Hoje sinônimo de independência, ser solteira foi uma situação incompreendida e ridicularizada durante séculos
Cláudia de Jesus Maia
Cláudia de Jesus Maia
Quem de nós, acima dos 20 anos, não teve ou tem na família uma recatada “tia velha”? Não é difícil identificá-las. Zelosas da educação dos sobrinhos, vigilantes da moral da família, são filhas, mas não esposas. Irmãs ou tias, mas raramente mães. Chegam aos 35 anos sem se casarem, seja por falta de pretendentes, por pressão familiar ou por escolha deliberada. No imaginário coletivo, diz-se que “ficaram para titia”. E atribuem-se a elas as piores características: megeras, amargas, invejosas, inúteis, frustradas.
Esses estereótipos envolvendo a “solteirona” vêm de longe. A palavra spinster (“solteirona”) dá uma pista sobre a principal causa da desvalorização das mulheres solteiras na Inglaterra do século XVIII. O termo foi usado pela primeira vez em 1719, na edição inaugural de um jornal chamado exatamente The Spinster. Sob o pseudônimo de Rachel Woolpack, uma articulista afirma que, em sua origem, a palavra não era depreciativa. Referia-se “à louvável ‘atividade das mulheres obreiras’” e significava, literalmente, “fiandeira”, como sugere Ian Watt em seu livro A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
Mas àquela altura, com o desenvolvimento da manufatura têxtil, as solteiras inglesas viam diminuída a sua importância nas atividades caseiras de fiar e tecer. Enquanto as casadas iam viver à custa do marido, as solteironas se viram “inúteis dependentes de alguém” ou obrigadas a trabalhar fora por baixos salários. Viria daí o sentido pejorativo que ganharam as spinsters.
A literatura oferecia fartas caricaturas de solteironas. “Considera-se agora a solteirona como uma maldição que nenhuma fúria poética consegue superar”, bombardeava o inglês Richard Allestree no livro The ladies’ calling (algo como “O chamado das mulheres”), de 1673. Em outras (terríveis) palavras, elas eram “a mais calamitosa criatura da natureza”.
Na França, ganharam outro nome, também nada lisonjeiro: vieille fille (literalmente, “filha velha”). E apareciam já na literatura clássica do século XVII, em autores como Thomas Corneille, La Fontaine e Molière, embora de forma superficial e como personagens secundários.
Com as transformações do século XIX, a “decadência” social das mulheres celibatárias torna-se irreversível. Os processos de urbanização e industrialização levaram as moças a entrar de forma mais efetiva no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, diminuía a influência da Igreja, e assim essas mulheres – que antes tinham como destino certo o convento – ficaram restritas ao ambiente doméstico, precisando contribuir para as finanças do lar. Restava às jovens burguesas dedicarem-se a atividades como governanta e professora, mais aceitáveis para a sua condição social. As mais pobres engajavam-se também nas atividades de vendedoras dos grandes magazines, funcionárias dos correios, enfermeiras ou empregadas domésticas.
Como antes, a produção literária acompanhava e alimentava o folclore em torno das solteironas. A diferença é que, no século XIX, os autores se preocupavam em aplicar princípios psicológicos no estudo da sociedade, o que ampliou o número de personagens da vieille fille, diversificou e aprofundou seus tipos. Muitas delas eram heroínas, vítimas necessárias de uma “seleção natural” e das circunstâncias. Personagens mais complexas surgiram das penas de Balzac e do grande historiador francês Jules Michelet, por exemplo.
Nada que as redimisse. Fatores como a migração masculina, as guerras e os altos custos do matrimônio faziam aumentar na Europa o número de moças que não conseguiam encontrar marido, principalmente as instruídas da classe média. Elas passaram a alimentar um verdadeiro exército de preceptoras e governantas. Muitas iam buscar trabalho em outros países, como Maria Frieda Kruger Mancini, professora alemã altamente instruída, com 25 anos de prática de ensino, que veio para o Brasil. Em 1905, ela anunciava no jornal O Jequitinhonha, de Diamantina (MG), a abertura de cursos de português, francês, inglês, alemão e italiano, além de lições de piano.
No imaginário brasileiro, as mulheres solteiras já mereciam atenção desde os tempos da Colônia. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, as expressões mais usadas para nomeá-las eram “celibatárias” – “mulher que aspirava a casar-se ou que optara pela castidade sem ingressar em religião” – e “mulher solteira” – “mulher que nunca se casou”, “mulher que não tem marido”, “mulher pública”, quase sinônimo de meretriz, embora sem a conotação profissional.
