terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Os códigos do Código Da Vinci

A chegada da obra de Dan Brown às telas é um convite à reflexão sobre temas polêmicos por ela tratados: o papel de Maria Madalena, a questão dos merovíngios e a ação da poderosa Opus Dei.

Como explicar o sucesso mundial de O Código Da Vinci? Uma das pistas é revelada pelo autor, Dan Brown, na própria narrativa. Ele escreve que o protagonista, Robert Langdon, professor de Simbologia Religiosa em Harvard, "via o mundo como uma teia de histórias e eventos profundamente entrelaçados", na qual as conexões podiam ser invisíveis, mas estavam "sempre presentes, enterradas logo abaixo da superfície".

Para trançar sua própria teia, isto é, a trama do livro, Brown traz à tona elementos simbólicos tradicionalmente integrados à cultura européia (embora talvez não em seu curso principal) e adiciona generosas doses de suspense e ação. Desse modo se configura um enredo cujo ponto de partida é a existência de uma sociedade secreta, o Priorado de Sião, que desde a Idade Média protege zelosamente um segredo capaz de abalar os fundamentos do cristianismo: a ligação amorosa entre Jesus e Maria Madalena, que gerou uma descendência mais tarde prolongada na linha de reis merovíngios. Leonardo da Vinci, um dos grãos-mestres do Priorado, sugeriu esse relacionamento em seu famoso afresco A última ceia, no qual a figura andrógina à direita de Jesus não seria o apóstolo João, como geralmente se acredita, e sim Maria Madalena. Os interessados em se apoderar das evidências desse segredo, entre os quais religiosos ligados à Opus Dei, não hesitam em matar. O resultado é uma sucessão de crimes e desvendamentos de códigos que prendem o leitor literalmente da primeira à última página - e sem dúvida vão fazer o mesmo com os espectadores do filme.

Quais desses fios são mais resistentes fora da teia de O Código Da Vinci? Quais símbolos têm existência própria, independentemente da imaginação fértil de Dan Brown? É o que se vai verificar em seguida.


Maria Madalena
No texto "Contra-inquérito da História", publicado em Historia no 699, o jornalista francês Jacques Duquesne observa que Maria Madalena "é a mais célebre das santas cristãs, depois de Maria, a mãe de Jesus. Ela é, segundo os Evangelhos, a primeira a vê-lo ressuscitado. Do que advém dela em seguida, sabe-se pouco. Mas a lenda apoderou-se dela desde os primeiros séculos. Uma lenda que não cessou de se enriquecer desde então, já que se supunha ser ela bela e se lhe atribui um passado agitado, sulfuroso e misterioso. E, também, pelo fato de ter-se feito dela a imagem da sensualidade pecadora arrependida, perdoada".

Mais adiante, Duquesne explica que Dan Brown retomou "uma tese já antiga: Maria Madalena teria sido a amante de Jesus, ter-lhe-ia dado um filho e a Igreja, em seguida, teria abafado o caso. [...] Dever-se-ia, talvez, encontrar a origem de todas essas hipóteses no Evangelho de Maria, texto atribuído a Míriam de Magdala, recopiado no início do século V e de origem precisa desconhecida, fazendo-a amiga íntima de Jesus, uma \\'iniciada\\' que transmite seus ensinamentos mais misteriosos. Convém, ainda, lembrar a existência de um Evangelho segundo Felipe, igualmente antigo, cujo texto poderia escandalizar muitos cristãos: \\'O Senhor amava Maria mais do que todos os outros discípulos e beijava-a freqüentemente na boca\\'". Seguindo na mesma direção, outros autores insistem que o episódio evangélico das Bodas de Canaã, no qual Jesus transformou milagrosamente água em vinho, seria um relato "codificado" de suas núpcias com Maria Madalena.

Inúmeros documentos medievais registram a transferência, para a atual França, da discípula dileta de Jesus. Por exemplo, vitrais da magnífica catedral de Chartres mostram cenas da vida de Maria Madalena em solo europeu. A partir daí, sua história se entrelaça com a do Santo Graal. Segundo alguns relatos, ela teria levado para a França o cálice que recolheu o sangue de Jesus crucificado. Por sua vez, Henry Lincoln, Michael Baigent e Richard Leigh, autores de O Santo Graal e a linhagem sagrada (Editora Nova Fronteira), consideram que o vaso seria a própria Maria Madalena, que estava grávida quando viajou para a França e ali deu à luz a filha de Jesus, de nome Sara. Santo Graal seria uma variação de "sangue real", referência à linhagem de Jesus e Maria Madalena, descendentes respectivamente de reis das tribos de Judá e de Benjamin. Diga-se que os autores acusam Dan Brown de ter plagiado suas idéias: mais uma polêmica ligada a O Código Da Vinci.

