Nos estúdios fotográficos, negros livres e alforriados criavam uma nova imagem de integração social
Sandra Sofia Machado Koutsoukos
Não basta ser livre, é preciso parecer livre. Este era o desafio dos negros nascidos livres ou que recebiam a alforria na segunda metade do século XIX. Para abrir caminho naquela sociedade exigente, competitiva e racista, e se fazerem aceitos ou, pelo menos, tolerados, precisavam construir sua imagem a partir de comportamentos tomados “emprestados” dos ditos brancos.
Em geral, copiava-se o modo de vestir, pentear e posar – itens que, por sua vez, seguiam a moda européia vigente. Os recentes estúdios fotográficos que se espalhavam pelas várias cidades eram o meio de documentar e disseminar essa nova imagem, associada a idéias de distinção, erudição, riqueza e liberdade. Ou até mesmo de escravidão.
As cenas construídas nos estúdios, com os símbolos que expunham, eram “narrativas”, mensagens facilmente entendidas pelos parentes e amigos que recebiam os retratos dos entes queridos ou dos conhecidos. Os retratos deviam deixar explícita a posição que a pessoa ocupava, ou que pretendia demonstrar que ocupava. Embora fossem cenas “construídas”, ou por isso mesmo, costumavam deixar claro o papel de cada um.
Para os nascidos livres, os retratos eram uma forma de representação importante no seu meio, um símbolo de status, sobretudo se tirado nos estúdios mais procurados pela gente abastada da sociedade. Organizados em álbuns, construíam memórias familiares. Para um negro alforriado, o retrato podia funcionar como um “passaporte”, legitimando sua nova condição social.
O corpo de um ex-escravo podia conter uma série de sinais do tempo em que era cativo. Alguns traziam no corpo verdadeiros mapas de sua experiência de vida: marcas de sua etnia africana (cicatrizes que formavam desenhos, principalmente no rosto), marcas de posse do antigo dono, de castigos, de açoites, de ferros, de tentativas de suicídio. Até certa altura, escravos fujões, quando capturados, podiam ser marcados com ferro em brasa, que imprimia um “F” no ombro. Vários tinham deformidades nas pernas, na coluna ou nos dedos das mãos, causadas por determinados tipos de trabalhos repetidos. Outros haviam sofrido mutilações de dedos ou membros inteiros, no trabalho ou devido a castigos.
Nos retratos de pessoas negras nascidas livres e de pessoas alforriadas, raras vezes encontramos algo que ligue as figuras representadas a algum tipo de trabalho ou profissão, pois a exibição do instrumento de trabalho associava a pessoa aos setores livres mais pobres, ou à classe escrava. Nesses retratos, as marcas corporais de posse, de torturas, de trabalhos pesados, mesmo que existissem, não aparecem. São registros em que os estigmas da escravidão foram propositalmente ocultados.
O que se vê nas fotos são vestidos bem cortados e confeccionados com bons tecidos, roupas masculinas bem ajustadas, com gravatas de nó complicado, colete, chapéu, relógio de corrente no bolso, além de jóias, bengalas, sombrinhas, leques, flores, livros, móveis e objetos de estilo e... sapatos. Sapato em pé de negro costumava indicar liberdade.
O status trazido por uma fotografia pode parecer insignificante se comparado à luta diária que muitos tinham que travar. Mas, para boa parte, aquele registro individual ou em família era o “alento”, ou a “prova” visual, para eles próprios e para amigos e parentes distantes, de que sua luta estava valendo a pena. O valor gasto nos retratos — mesmo quando já barateados, na década de 1860, na forma do cartão de visita — podia significar um investimento dispendioso, que acarretava a privação de itens importantes para a sua sobrevivência. Mais uma prova de que a representação da liberdade própria e dos seus era um objetivo importante.
Embora eles se inspirassem na sociedade branca para compor sua nova imagem social, não se trata de um caso de “aculturação”. Era, sim, uma estratégia de aceitação, ascensão e sobrevivência. Uma forma de tentarem se esquivar dos estigmas da escravidão.
Sandra Sofia Machado Koutsoukos é doutora em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp com a tese: “No estúdio do fotógrafo. Representação e auto-representação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX”. (Unicamp, 2006, com auxílio de bolsa de pesquisa da Fapesp).
SAIBA MAIS - Livros:
ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004.
KOSSOY, Boris, e CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu. O negro na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 2002.
MAUAD, Ana Maria. “Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado”, em ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.), História da vida privada no Brasil 2. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia. das Letras, 1997, pp. 182-231.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.), Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Um comentário:
"uma estratégia de aceitação, ascensão e sobrevivência. Uma forma de tentarem se esquivar dos estigmas da escravidão."
E quanto foi díficil pra esses negros garantir sua liberdade e serem respeitados! E ainda é as vezes hoje, com outros tipos de pré-conceitos ...
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