Mas a idéia de “solteirona” surgiria com maior força somente no final do século XIX, quando as brasileiras também passam a ocupar de forma mais efetiva o mundo do trabalho remunerado, espaço até então predominantemente masculino. Avançavam os setores de prestação de serviços, comércio e burocracia, abrindo possibilidades de emprego para secretárias, funcionárias públicas, enfermeiras, vendedoras, datilógrafas, farmacêuticas, assistentes sociais. A partir da década de 1920, a oportunidade de ingresso em cursos superiores oferece para as mulheres as carreiras de médica, advogada, engenheira, promotora e professora.
Motivo de orgulho feminino? Naquela época, não. Como ocorreu na Europa, o estereótipo da solteirona infeliz e frustrada começou a se expandir. Afinal, marido e filhos eram elementos obrigatórios para o ideal de realização da mulher. Um ideal não só culturalmente recomendado, mas também garantido por lei. O primeiro Código Civil brasileiro, que entrou em vigor em 1917, definia o casamento como um contrato feito entre “indivíduos livres” e baseado em obrigações mútuas: o marido tinha por incumbência sustentar e proteger a esposa; esta, por sua vez, devia-lhe obediência. Desposada, a mulher se tornava juridicamente incapaz, e só poderia seguir uma carreira profissional com a autorização do marido.
Havia quem julgasse o casamento e o trabalho feminino atividades incompatíveis. O estado de Santa Catarina chegou a criar uma lei determinando que toda professora que viesse a se casar perderia o emprego. E não foi uma iniciativa isolada. “Deve a professora casar e continuar no exercício do cargo? Acho que não. O magistério primário, quando bem compreendido na sua alta missão social e exercido com a convicção profissional de um sacerdócio, exige renúncias de quem o professa. Uma delas, a meu ver, é o matrimônio (...) – o casamento é um entrave ao desenvolvimento cabal das obrigações que o professorado exige da mulher”, defendia um artigo da revista Semana Ilustrada de 1928, a favor da adoção de uma lei semelhante em Belo Horizonte.
As artes também contribuíram para a difusão da imagem da solteirona. Ao longo do século XX, diversos escritores se dedicaram a essa personagem. Marques Rebelo, em Oscarina (1931), criou Tia Almira, uma criatura rancorosa e desprezível. Ondina Ferreira deu vida à Tia Carlota e à Tia Zulmira, em Enganoso é o Coração (1959), e à casta e rígida Ágata em Chão de Espinho (1955). Em A Primeira Pedra (1953), Heloneida Studart criou Olímpia, uma quarentona que trabalhava no escritório de uma empresa americana. Jorge Amado também teve suas solteironas, como as Irmãs Reis de Gabriela, Cravo e Canela (1960), a Carmosina, simpática funcionária dos correios, e a beata Cinira, que tinha arrepios sempre que via um homem sem camisa, ambas de Tieta do Agreste (1977). Ainda mais populares foram as fofoqueiras irmãs Cajazeiras, criadas por Dias Gomes para a peça teatral “O Bem-Amado”, nos anos 1960, e depois difundidas por todo o país na novela de mesmo nome (1973).
Mas antes que as solteironas se tornassem fenômeno televisivo, duas figuras bastante conhecidas, e de certa forma contraditórias, se destacaram na literatura brasileira: a bondosa Clotilde, criação de Maria José Dupré em Éramos Seis, e a independente professora Conceição, personagem de Rachel de Queiroz em O Quinze.
Publicado originalmente em 1943, o romance da sra. Dupré foi leitura obrigatória para toda uma geração. Dois anos depois já estava em sua quinta edição. Posteriormente, foi publicado na série “Vaga-lume”, destinada ao público juvenil, e transformado em novela televisiva, exibida pelo SBT na década de 1990. Narrada pela protagonista Lola, a história se passa em São Paulo entre os anos de 1914 e 1942. Clotilde, personagem secundária, é descrita como uma mulher religiosa, prendada, corajosa, cheia de iniciativas, mas que vive em função da mãe doente, das irmãs casadas e dos sobrinhos. A personagem é contraposta à irmã Lola, que tem “tudo”: casa própria, marido e quatro filhos. Clotilde não tem nada, mas não é uma “inútil dependente”. Ela sobrevive de seus próprios recursos como doceira. A personagem parece ter nascido para celibatária, pois não há no romance nada que justifique sua solteirice. Clotilde é a solteirona funcional da família brasileira, aquela que foi “reservada” para cuidar dos sobrinhos e dos pais idosos.