A partir da segunda metade do século XX, a retomada da importância da dimensão feminina nos fenômenos religiosos aproximou Maria Madalena e a própria Virgem Maria da figura da deusa, símbolo imemorial do feminino. As duas seriam representações desse princípio, que se manifestou, mil anos antes de Cristo, em sacerdotisas como a rainha de Sabá. Indo ainda mais longe no passado, vários pesquisadores afirmam que diversos atributos da divindade egípcia Ísis, mãe de Hórus, foram simplesmente transferidos para a mãe de Jesus. Não por acaso, no início da trama de O Código Da Vinci, Robert Langdon conta que está escrevendo um livro sobre "a iconografia da adoração à deusa - o conceito de santidade feminina e a arte e os símbolos associados a ela".

Merovíngios
A dinastia dos merovíngios recebeu esse nome devido a Meroveu, rei dos francos sálios, que reinou de 447 a 457. Diz a lenda que corria em suas veias o sangue de dois pais diferentes: o rei Clódio, que iniciou a expansão dos francos na Gália, e uma misteriosa criatura aquática conhecida como Quinotauro. Clóvis, neto de Meroveu, subiu ao trono em 481, converteu os francos ao cristianismo em 496, aliou-se à Igreja Católica e derrotou os visigodos do sul da França, estendendo seus domínios até os Pireneus. Com isso, reforçou a hegemonia do catolicismo, pois os visigodos eram seguidores da heresia ariana. O rei também unificou os territórios dos francos, que chegaram a abranger boa parte da França, do oeste da Alemanha, da Suíça e dos Países Baixos.

Com o tempo a dinastia decaiu e débeis monarcas, conhecidos como "rois fainéants" (reis indolentes), entregaram a administração efetiva aos chamados prefeitos do palácio. Um deles, Pepino, o Breve, pai de Carlos Magno, depôs o último soberano merovíngio, Childerico III, e assumiu a coroa dos francos em 751.

No livro Decifrando o Código Da Vinci (Bertrand Brasil), Simon Cox informa que a inserção da suposta filha de Jesus na linhagem merovíngia parece ter ocorrido basicamente por iniciativa dos autores de O Santo Graal e a linhagem sagrada. No entanto, muito antes da publicação da obra e da divulgação dessa tese, autores próximos das doutrinas ocultistas já sugeriam que os descendentes de Clódio e do monstro marinho Quinotauro gozavam de aptidões sobrenaturais, podendo curar os enfermos com um simples toque. Reis-sacerdotes, eles eram "fainéants" porque, a rigor, não precisavam fazer coisa alguma: bastava-lhes portar a coroa e atrair, com isso, as bênçãos divinas para seus súditos. Os alegados poderes de cura dos monarcas franceses, que a partir de Clóvis foram ungidos e coroados na catedral de Reims, constituíam um legado merovíngio.

Priorado de Sião
Elemento central de O Código Da Vinci, o Priorado de Sião reivindicava uma história milenar. Teria sido criado na Terra Santa, por iniciativa de Godofredo de Bulhões, líder da Primeira Cruzada, que conquistou Jerusalém em 1099. Na realidade, o Priorado de Sião surgiu em data posterior. Foi fundado em 1956 por Pierre Plantard, cujas revelações constituem a espinha dorsal do livro de Lincoln, Baigent e Leigh.

Declarando-se grão-mestre da ordem e descendente do rei merovíngio Sigisberto IV, nascido de um casamento secreto de Dagoberto II, Plantard estava interessado em sustentar a continuidade dessa dinastia até os dias atuais e seus direitos ao trono francês. Assim, jamais endossou formalmente - embora tampouco negasse - a tese levantada pelos três autores, de que a linhagem merovíngia se entrelaçava com a de Jesus.

Em 1984, dois anos depois do lançamento do livro de Lincoln, Baigent e Leigh, Plantard renunciou ao cargo de grão-mestre do Priorado de Sião, que passou à clandestinidade. Em 1992, confessou à justiça francesa que todo o esquema da ordem e os dossiês secretos que lhe davam sustentação não passavam de uma grande fraude montada por ele.

Opus Dei
Resta examinar o grupo religioso que aparece no romance como o principal interessado em ter acesso a qualquer preço ao segredo da linhagem de Jesus: a Opus Dei. Ainda que no final, numa reviravolta do enredo, Dan Brown a "absolva" dos crimes praticados por um de seus membros, fica a idéia de que se trata de uma entidade misteriosa, rica e influente, disposta a tudo para atingir seus objetivos.

