quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

As três vidas de Maomé

Numa miniatura turca do Sya-Al-Nabi (Vida do Profeta), Maomé vive sua ascensão mística, uma viagem noturna aos limites da criação divina. Como guia: o arcanjo Gabriel. Século XVI.

Místico, visionário e guerreiro, Maomé unificou a península arábica em nome do Islã, que, segundo ele, deveria ser difundido aos confins do mundo.

Maomé nasceu órfão no dia 29 de agosto de 570: seu pai morrera pouco antes de seu nascimento. Apesar disso, Maomé desfrutou uma infância alegre no ambiente dos beduínos, sob os cuidados de uma ama-de-leite chamada Halima (literalmente "a doce"), beduína do planalto de Hedjaz. Uma tradição hagiográfica conta que, ainda jovem, enquanto ele guardava os carneiros da família, ocorrera um milagre. Duas aparições luminosas, vestidas inteiramente de branco, aproximaram-se de Maomé e retiraram de seu peito um coágulo de sangue negro que foi atirado para longe.

Narrada pelo Corão, essa história tornou-se uma parábola da purificação divina a que foi submetido o profeta Maomé. Em 576, aos seis anos, acompanhou a mãe, Amina, do árabe "a [mulher] fiel", para Yathrib, atual Medina, onde ela sucumbiu a uma doença. Órfão de pai e mãe aos sete anos, foi acolhido calorosamente por Abd al-Muttalib, seu avô paterno, homem rico e influente, que o amava como a um filho. Chefe do poderoso clã árabe dos coraixitas, ele administrava o templo sagrado de Caaba, em Meca, construído no tempo de Abraão. Assim, Abd al-Muttalib era uma das personalidades mais poderosas da cidade. Idoso, ele morreu pouco depois de acolher o neto, aos 95 anos. O jovem ficava novamente sem proteção. Seu tio paterno, Abu Talib, ofereceu-lhe então a sua casa.

Durante uma caravana à Síria, Maomé viveu uma insólita experiência em Bosra: o encontro com o monge Bahira, que reconheceu nele o futuro profeta do Islã. Os dias e as semanas se passavam. Impressionada com a personalidade de Maomé, uma rica herdeira da tribo Coraixita, Kadidja, confiou-lhe seus negócios. Maomé desempenhou bem a tarefa, conduzindo com segurança os camelos e os homens de Kadidja para Meca. A probidade é uma das principais qualidades do futuro profeta, que já era chamado de al-Amin, "homem honesto". Kadidja, já com 40 anos, propôs casamento a Maomé, cerca de 15 anos mais jovem. Juntos eles tiveram sete filhos, mas só as meninas sobreviveram, uma das quais Fátima, futura esposa de Ali Ibn Abu Talib, que mais tarde seria empossado califa. O matrimônio celebrava a união de duas poderosas famílias de Meca e era o primeiro passo para uma profunda transformação no mundo oriental.


Maomé tem o hábito de fazer retiros espirituais (khalwa) nos arredores. Ele aprecia, em particular, praticá-los numa gruta chamada Hira, situada em um pequeno monte da região. Em 611, durante um desses retiros, o arcanjo Gabriel se revela a ele. O arcanjo solicita que Maomé leia os sinais árabes bordados em um longo pergaminho de seda. "Mas eu não sei ler!", responde, envergonhado. "Leia", insiste o arcanjo. "Mas não aprendi a ler", objeta mais uma vez. Gabriel então lê e pede para Maomé repetir: "Leia em nome de Teu Senhor que tudo criou, que criou o homem a partir de um coágulo de sangue". O primeiro versículo da revelação do Corão é assim declamado. Aterrorizado pela aparição, o profeta pensa que vai morrer. Gabriel desapareceu, após preveni-lo de que voltariam a se encontrar muitas vezes. Maomé desce então a colina rumo a sua casa em Meca. Sua esposa Kadidja fica preocupada com o seu comportamento e aspecto físico: "Cubra-me, cubra-me", pede ele.

Refeito do choque, Maomé narra a experiência que acabara de viver na montanha Nour. A tradição diz que a prece e o credo da unidade divina (chahada) foram os primeiros ensinamentos revelados ao profeta. Contando o segredo a Kadidja, fez dela a primeira muçulmana da história. Depois revelou o fato a Ali, filho de Abu Talib, então com dez anos, a Zaid, escravo liberto que se tornou seu filho adotivo, e a Abu Bakr, futuro primeiro califa (632-634). Várias personalidades de Meca e especialmente os seus parentes adotam em relação a ele uma atitude benevolente. Em pouco tempo, as "revelações" feitas a Maomé são conhecidas por todos em Meca. "O homem honesto" é um feiticeiro? Deve ter enlouquecido. Querer substituir o panteão sagrado pela veneração a um deus único, não seria um sinal de delírio? Quais são os milagres de Alá que ele pode invocar para impor essa religião? Maomé não curou leprosos nem paralíticos.


O Corão lembra porém que os milagres dos profetas que precederam Maomé foram ridicularizados pelo povo: "Nada teria impedido de te enviar [a Maomé] milagres, se as pessoas de outras épocas não já os tivessem considerado como mentiras". Nessa época, Meca é idólatra e seus habitantes veneram várias divindades pagãs, como Al-\\'Ozza, Al-Lât e Manât. Maomé vive em um meio social refratário ao monoteísmo. Os patrícios e os membros da oligarquia de Meca inquietam-se com a influência que Maomé passa a exercer sobre a comunidade. Os elementos mais ferozes da elite tentam obter o apoio de Abu Talib, chefe do clã dos Hâchim. Eles vão ainda mais longe e concebem um plano para prender o profeta sacrílego, exilá-lo e até mesmo matá-lo. Abu Talib opõe-lhes uma firme resistência e decide colocar-se ao lado de Maomé, o que representa uma vitória inesperada.

