Machado de Assis mostra como o simples fato de andar de bonde podia revelar as tansformações que a cidade sofria ao se modernizar
Julia Galli O’Donnell
Os olhos se acostumavam à luz vinda dos postes de iluminação a gás, aos flashes das fotografias, ao escuro dos cinemas. Aos ouvidos cabia absorver a abundância de sotaques, as vozes anônimas dos rádios, as falas distantes dos telefones, e passar impune à polifonia que as aglomerações em trânsito produziam. O aroma dos charutos e cigarros, os perfumes das damas e o suor dos trabalhadores propunham novos desafios ao olfato. A cidade se oferecia à visão, à audição e ao olfato numa velocidade que fazia da abundância de estímulos sensoriais a sua marca. Em contrapartida, o indivíduo se voltava para si.
Esta descrição se aplicaria a qualquer dos processos de urbanização marcados pelas revoluções tecnológicas do século XIX. Novas classes sociais, novas concepções de tempo, novos espaços, novas relações entre uns e outros. A Viena de Freud, a Paris de Baudelaire. São muitas as metrópoles cujo crescimento ficou registrado na literatura a partir do olhar de um novo indivíduo, agora feito transeunte. Já Machado de Assis registrou um caso peculiar de cosmopolitismo emergente, no qual o progresso esbarrava no arcaísmo estrutural da sociedade, que vivia de forma muito singular – a interação entre os mundos do “público” e do “privado”: o Rio de Janeiro em fins do século XIX, a capital da recém-nascida República brasileira — o Rio de Machado de Assis.
Escrita em 1896, a crônica “Instruções” desvenda a nova vida pública e urbana nos primórdios do Rio de Janeiro republicano. Ao falar ironicamente em regras de conduta para o espaço do bonde, o cronista introduz os códigos que regulavam um espaço no qual a comunicação corporal falava mais alto que qualquer outra. Os gestos e comportamentos mencionados na crônica revelam como a convivência nas ruas cariocas do fim do século XIX refletia a chegada da modernidade naquele contexto:
INSTRUÇÕES
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam os bondes.
O desenvolvimento que tem tido entre nós este meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.
Art. I - Dos Encatarrados – Os encatarrados podem entrar nos bondes, com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrados têm dois alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc.
Art. II - Da Posição Das Pernas – As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas mediante uma pequena gratificação.
Art. III - Da Leitura Dos Jornais – Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus; também não é bonito encostá-lo no passageiro da frente.
Art. IV - Dos Quebra-Queixos – É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.
Art. V - Dos Amoladores – Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de ponta-pés; a pessoa deve imediatamente pespegá-los.
No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as cousas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
Art. VI - Dos Perdigotos – Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo as ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara voltada para a rua.
Art. VII - Das Conversas – Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma cousa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo o caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.
Art. VIII - Das Pessoas Com Morrinha – As pessoas que tiverem morrinha podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.
Art. IX - Da Passagem Às Senhoras – Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.
Art. X - Do Pagamento – Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.
Os dez “artigos” são fragmentos de um conjunto de regras da boa convivência que os novos aparatos — fossem técnicos, como transporte e iluminação, ou ideológicos, como o higienismo e o embelezamento urbano — impunham àqueles que freqüentassem a menina dos olhos da República: a rua. Ela, o espaço público por excelência, ramificava-se cidade afora, dando vida a um mundo insensível ao espaço do privado.
Serviços, lojas e passos apressados faziam pulsar a cidade-capital que, sendo o principal porto de exportação do país e sede da antiga Corte imperial, apresentava-se ao mundo como vitrine de uma sociedade que procurava civilizar-se, no mais europeu dos sentidos. Com pouco menos de um milhão de habitantes, o Rio de Janeiro chegou ao século XX seguindo um novo projeto urbanístico que fazia do centro da cidade o coração da modernidade tropical. Fachadas em estilo art-nouveau, mármores, cristais, trajes ingleses e chapéus franceses davam o tom dessa atmosfera cosmopolita que excluía os bairros afastados da região central.
o centro do Rio era, portanto, a concretização de uma política de tom civilizatório-europeizante, que marcava o início do período republicano com sua ânsia por “progresso”. A área central da cidade passou a ser, cada vez mais, o centro irradiador de valores, modas, comportamentos — enfim, de novas sensibilidades frente a um novo ritmo e uma nova paisagem que se apresentavam ao resto do país como o futuro, infalível e galopante.
