quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Nazistas a contragosto

De 1942 a 1945, cerca de 140 mil moradores da região da Alsácia-Lorena foram incorporados ao exército de Hitler. Após a guerra, muitos desses franceses morreram como prisioneiros nos campos soviéticos
por Jean-Jacques Mourreau
©RUE DES ARCHIVES

Encontro do Partido Nazista em Estrasburgo, principal cidade da Alsácia-Lorena, em outubro de 1941

“Pobres de nós. Participamos de todas as guerras e vestimos todos os uniformes. Na minha família, nascemos franceses e nos tornamos soldados alemães, ou vice-versa. Nesse imbróglio, freqüentemente não sabíamos mais o que éramos.”

Esse é o lamúrio de um dos três heróis alsacianos de As noites de Fastov, romance cruel e perturbador que se passa na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda que na ficção, o protagonista fez parte da tragédia vivida pela região da Alsácia-Lorena no conflito entre nazistas e Aliados.

Com uma história repleta de disputas (ver quadro na pág. 79), esse pequeno território no nordeste francês foi invadido pelas tropas alemãs no primeiro semestre de 1940. Os Aliados não conseguiram resistir ao exército de Hitler e abandonaram os moradores da Alsácia-Lorena à própria sorte. Os nazistas atravessaram o rio Reno em 15 de maio e menos de 48 horas depois já estavam em Estrasburgo, principal cidade da região. Em 15 de julho ergueram uma barreira intransponível, estabelecida sobre as antigas fronteiras de 1871.

A ocupação militar se transformou em anexação de fato. A região foi desmembrada imediatamente: a Alsácia integrou-se ao Gau Oberrhein (ver glossário) e a Lorena se juntou à região do Sarre, no Gau Westmark. A língua alemã se tornou obrigatória e, em meados de outubro, a comissão de armistício exigiu que todos os alsácio-lorenos abandonassem o que restava do exército francês. Foi um enquadramento rápido.



© AKG IMAGES/LATINSTOCK

Próximo à Alsácia-Lorena, político do Partido Nazista visita garotos recrutados em 1942

A IMPLANTAÇÃO DO NAZISMO
Lá, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, conhecido como Partido Nazista (NSDAP), foi oficialmente fundado em 22 de março de 1941. Já o Reichsarbeitsdienst (RAD), o Serviço de Emprego do Reich, foi introduzido em 8 de maio de 1941. Perto de 70 mil jovens ingressaram nesse programa. Em seguida, mais de 40 mil deles foram incorporados à Wehrmacht, as forças armadas nazistas.

A partir de 2 de janeiro de 1942, o alistamento na Juventude Hitlerista tornou-se obrigatório. No início daquele ano, os Gauleiter Wagner, Bürckel e Simon fizeram um acordo sobre a participação dos alsacianos, lorenos e luxemburgueses na guerra. A luta contra o bolchevismo foi invocada, para estimular o alistamento voluntário. Lançaram então uma campanha de propaganda que trazia um apelo assinado por antigos combatentes alsacianos. O balanço oficial contabilizou 2.100 inscrições, ou seja, apenas 2% da população.

Os governantes logo pensaram em submeter os alsacianos e lorenos ao recrutamento forçado, mas a idéia provocou reservas do alto-comando da Wehrmacht e dos juristas do Reich. Afinal, pelo direito internacional eles continuavam sendo franceses. Em 9 de agosto de 1942, Hitler tomou sua decisão: a incorporação desses homens e mulheres provaria ao alto-comando da Wehrmacht que a autoridade política do Reich era perfeitamente capaz de mobilizar reservas importantes.

Fiel companheiro do Führer, o Gauleiter Wagner sustentava também que o alistamento dos alsacianos garantiria sua integração de fato à Alemanha. Em 25 de agosto, ele mandou promulgar um decreto sobre o Wehrdienst, o serviço armado. Três dias depois, anunciou que a cidadania alemã seria conferida aos alsacianos que a merecessem. Eles gozariam dos mesmos direitos e deveres que os outros soldados do Reich.



© PRESSE LIBERATION/AFP

Humilhados, os alsacianos participaram de desfiles de prisioneiros em Moscou

A partir de 28 de agosto, os jovens nascidos entre 1920 e 1924 tiveram de se apresentar ao serviço médico. Outras faixas etárias também foram convocadas. Todos seriam incorporados progressivamente ao Exército, Marinha e Aeronáutica, além de outras organizações como a Todt, responsável pela infra-estrutura militar, e as milícias populares.