Sentindo o golpe, os dirigentes da "Obra" - como a instituição costuma se designar - declararam guerra a O Código Da Vinci, primeiro ao livro e agora ao filme, mobilizando as estruturas e o poder da Igreja Católica para esse combate sem trégua.

Na verdade, muito antes do lançamento do best-seller, o grupo católico fundado em 1928 pelo padre catalão Josemaría Escrivá de Balaguer já era visto por muitos setores como a encarnação do mal. Alguns críticos denunciaram suas ligações com o franquismo e outros regimes autoritários, os vínculos entre seus membros e as elites políticas e econômicas mais conservadoras. Outros a apresentaram como o verdadeiro poder nos bastidores da Santa Sé, por trás do papa João Paulo II e de seu sucessor Bento XVI. Também foram criticadas certas práticas de autodisciplina e penitência, que levavam alguns de seus integrantes a usar cilícios de pontas afiadas sob as roupas e a se flagelar. No livro de Dan Brown, o personagem Silas é um desses penitentes. O autor o faz pronunciar as palavras "a dor é boa", escritas pelo fundador da Opus Dei, quando Silas comete seu primeiro assassinato, em pleno museu do Louvre.

Para se obter uma imagem mais equilibrada dessa entidade, com seus defeitos e virtudes, um bom ponto de partida é a leitura do livro Opus Dei - Os mitos e a realidade (Editora Campus), do jornalista John L. Allen Jr. O autor, que não é militante da organização, levantou dezenas de depoimentos de pessoas favoráveis e contrárias à atuação do grupo, para chegar a uma visão mais isenta das várias dimensões da "Obra". Ele a compara a uma cerveja Guiness Extra Stout, densa e amarga, de alto teor alcoólico e calórico. Ela jamais será a líder do mercado, mas "um público fiel sempre a prestigiará, exatamente porque resiste aos modismos".

Allen Jr. enfatiza um princípio fundamental desenvolvido por Escrivá: a santificação do trabalho e da vida cotidiana. Destino universal de todo cristão, "a santidade não é algo a ser alcançado por meio de preces e da penitência espiritual, mas pelos detalhes mundanos do trabalho cotidiano". Dessa perspectiva, cada um deve executar da melhor maneira possível seu trabalho, manual ou intelectual, oferecendo-o a Deus. Essa concepção se reflete no caráter inovador do apostolado da Opus Dei, que recruta para suas fileiras ou mantém sob sua influência sacerdotes e leigos, católicos e não-católicos, até mesmo não-cristãos. São os leigos, afinal, que podem alcançar, por uma mudança de postura em seu trabalho cotidiano, a santidade nos tempos atuais.

O autor informa que existem diferentes categorias de membros na Opus Dei. Os supernumerários, correspondentes a 70% dos integrantes, são leigos de ambos os sexos que procuram levar uma vida cristã em seu dia-a-dia, sob a orientação espiritual de dirigentes do grupo. Já os numerários, cerca de 20% do total, dedicam-se de corpo e alma à "Obra". Muitos são leigos e profissionais bem-sucedidos, mas fazem voto de celibato, doam a quase totalidade de seus rendimentos à organização e vivem em centros comunitários. É geralmente entre eles que se encontram os portadores de cilícios de pontas de ferro, usados durante algumas horas por dia.

Muitos numerários também recorrem às "disciplinas", um chicote de cordas com que se golpeiam durante as orações.

Existem ainda os adscritos e os cooperadores. Os primeiros aproximam-se dos numerários por seus votos de celibato, mas devido a circunstâncias pessoais moram com suas famílias e não nos centros da Opus Dei. Os cooperadores, por sua vez, não são rigorosamente membros e sim simpatizantes da "Obra", apoiando-a com suas ações e recursos financeiros. Entre eles é possível encontrar, além de católicos, outros grupos de cristãos, judeus, muçulmanos, budistas e indivíduos sem religião.

A Opus Dei é uma organização poderosa no seio da Igreja Católica? Sim, responde John Allen Jr. Ele informa em seu livro que, em 1982, a instituição tornou-se a primeira prelazia pessoal na estrutura eclesiástica católica, e a única a ser estabelecida até agora. Isso significa que o prelado do grupo em Roma, o bispo Javier Echevarría, exerce jurisdição sobre seus membros no tocante a questões relacionadas ao funcionamento interno da "Obra". Em boa medida, esse status protege a atuação dos numerários e supernumerários da interferência dos bispos locais.