São muitas as lentes que podem ser escolhidas para apreender o passado no seu ritmo, na sua cor, no seu “espírito”. Entre as tantas situações de convivência nas ruas, o texto de Machado de Assis elege uma delas, perene no seu sentido, fugaz na sua existência: o bonde, símbolo da mobilidade que caracteriza a modernização, marca inequívoca da ocupação das ruas, espaço extremo, uma nova forma de convivência que se formava ao sabor do progresso. As interações que ocorrem no diminuto interior do bonde — no ritmo acelerado que o trânsito impõe às relações que se estabelecem e se desfazem entre os passageiros durante a viagem — fazem desse meio de transporte um bom veículo para pensar a sociedade da época. O bonde era o único meio de transporte público urbano, e dinamizava a cidade levando passageiros de um lado para outro.
A crônica de Machado aparece no auge do processo de reconfiguração da cidade, ocorrido entre 1872 e 1890. Nesse período, a população e a densidade demográfica do Rio de Janeiro quase dobraram. A expansão demográfica forçou uma expansão física que levou ao crescimento da malha urbana, facilitado pelo desenvolvimento dos meios de transporte – em especial o bonde, que existia desde a década de 1870. A Proclamação da República, em 1889, acelerou este processo, com a nova ordem estimulando o desenvolvimento de práticas sociais adaptadas ao novo equipamento urbano.
Nesse contexto, a ampliação dos serviços de transporte, por serem tão visíveis (e audíveis), fez-se concreta nas ruas e na vida das pessoas que se movimentam pela rua. O bonde tornava-se uma presença-símbolo da nova ocupação urbana, atuando como meio de transporte, mas também de recreação. Ao invadir as ruas, o bonde revolucionou usos e costumes das pessoas que circulavam pela cidade.
A mudança dos padrões de interação social aparecia claramente no transporte público, ainda que a estratificação de classes tenha sido acentuada pelos caminhos da malha de trilhos, que acabaram por afastar ainda mais os bairros ricos e pobres. Estes últimos eram muitas vezes excluídos dos itinerários, distanciando-se do centro nevrálgico da cidade, cada vez mais articulado. Apesar disso — e das diferentes categorias de transporte que o Estado oferecia aos passageiros de origens distintas —, o bonde carregava na sua conotação social o adjetivo “democrático”, uma vez que nele, como nunca antes, encontravam-se pessoas de origens e trato absolutamente diferentes, reunidas sob um mesmo título, garantido pelo pagamento da passagem: passageiro. Ou, como queria a República, cidadão.
Jornais e revistas pareciam fascinados com o novo horizonte de relações que aquele pequeno e móvel espaço criava, fazendo dos comportamentos e gestos dos passageiros uma pauta diária de colunas e conversas. Como nenhum outro lugar, o bonde condensava o espírito cosmopolita, oferecendo aos passageiros a chance de observar os demais por um tempo maior do que as calçadas proporcionavam. Dessa interação entre cidadãos tão desiguais emergia a pluralidade que a metrópole carrega como marca fundadora. Os novos espaços e ocasiões para contatos entre pessoas dos mais diferentes tipos faziam nascer uma sensibilidade até então inédita na vida coletiva, marcada pela proximidade física a que os corpos tão distintos passavam a ser submetidos. A cidade civilizava-se e o bonde era um laboratório perfeito, símbolo da pressa e da superficialidade que marcam a dinâmica urbana moderna.
Na viagem de um ponto a outro da cidade a bordo de um bonde, a vida privada dos indivíduos se relacionava com o mundo exterior de um modo novo. Machado de Assis trata de desconhecidos que se aglomeram num mesmo espaço, ao mesmo tempo, numa condição similar e de intimidade física, mas sem que suas vidas se cruzem no plano das experiências que vão além daquela situação específica de trânsito. Os “artigos” do código deixam bem clara uma atitude de reserva, de preservação da individualidade de cada passageiro, uma etiqueta que deve garantir que suas experiências sensoriais e sua interação com os companheiros de viagem se limitassem ao plano visual. As pernas não devem se tocar, as conversas não devem ser ouvidas, os catarros não devem ser compartilhados, os jornais não devem avançar pelo território alheio. A cada um cabe o espaço individualizado que o bilhete garante e que deve ser respeitado. O corpo deve ser treinado e os instintos moldados para os novos tempos.