Em 1944, a maioria dos novos combatentes seria ligada à Waffen SS, braço de combate da temida Schutzstaffel (SS). Na Alsácia e na Lorena, todo esse processo foi um grande trauma. Muitos dos alistados se revoltaram e tentaram fugir para a Suíça. Capturados, foram enviados ao campo de Struthof e morreram fuzilados. Os rebeldes passaram a se esconder ou até mesmo se mutilar para não serem obrigados a usar o uniforme com a suástica.

DEPORTAÇÕES
Os nazistas removeram famílias inteiras para o interior da Alemanha ou para a Polônia, então sob domínio de Hitler. Parte deles recusava-se a prestar juramento ao novo governo. Em um caso exemplar, 44 alsacianos, oficiais da reserva do exército francês, foram convocados para servir a Waffen SS. Apenas dois aceitaram. Os demais foram mandados para campos de concentração.

Chamados de Beutedeutschen, “os alemães conquistados”, os alsacianos e lorenos viram-se dispersos entre a imensidão de unidades. Imersos na máquina de guerra, em pouco tempo submetidos às exigências das operações, eles seriam chamados a combater em todas as frentes: Itália, Iugoslávia, Grécia, Dinamarca, Noruega, Normandia. O fracasso da campanha na Rússia levou o estado-maior alemão a enfrentar a recuperação soviética. Os alsacianos e lorenos tiveram de lutar no front oriental.


© AKG IMAGES/LATINSTOCK

Em abril de 1945, soldados alemães são capturados pelo Exército Vermelho

Do outro lado da linha de combate, o Exército Vermelho soviético multiplicava os apelos à deserção dos nazistas por meio de panfletos e alto-falantes. Prometia aos alsacianos e lorenos que eles poderiam se juntar às tropas do general De Gaulle, figura pública da Resistência francesa. Muitos foram convencidos por essa propaganda. Porém, quando chegavam às trincheiras russas, eram considerados inimigos.

Sem suas alianças, relógios, botas e outros parcos pertences, eles foram tratados como gado e levados aos campos de concentração. Eles não figuravam em nenhuma lista, sua captura não fora registrada.

OS CAMPOS SOVIÉTICOS
Em 1944, entre 450 mil e 500 mil soldados alemães caíram nas mãos dos soviéticos, e, nos primeiros cinco meses de 1945, 1 milhão. Os presos eram mandados a campos por toda a Europa conquistada pelo Exército Vermelho. Jean Thuet, presidente da Federação dos Antigos Combatentes de Tambow, listou mais de uma centena deles em locais até hoje desconhecidos. Contrariando as convenções internacionais, as condições eram desumanas. Tambow, a 350 km de Moscou, era o temido campo número 188. Sujeitos à autoridade direta da polícia secreta de Joseph Stálin, cerca de 13 mil alsácio-lorenos foram internados ali, junto com outros 17 mil prisioneiros de guerra. Trabalhos forçados, subalimentação, o rigor do clima e uma onda de disenteria elevaram muito a taxa de mortalidade: mais de 12 mil pessoas morreram no local.

A “conversão” dos detentos de Tambow ao comunismo era um dos objetivos dos soviéticos. Para impor a “reeducação política”, eles encontraram auxiliares nas fileiras dos presos. Alguns alsacianos e lorenos se transformariam em funcionários dos soviéticos, por interesse ou convicção. Outros foram redirecionados a uma caserna próxima de Moscou, na escola antifascista de Krasnogorsk, onde receberiam a visita de Maurice Thorez e de eminentes figuras do regime stalinista.

Em 7 de julho de 1944, na presença do general Petit, comandante da missão militar francesa em Moscou, 1.500 alsacianos e lorenos foram libertados do campo de Tambow. Antes de sua partida, receberam alimentação privilegiada. Equipados com uniformes soviéticos, foram encaminhados por Odessa à África do Norte e participaram de forma compulsória de uma operação de propaganda. A verdadeira intenção de Moscou era constituir unidades pagas, explorando prisioneiros de guerra como mão-de-obra e utilizando os cidadãos franceses mantidos prisioneiros como moeda de troca. Os alsácio-lorenos incorporados ao exército alemão eram reféns dessa estranha “reciprocidade”.

Ainda em julho, 57.600 prisioneiros alemães desfilaram em Moscou sob insultos dos soviéticos. Alguns alsacianos participaram desse triunfo do Exército Vermelho.

