternas verdades de nossas elites patriarcais.
Hoje, idéias como estas, de que a menina devia ser educada para ser melhor mãe de família, podem soar ultrapassadas. Mas é preciso lembrar que a mulher se beneficiou quando a maternidade passou a ser valorizada enquanto papel social. De figura inexpressiva na sociedade, em conseqüência da rígida estratificação social que privilegiava o masculino, rapidamente ela se torna o centro das atenções pela valorização da maternidade, sua função biológica exclusiva. Nísia percebeu que residia aí um trunfo, e que era preciso aproveitá-lo para que o gênero feminino adquirisse status e poder diante da opinião pública.
Nísia foi progressista também ao abordar o índio e o negro. O longo poema “A lágrima de um caeté”, de 1849, apresenta inúmeros elementos marcantes do Romantismo, como a lusofobia, o elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. A novidade é que o poema traz não a visão do índio-herói da maioria dos textos indianistas e, sim, o ponto de vista dos derrotados, do índio vencido e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor. Já “Páginas de uma vida obscura” circulou apenas como folhetim no jornal O Brasil Ilustrado, no ano de 1855. Nesse texto, que trata da vida de um escravo, ela enaltece as qualidades do homem negro, defende com ênfase um tratamento humanitário por parte dos senhores de escravos, e se revela sinceramente condoída com o sofrimento do outro. Mais tarde, por volta de 1870, a autora vai defender apaixonadamente a Abolição em seus diários e livros de viagem.
Em 1849, Nísia mudou-se para a Europa com os filhos e lá ficou até morrer, em 1885, em Rouen, no interior da França. No auge de sua maturidade intelectual, viajou durante anos seguidos pela Itália, Portugal, Alemanha, Bélgica, Grécia, França e Inglaterra, e se relacionou com escritores importantes como Alexandre Herculano, Dumas, Victor Hugo e George Sand. Com Auguste Comte, o idealizador da filosofia positivista, Nísia Floresta trocou algumas cartas que testemunham a amizade respeitosa que os unia, e que muitos tentaram ver como uma relação amorosa.
Nos livros Itinerário de uma viagem à Alemanha, de 1857, e Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia, de 1864, escritos originalmente em francês, ela descreve com riqueza de detalhes, e muita sensibilidade e erudição, as cidades e os tipos humanos que vai conhecendo. No primeiro, refaz o percurso de Mme. de Staël, de Victor Hugo e de outros viajantes que também visitaram a terra de Goethe. Mas seu livro não conterá apenas um roteiro de viagem. Mais do que a descrição do trajeto entre uma cidade e outra, seu Itinerário trará em suas páginas a viagem propriamente dita − que realiza pelas aldeias e vilas e nos é comunicada através das descrições das paisagens, castelos ou igrejas que visita −, a viagem pelo passado histórico da Alemanha − quando relata episódios históricos que aconteceram nos lugares em que se encontra; e uma viagem para dentro de si mesma − quando se deixa levar pela melancolia e confidencia seus pensamentos mais íntimos, como as saudades da pátria e dos familiares distantes. Em Três anos na Itália, Nísia Floresta realiza ainda uma singular fusão entre as duas formas de diário: “o de viagem” e o “diário íntimo”, introduzindo, por vezes, um personagem que seria a pessoa com quem ela “dialoga”, que tanto pode ser alguém de seu relacionamento, como um personagem histórico, uma cidade, um cidadão qualquer.
Já o ensaio O Brasil apresenta uma particularidade curiosa: é um texto sobre o país escrito em língua estrangeira por uma brasileira, com a intenção de fazer propaganda da pátria e desfazer os preconceitos e mentiras divulgados por certos viajantes. Nísia resume a história do país, trata dos recursos econômicos e das riquezas, descreve com entusiasmo a natureza, as dimensões territoriais do país, as lutas nacionais pela libertação, e termina com severas críticas à colonização portuguesa. Além de tratar da história passada e do presente, a autora faz projeções de um “futuro grandioso”, e se alinha aos escritores que queriam construir uma imagem positiva para o país.
Como também ocorreu com outras escritoras do século XIX, o nome de Nísia Floresta caiu no esquecimento e durante muito tempo não se ouviu falar dela. A historiografia literária nacional não registra sua obra como escritora romântica, e tampouco a história da educação a menciona como uma de nossas primeiras educadoras. Apenas recentemente, com o impulso dos estudos de gênero, esta e outras autoras voltaram a ser lembradas e suas obras se tornaram motivo de investigações. E não era sem tempo. No momento em que se pesquisa e se constrói a história intelectual da mulher brasileira, é chegada a hora de dar a Nísia o lugar de destaque que ela de fato merece, e reconhecer o ineditismo de seus escritos. A autora, que tão longe iria em sua trajetória de vida, foi uma das raras mulheres de letras que surgiram no Brasil patriarcal de seu tempo. Mas foi mais ainda. Nísia Floresta foi uma brasileira erudita e “ilustrada” como bem poucas em nossa história.
Constância Lima Duarte é professora-doutora de literatura brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Nísia Floresta – a primeira feminista do Brasil (Editora Mulheres, 2005) e Nísia Floresta: vida e obra (Edufrn, 1995)
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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