Através das sensações do passageiro — essa modalidade específica de transeunte –, podemos nos aproximar dos universos em trânsito sobre os trilhos e as calçadas. Estes universos, em sua polifonia, faziam da rua um local de extrema importância no processo de civilização e modernidade idealizado pela jovem república. No entanto, além de identificar, nas posturas do código de convivência nos bondes, os sinais dessa importância, o tom cômico da crônica de Machado de Assis nos alerta para as contradições e tensões que a modernidade trazia a um cotidiano ainda tão cheio de arcaísmos, como no caso brasileiro.
O código de conduta nos bondes mostra, com graça e curiosidade, que a civilidade à moda européia chegava em ritmo muito mais lento que os passos dos burros à frente dos bondes. Se não fosse assim, não haveria motivos para que a ironia machadiana nos chamasse atenção para a necessidade de os passageiros terem sua sensibilidade treinada para a convivência em padrões modernos. Ao fazer isso, o texto consegue sobreviver ao século que dele nos separa, por revelar tensões que ainda hoje marcam a vida do brasileiro no que diz respeito às regulações entre o espaço público e o privado. Prova disso é que ainda podemos rir de uma piada escrita há mais de um século, com um constrangimento que só o sentimento de identificação pode provocar. Ao fazer isso, compartilhamos não o contexto específico das situações evocadas pelo texto, mas sim seu significado mais profundo. A crônica de Machado de Assis chega ao século XXI com um sabor de atualidade, marca do gênio.
Julia Galli O’Donnell é mestranda em Antropologia Social no Museu Nacional da UFRJ, onde desenvolve a dissertação “No olho da rua: a etnografia urbana de João do Rio”.
texto da Revista de História da Biblioteca Nacional
Julia Galli O’Donnell
Os olhos se acostumavam à luz vinda dos postes de iluminação a gás, aos flashes das fotografias, ao escuro dos cinemas. Aos ouvidos cabia absorver a abundância de sotaques, as vozes anônimas dos rádios, as falas distantes dos telefones, e passar impune à polifonia que as aglomerações em trânsito produziam. O aroma dos charutos e cigarros, os perfumes das damas e o suor dos trabalhadores propunham novos desafios ao olfato. A cidade se oferecia à visão, à audição e ao olfato numa velocidade que fazia da abundância de estímulos sensoriais a sua marca. Em contrapartida, o indivíduo se voltava para si.
Esta descrição se aplicaria a qualquer dos processos de urbanização marcados pelas revoluções tecnológicas do século XIX. Novas classes sociais, novas concepções de tempo, novos espaços, novas relações entre uns e outros. A Viena de Freud, a Paris de Baudelaire. São muitas as metrópoles cujo crescimento ficou registrado na literatura a partir do olhar de um novo indivíduo, agora feito transeunte. Já Machado de Assis registrou um caso peculiar de cosmopolitismo emergente, no qual o progresso esbarrava no arcaísmo estrutural da sociedade, que vivia de forma muito singular – a interação entre os mundos do “público” e do “privado”: o Rio de Janeiro em fins do século XIX, a capital da recém-nascida República brasileira — o Rio de Machado de Assis.
Escrita em 1896, a crônica “Instruções” desvenda a nova vida pública e urbana nos primórdios do Rio de Janeiro republicano. Ao falar ironicamente em regras de conduta para o espaço do bonde, o cronista introduz os códigos que regulavam um espaço no qual a comunicação corporal falava mais alto que qualquer outra. Os gestos e comportamentos mencionados na crônica revelam como a convivência nas ruas cariocas do fim do século XIX refletia a chegada da modernidade naquele contexto:
INSTRUÇÕES
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam os bondes.
O desenvolvimento que tem tido entre nós este meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.
Art. I - Dos Encatarrados – Os encatarrados podem entrar nos bondes, com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrados têm dois alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc.