A capitulação da Alemanha, em 8 de maio de 1945, não pôs fim ao martírio desses soldados. Apesar do acordo entre França e URSS, estabelecido em 29 de junho, os soviéticos libertaram os cidadãos franceses a conta-gotas. Os soldados alsacianos voltaram verdadeiros esqueletos ambulantes. Em Chalon-sur-Saône, onde as autoridades francesas abriram um “centro de acolhimento” destinado a “filtrar” os resgatados, os testemunhos, de tão aterradores, chegavam a incomodar.

Na Alsácia e na Lorena, circulavam listas, ilustradas por fotografias. Elas traziam as últimas informações sobre os desaparecidos. Em 11 de julho de 1946, diante da Assembléia Nacional, o deputado Pierre Clostermann afirmava que na Alsácia “todas as questões econômicas e políticas perdiam em importância para a questão dos que lutaram a contragosto”.

Ainda levaria quatro anos para que a União Soviética anunciasse o fim do repatriamento dos prisioneiros de guerra alemães. A agência soviética indicava que 1.939.063 soldados detidos por eles teriam voltado à Alemanha desde a capitulação, e que restariam 9.717 prisioneiros acusados de crimes de guerra. Em 21 de novembro de 1950, um jornal de Estrasburgo exibia a manchete: “13.615 alsacianos e lorenos desapareceram vestindo o uniforme alemão, e seu paradeiro é desconhecido”.

Mas a esperança da volta ainda permaneceria por muito tempo, mantida por informações de soldados que conseguiram regressar por conta própria, em pequenos grupos. Foram 75 homens em 1947, 19 em 1948, 12 em 1949, 18 em 1951, quatro em 1952 e sete em 1953. Em 13 de abril de 1955, o estrasburguês Jean-Jacques Remetter foi o último a chegar. Dado como desaparecido desde 3 de maio de 1947 e declarado morto por processo administrativo em 1952, seus familiares já não esperavam mais por ele. Vestido à moda russa, Remetter mal compreendia a língua alsaciana. Aos 43 anos, parecia ter 60. Tinha vivido quatro anos em guerra e outros dez em campos de prisioneiros e de trabalhos forçados.

UMA MEMÓRIA DOLOROSA Os primeiros testemunhos desse drama apareceram em livros já nos anos 50. Por sugestão do general Touzet du Vigier, governador militar de Estrasburgo, constituiu-se a Associação dos Refugiados e Incorporados à Força (Adeif) para a defesa de seus interesses materiais e morais. A organização também divulgava a lista dos desaparecidos e estimulava o governo a reclamar notícias deles. Ela teria um papel importante na reintegração aparente dos incorporados.

Para René Kapps, alistado à força no exército alemão em 1944 e capturado na Polônia no ano seguinte, os resgatados são “testemunhas incômodas, ou então acusados. Nossa história foi escondida porque, infelizmente, nossa sorte incomoda todo mundo. Alguns de nossos camaradas foram escamoteados, como prisioneiros franceses detidos na Prússia Oriental, que os soviéticos espalharam por seus incontáveis campos. Os mortos não falam”.

A memória alsaciana e lorena continua dolorosa. Para aplacar as chagas, sempre existe a possibilidade de indenizar os alsacianos e lorenos. Mas permanece a incompreensão. E não falta quem ironize a “síndrome alsaciana”, se interrogando sobre a “memória negada” e reprovando os alsacianos e lorenos por supostamente se colocarem na posição de vítimas. Mas os fatos falam por si. Os alsacianos e lorenos pagaram à guerra um tributo mais alto do que a média dos franceses. Eles pertencem à multidão de pequenos povos maltratados pelos Estados. Não é surpreendente que encontremos entre eles os mais ardentes defensores da unidade européia.

CRONOLOGIA
1618
O Sacro Império Romano Germânico é consumido por disputas internas e tem início a Guerra dos Trinta Anos

1648
Paz de Vestfália: a Alsácia-Lorena fica sob controle da França

1870
Explode a guerra franco-prussiana. No tratado de 1871, a Alsácia-Lorena volta para as mãos dos germânicos

1918
Fim da Primeira Guerra Mundial. No Tratado de Versalhes, a França obtém a Alsácia-Lorena

1939
Início da Segunda Guerra Mundial

15 de maio de 1940
Os nazistas tomam a Alsácia-Lorena

9 de agosto de 1942
Alistamento da população da Alsácia-Lorena nas forças armadas alemãs