Outra evidência do prestígio da organização envolveu seu fundador. Morto em 1975, Josemaría Escrivá foi beatificado em 1992 e canonizado uma década depois. O papa João Paulo II, que colocou, num prazo recorde, Escrivá entre os santos, deu várias demonstrações públicas de apreço ao grupo. O mesmo faz Bento XVI, sucessor do papa falecido em 2005.

Sem dúvida, a Opus Dei ofereceu sustentação a João Paulo II durante todo o seu pontificado, iniciado em 1978, e ajudou a desarticular em 2005 a resistência dos setores mais progressistas da Igreja à escolha do cardeal alemão Ratzinger como ocupante do trono de São Pedro. No entanto, não se pode concluir daí que a "Obra" determine, dos bastidores, as decisões dos pontífices. Ao contrário, muitas vezes ela agiu abertamente como "tropa de choque" disciplinada e obediente à hierarquia eclesiástica, encarregando-se da defesa de medidas desgastantes como a proibição do aborto.

A Opus Dei teve e tem ligações com regimes autoritários e elites conservadoras? Segundo Allen Jr., é preciso, de saída, contextualizar a questão. No tempo da guerra civil na Espanha (1936-1939), Escrivá e a maioria dos católicos do país apoiaram os nacionalistas contra os republicanos. Nas décadas seguintes, a organização forneceu alguns ministros aos governos franquistas e pós-franquistas, em geral quadros de perfil tecnocrático. Em contrapartida, informa o autor, diversos numerários foram presos ou tiveram de se exilar por sua oposição a Franco.

Os sucessores de Escrivá costumam descartar a acusação de serem ligados às elites, lembrando que entre os construtores da "Obra" - menos de 100 mil no mundo inteiro - existem trabalhadores manuais, motoristas de ônibus, donos de lavanderias e outros pequenos negócios e simples donas-de-casa. O livro de Allen Jr. traz depoimentos de alguns desses colaboradores mais humildes. E também do jornalista de Barcelona Luís Foix, militante da organização, que colabora em publicações de centro-esquerda e apóia os socialistas nas eleições. Ele enfatiza a liberdade de opinião existente dentro do grupo, afirmando que ninguém jamais tentou influenciar suas escolhas políticas. "Como membro da Opus Dei, sou totalmente livre", resume.

Mas a diversidade de origens sociais e de opiniões não esconde a presença conservadora em suas fileiras. Allen Jr. observa que, em termos sociológicos, a entidade em geral atrai indivíduos com uma visão de mundo tradicionalista, contrários, por exemplo, ao sexo antes do casamento, ao aborto e às uniões de homossexuais. Na esfera política, ainda que a instituição não se posicione de maneira centralizada e monolítica, não podem ser ignorados os vínculos entre seus integrantes e grupamentos de centro-direita ou mesmo de direita ostensiva, tais como o Partido Popular da Espanha, o Partido Republicano dos Estados Unidos e o Forza Italia, criado pelo primeiro-ministro e magnata da mídia Silvio Berlusconi. Por exemplo, na Espanha, o governo de José María Aznar, primeiro-ministro entre 1996 e 2004 pelo Partido Popular, contou com a participação de três membros da Opus Dei. Na verdade, a organização forneceu a administrações conservadoras da Europa e das Américas uma série de homens públicos que poderiam ser qualificados como tecnocratas esclarecidos. A presença, entre as obras corporativas controladas pela prelazia, de 15 universidades e 11 faculdades de administração sugere que os círculos das elites continuarão a incorporar quadros formados no espírito da "Obra" concebida em 1928 por Josemaría Escrivá.

Todos esses aspectos traçam o esboço de uma organização dinâmica e poderosa, cujos integrantes assumem abertamente sua presença nos círculos de poder em âmbito internacional e na administração do sistema capitalista em tempos de globalização. Nada, porém, que se compare à imagem do grupo quase secreto, influente e inflexível, que transparece nas páginas de O Código Da Vinci.

Cadu Silveira é jornalista.

Revista Historia Viva

4 comentários:

www.katobengke.com disse...

viva la vida....
hello....

- Moisés Correia - disse...

Chegar aqui e ver tamanha beleza
Numa pagina que fermenta alegria…
É sonhar acordado e voar na leveza
De poetizar tudo… porque tudo é poesia

Uma semana de paz e alegria…

O eterno abraço…

-MANZAS-

Luzinha disse...

clap, clap, clap!
excelente!

singamaraja disse...

Auuum !

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