Art. II - Da Posição Das Pernas – As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas mediante uma pequena gratificação.
Art. III - Da Leitura Dos Jornais – Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus; também não é bonito encostá-lo no passageiro da frente.
Art. IV - Dos Quebra-Queixos – É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.
Art. V - Dos Amoladores – Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de ponta-pés; a pessoa deve imediatamente pespegá-los.
No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as cousas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
Art. VI - Dos Perdigotos – Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo as ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara voltada para a rua.
Art. VII - Das Conversas – Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma cousa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo o caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.
Art. VIII - Das Pessoas Com Morrinha – As pessoas que tiverem morrinha podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.
Art. IX - Da Passagem Às Senhoras – Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.
Art. X - Do Pagamento – Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.
Os dez “artigos” são fragmentos de um conjunto de regras da boa convivência que os novos aparatos — fossem técnicos, como transporte e iluminação, ou ideológicos, como o higienismo e o embelezamento urbano — impunham àqueles que freqüentassem a menina dos olhos da República: a rua. Ela, o espaço público por excelência, ramificava-se cidade afora, dando vida a um mundo insensível ao espaço do privado.
Serviços, lojas e passos apressados faziam pulsar a cidade-capital que, sendo o principal porto de exportação do país e sede da antiga Corte imperial, apresentava-se ao mundo como vitrine de uma sociedade que procurava civilizar-se, no mais europeu dos sentidos. Com pouco menos de um milhão de habitantes, o Rio de Janeiro chegou ao século XX seguindo um novo projeto urbanístico que fazia do centro da cidade o coração da modernidade tropical. Fachadas em estilo art-nouveau, mármores, cristais, trajes ingleses e chapéus franceses davam o tom dessa atmosfera cosmopolita que excluía os bairros afastados da região central.
o centro do Rio era, portanto, a concretização de uma política de tom civilizatório-europeizante, que marcava o início do período republicano com sua ânsia por “progresso”. A área central da cidade passou a ser, cada vez mais, o centro irradiador de valores, modas, comportamentos — enfim, de novas sensibilidades frente a um novo ritmo e uma nova paisagem que se apresentavam ao resto do país como o futuro, infalível e galopante.
São muitas as lentes que podem ser escolhidas para apreender o passado no seu ritmo, na sua cor, no seu “espírito”. Entre as tantas situações de convivência nas ruas, o texto de Machado de Assis elege uma delas, perene no seu sentido, fugaz na sua existência: o bonde, símbolo da mobilidade que caracteriza a modernização, marca inequívoca da ocupação das ruas, espaço extremo, uma nova forma de convivência que se formava ao sabor do progresso. As interações que ocorrem no diminuto interior do bonde — no ritmo acelerado que o trânsito impõe às relações que se estabelecem e se desfazem entre os passageiros durante a viagem — fazem desse meio de transporte um bom veículo para pensar a sociedade da época. O bonde era o único meio de transporte público urbano, e dinamizava a cidade levando passageiros de um lado para outro.
A crônica de Machado aparece no auge do processo de reconfiguração da cidade, ocorrido entre 1872 e 1890. Nesse período, a população e a densidade demográfica do Rio de Janeiro quase dobraram. A expansão demográfica forçou uma expansão física que levou ao crescimento da malha urbana, facilitado pelo desenvolvimento dos meios de transporte – em especial o bonde, que existia desde a década de 1870. A Proclamação da República, em 1889, acelerou este processo, com a nova ordem estimulando o desenvolvimento de práticas sociais adaptadas ao novo equipamento urbano.
Nesse contexto, a ampliação dos serviços de transporte, por serem tão visíveis (e audíveis), fez-se concreta nas ruas e na vida das pessoas que se movimentam pela rua. O bonde tornava-se uma presença-símbolo da nova ocupação urbana, atuando como meio de transporte, mas também de recreação. Ao invadir as ruas, o bonde revolucionou usos e costumes das pessoas que circulavam pela cidade.