7 de julho de 1944
1.500 alsacianos e lorenos são libertados do campo de concentração de Tambow

13 de abril de 1955
O estrasburguês Jean-Jacques Remetter foi o último alsaciano prisioneiro político a regressar à França

UMA DISPUTA SECULAR


ILUSTRAÇÃO: ERIKA ONODERA

A região da Alsácia-Lorena era germânica. Ao menos até o século XVII. Naquela época, o Sacro Império Romano Germânico, sob a coroa dos Habsburgo, estava tomado por conflitos religiosos entre católicos e protestantes. Os governantes, influenciados pela Contra-reforma da Igreja, tomaram um lado da briga, o do catolicismo, e começaram a impor esta religião como instrumento de unificação política.

Porém, eles não previram que seus inimigos também poderiam querer entrar nessa confusão. Afinal, era um momento de fragilidade do império e uma boa oportunidade para aqueles que desejavam ver o poder dos Habsburgo diminuído. A disputa por hegemonia culminou na Guerra dos Trinta Anos, que envolveu, entre outros países, a França. Com os germânicos derrotados, as regiões da Alsácia e da Lorena passaram para as mãos dos franceses na Paz de Vestfália, tratado de 1648.

Em 1848, 200 anos depois, a Alemanha ainda não tinha se constituído como um Estado. Duas forças disputavam a Confederação Alemã: a Prússia e a Áustria. A querela seria resolvida por Otto von Bismarck, décadas depois. Nomeado primeiro-ministro da Prússia em 1862, ele planejou meticulosamente a unificação da Alemanha. Em 1867, após uma guerra contra a Áustria, conseguiu que todos os Estados do norte aceitassem seu domínio, formando a Confederação Germânica do Norte. O sul, porém, permanecia um problema. Bismarck decidiu incentivar o nacionalismo das regiões, inclusive as francesas. Foi o suficiente para explodir, em 1870, a guerra franco-prussiana. Bismarck saiu vitorioso e obteve como recompensa, entre outras, a anexação da Alsácia-Lorena. Para evitar rebeliões locais, instalou lá uma administração severa, com rígida vigilância militar.
A população local engoliu a seco. ”Depois da humilhação de 1871, as crianças francesas passaram a ser educadas para um único fim: a vingança. Todas as canções que se escutavam nas festas familiares falavam da Alsácia-Lorena”, relatou a historiadora Josette François.

A paz duraria pouco. Com a queda de Bismarck, em 1890, o Kaiser Guilherme II levou a Alemanha a um belicismo exacerbado, acentuando o clima de conflito na Europa. Seus inimigos, entre eles a França, que justamente reivindicava a devolução da Alsácia-Lorena, formaram alianças contra Guilherme II e o Império Austro-Húngaro. Em 1914, a Primeira Guerra Mundial foi declarada. Ao seu fim, o Tratado de Versalhes, assinado com a derrotada Alemanha, tinha como um dos pontos a devolução da Alsácia-Lorena para a França. Não tardaria muito para os alemães tentarem pegá-la de volta, na Segunda Guerra Mundial.

GLOSSÁRIO
GAU: espécie de condado, província ou região administrativa do III Reich.

GAULEITER: administrador ou prefeito dos Gau.

SCHUTZSTAFFEL (SS): organização militar do Partido Nazista.

Jean-Jacques Mourreau é jornalista e escritor. De origem alsaciana, seu pai foi um dos convocados à força, ferido e capturado pelas tropas soviéticas na Prússia Oriental

Revista Historia Viva

4 comentários:

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

Nada melhor que um pesquisador descendente pra nos relatar assim, pela visão dos franceses obrigados a servirem a Alemanha/Nazistas, como foi toda essa historia cruel e que parecia infindável.

Glauco Silva disse...

Cara, seu Blog tá demais, um perfeito meio de pesquisa aos estudantes.Parabéns!
Ah, comentei lá no post do selo, obrigado mais uma vez.
abraço

Unknown disse...

A guerra por si só já é a maior crueldade da humanidade. A visão histórica de soldados que foram à serviço, e serem torturados e repatriados, é pior que a própria guerra. Voltarão os nazistas?

Um grande abraço

Mirze

P.S. Há um presente para esse blog no http://www.pazebem.blogspot.com
Passe lá!

Glauco Silva disse...

Olá,tem um selo pra vc aqui:


http://glaukitos.blogspot.com/2009/02/selo-babao.html


abraço