Já Conceição não se enquadra no perfil da solteirona tradicional. Até porque era uma personagem de Rachel de Queiroz. Filha de uma família da aristocracia rural nordestina, a autora causava polêmica por suas posições políticas e por um feminismo avant la lettre. Lançou O Quinze aos 19 anos (1931), com enorme repercussão nacional. Em seus romances figuram as personagens femininas mais radicais da época, como a própria Conceição, que “dizia alegremente que nascera solteirona”. Como tantas mulheres daquele período, era uma professora que vivia na cidade, e embora pertencesse a uma família tradicional do sertão, sobrevivia com seus próprios recursos. Alegre, bonita, benevolente, inteligente e culta, interessava-se por assuntos como feminismo e socialismo. Pelas leituras que fazia, por sua formação escolar e profissional, pela “liberdade” e autonomia financeira de que desfrutava, Conceição era exigente na avaliação dos pretendentes a marido. “Nunca achei quem valesse a pena”, repetia sempre. O celibato foi sua escolha, como uma forma de assegurar a liberdade.
Mulheres como a professora instruída e emancipada de Rachel de Queiroz, ao contrário da tia funcional Clotilde, eram vistas como um obstáculo ao sucesso e à plena vigência dos modelos desejados de mãe/esposa/dona-de-casa. As solteironas eram um elemento desestabilizador. Não só recusavam os papéis destinados a elas, mas transitavam livremente pelos espaços de trabalho, governando suas vidas e seus próprios bens. Por isso eram retratadas como indesejáveis: incapazes de se converter na “verdadeira mulher”, “ficaram para tia”, “torceram a natureza”, viraram “facão”. Era principalmente para estas que se dirigiam os discursos de médicos, literatos, advogados e religiosos, definindo a solteirona como ser desprezível, de quem se devia ter, no máximo, misericórdia.
As pressões feministas a partir dos anos 1960 tornaram o casamento mais igualitário. Duas leis contribuíram bastante para isso: o Estatuto da Mulher Casada (1962) e a Lei do Divórcio (1977). A primeira aboliu da legislação o artigo que afirmava a incapacidade da esposa perante a Justiça, estabelecendo, entre outras coisas, o princípio do livre exercício de profissão. A segunda permitia o fim da sociedade conjugal. A Revolução Sexual, também nos anos 1960, criou condições para que as mulheres aos poucos se libertassem da rigidez de valores como a virgindade e a castidade. Por fim, a criação da pílula anticoncepcional possibilitou a prática sexual fora do casamento sem o risco de uma gravidez.
Nestas condições, a imagem da solteirona começava finalmente a perder sua razão de ser. Ao contrário do que ocorreu com nossas mães e tias, o casamento e a maternidade estão deixando de ser o principal projeto de vida da mulher. Se antes o sinônimo de felicidade e de realização pessoal era encontrar um bom marido, ter uma casa confortável e filhos bonitos e educados, hoje grande parte das mulheres deseja e prioriza a formação escolar, a carreira profissional e a vivência de variadas experiências. Marido e filhos aparecem em segundo plano, e, em certos casos, há mesmo uma rejeição à vida conjugal. As estatísticas têm mostrado que, cada vez mais, as brasileiras se casam mais tarde e muitas sequer desejam ter filhos.
O próprio mercado já percebeu um bom filão nesta mudança de comportamento. Construtoras investem em prédios de apartamentos menores com serviços especializados. Supermercados apostam em porções e pratos individuais. Agências de turismo montam pacotes para viajantes solitários. Foi criado até o “Dia do Solteiro”, 15 de agosto. Em 2007, as propagandas, os jornais e cartões comemorativos anunciaram que a data seria dedicada a se “badalar” e celebrar a solteirice.
A solteirona de hoje pode ser “bonitona e gostosona”, como diz a música de uma famosa dupla sertaneja, a moça independente das piadas, que se recusa a ter marido, a mulher livre que pode “ficar com quem quiser”, sem nenhum constrangimento. Ao contrário de outras épocas, muitas mulheres – como fez a precursora professora Conceição, de Raquel de Queiroz – assumem orgulhosamente a condição de solteironas. Com o tempo, a recatada “tia velha” será apenas uma foto desbotada na parede...
Cláudia de Jesus Maia é professora da Universidade Estadual de Montes Claros e autora da tese A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral – Minas Gerais 1890-1948 (UNB, 2007).
Saiba Mais - Livros:
DAUPHIN, C. “Mulheres sós”. In: História das mulheres no Ocidente. O século XIX. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil, v.4, 1991.
FONSECA, C. “Solteironas de fino trato: reflexões em torno do (não) casamento entre pequeno-burguesas no início do século”. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.9, n.18, 1989.
PERROT, M. “À margem: solteiros e solitários”. In: História da vida privada no Ocidente: o século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, v.4, 1991.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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