A mudança dos padrões de interação social aparecia claramente no transporte público, ainda que a estratificação de classes tenha sido acentuada pelos caminhos da malha de trilhos, que acabaram por afastar ainda mais os bairros ricos e pobres. Estes últimos eram muitas vezes excluídos dos itinerários, distanciando-se do centro nevrálgico da cidade, cada vez mais articulado. Apesar disso — e das diferentes categorias de transporte que o Estado oferecia aos passageiros de origens distintas —, o bonde carregava na sua conotação social o adjetivo “democrático”, uma vez que nele, como nunca antes, encontravam-se pessoas de origens e trato absolutamente diferentes, reunidas sob um mesmo título, garantido pelo pagamento da passagem: passageiro. Ou, como queria a República, cidadão.
Jornais e revistas pareciam fascinados com o novo horizonte de relações que aquele pequeno e móvel espaço criava, fazendo dos comportamentos e gestos dos passageiros uma pauta diária de colunas e conversas. Como nenhum outro lugar, o bonde condensava o espírito cosmopolita, oferecendo aos passageiros a chance de observar os demais por um tempo maior do que as calçadas proporcionavam. Dessa interação entre cidadãos tão desiguais emergia a pluralidade que a metrópole carrega como marca fundadora. Os novos espaços e ocasiões para contatos entre pessoas dos mais diferentes tipos faziam nascer uma sensibilidade até então inédita na vida coletiva, marcada pela proximidade física a que os corpos tão distintos passavam a ser submetidos. A cidade civilizava-se e o bonde era um laboratório perfeito, símbolo da pressa e da superficialidade que marcam a dinâmica urbana moderna.
Na viagem de um ponto a outro da cidade a bordo de um bonde, a vida privada dos indivíduos se relacionava com o mundo exterior de um modo novo. Machado de Assis trata de desconhecidos que se aglomeram num mesmo espaço, ao mesmo tempo, numa condição similar e de intimidade física, mas sem que suas vidas se cruzem no plano das experiências que vão além daquela situação específica de trânsito. Os “artigos” do código deixam bem clara uma atitude de reserva, de preservação da individualidade de cada passageiro, uma etiqueta que deve garantir que suas experiências sensoriais e sua interação com os companheiros de viagem se limitassem ao plano visual. As pernas não devem se tocar, as conversas não devem ser ouvidas, os catarros não devem ser compartilhados, os jornais não devem avançar pelo território alheio. A cada um cabe o espaço individualizado que o bilhete garante e que deve ser respeitado. O corpo deve ser treinado e os instintos moldados para os novos tempos.
Através das sensações do passageiro — essa modalidade específica de transeunte –, podemos nos aproximar dos universos em trânsito sobre os trilhos e as calçadas. Estes universos, em sua polifonia, faziam da rua um local de extrema importância no processo de civilização e modernidade idealizado pela jovem república. No entanto, além de identificar, nas posturas do código de convivência nos bondes, os sinais dessa importância, o tom cômico da crônica de Machado de Assis nos alerta para as contradições e tensões que a modernidade trazia a um cotidiano ainda tão cheio de arcaísmos, como no caso brasileiro.
O código de conduta nos bondes mostra, com graça e curiosidade, que a civilidade à moda européia chegava em ritmo muito mais lento que os passos dos burros à frente dos bondes. Se não fosse assim, não haveria motivos para que a ironia machadiana nos chamasse atenção para a necessidade de os passageiros terem sua sensibilidade treinada para a convivência em padrões modernos. Ao fazer isso, o texto consegue sobreviver ao século que dele nos separa, por revelar tensões que ainda hoje marcam a vida do brasileiro no que diz respeito às regulações entre o espaço público e o privado. Prova disso é que ainda podemos rir de uma piada escrita há mais de um século, com um constrangimento que só o sentimento de identificação pode provocar. Ao fazer isso, compartilhamos não o contexto específico das situações evocadas pelo texto, mas sim seu significado mais profundo. A crônica de Machado de Assis chega ao século XXI com um sabor de atualidade, marca do gênio.
Julia Galli O’Donnell é mestranda em Antropologia Social no Museu Nacional da UFRJ, onde desenvolve a dissertação “No olho da rua: a etnografia urbana de João do Rio”.
texto da Revista de História da Biblioteca Nacional
Um comentário:
Olá,
Tudo bem?
adorei seu blog, além de informativo,
é especial.
Obrigada pela visita, volte sempre.
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