A conversão de Hamza, um de seus tios, será também determinante. Hamza é um valoroso guerreiro, além de reputado caçador de antílopes e leões. Um dia, Maomé está diante do templo de Caaba, quando um idólatra chamado Abu Djahl, acompanhado por amigos, aproveita-se da vantagem numérica para desafiá-lo. Um tumulto opõe então os partidários dos dois líderes. Rapidamente informado, Hamza corre para o recinto sagrado e intervém com força e autoridade. Abu Djahl é desacreditado publicamente, o que reforça a posição de Maomé na hierarquia da cidade. Várias outras conversões serão de importância primordial, como a de Bilal, escravo abissínio comprado e libertado por Abu Bakr no início do islã. Ele será o primeiro muezim do islamismo. Omar ibn al-Khattab, outro guerreiro, também se converte, ele será o segundo califa da história.

Mas para o primeiro círculo de muçulmanos, o céu de Meca torna-se sombrio. Há vários meses agravam-se as hostilidades contra o profeta. As famílias reinantes ficam cada vez mais inquietas, temendo por suas posições e indagando quais seriam as intenções do profeta. O confronto é inevitável. Os primeiros combates ocorrem no ano 613. Constatando sua impotência diante do maior número de politeístas, em 615 Maomé encoraja parte de seus seguidores a emigrar para a Abissínia, onde encontraram refúgio com o soberano al-Achâm. Maomé propõe que aguardem o momento mais propício para o retorno a Meca. Esse é o primeiro encontro atestado dos muçulmanos (do árabe, "submissos a Deus") com a Igreja cristã, se excetuarmos o contato anterior com os cristãos monofisistas de Hedjaz. Em 616, os Bani Hachim, os familiares do profeta, embora pertencentes ao clã dos coraixitas, são postos em quarentena e se refugiam em um vale isolado. Eles só retornarão a Meca depois de muito peregrinar. Mas são proibidos de ler o Corão em público e, em particular, diante do templo sagrado de Caaba. São proibidos também de reunir-se em grupos.

As revelações prosseguem e o profeta compila o Corão, "o texto [que lhe é] revelado", aos poucos, de forma descontínua. O profeta desespera-se com os intervalos entre as diferentes revelações e, além disso, a pressão dos habitantes de Meca torna-se cada vez mais ameaçadora. Sua vida está em perigo e ele decide exilar-se. Acompanhado por Abu Bakr, pai de Aïcha, sua futura mulher, o profeta abandona Meca à noite, com os perseguidores em seu encalço. Os soldados enviados pelo clã inimigo para a captura dos dois homens perdem a pista. Durante três dias e três noites, Maomé e Abu Bakr ficam escondidos numa gruta. Os fugitivos tomam o caminho do oásis de Yathrib, a cerca de 350 km de Meca.

Em 28 de junho de 622, Maomé e seus companheiros chegam a Qubba, onde residem durante algum tempo, acolhidos pelo dignitário local. Com exceção das tribos judaicas e cristãs, a maior parte dos habitantes de Yathrib converte-se ao islã e espera a chegada do profeta. É o início do calendário muçulmano ou hégira (tradução da palavra árabe hijra, exílio, fuga, emigração, mas que também significa ruptura). A chegada em Yathrib é triunfal. Todas as famílias poderosas do local disputam o privilégio de receber o santo homem em suas casas. Para não ofender nenhuma, Maomé decide colocar a pedra fundamental de sua casa no local em que seu camelo faz uma parada: é a primeira mesquita. Yathrib torna-se Medina, literalmente "a cidade do profeta".

Seus habitantes são os Ansâr, os "auxiliares", mais numerosos do que os Mouhadjiroun, os emigrantes - nome dos primeiros companheiros, exilados de Meca como ele. Esses dois grupos estão na origem do cisma que dividirá a comunidade muçulmana após a morte do profeta. Medina é um laboratório para a nova religião, o Islã. É em Medina que se instaura a prece de sexta-feira, assim como todo o calendário muçulmano. O apelo à oração (qibla) é lançado pela primeira vez por Bilal. Em Medina determina-se que o fiel deve orar voltado para Meca e não mais para Jerusalém. O dogma muçulmano, tal como é conhecido por todos os praticantes, é instituído também em Medina. No plano político, toma forma de comunidade muçulmana (oumma), com sua legislação e sua assembléia, a única instância autorizada a declarar guerra ou assinar tratados.

Medina é enfim o emblema do novo poder: mais de 28 batalhas contra os infiéis de Meca e contra os politeístas são decididas naquela cidade, entre as quais a de Badr (624), a de Ohod (625) e a de Fossé (627). Essas três batalhas exigiram imensos sacrifícios da jovem comunidade muçulmana. As tropas opositoras, formadas essencialmente por mercenários, são comandadas por Abu Sufiae, homem forte de Meca. O desempenho do inimigo é excelente, sobretudo em Ohod, onde obtém uma clara vantagem sobre o exército de Maomé, que quase perde a vida. Após esse confronto, as tropas adversárias não temem mais enfrentar as do profeta. Entretanto, Maomé consegue uma vitória decisiva dois anos mais tarde, em março de 627, durante a batalha de Khandaq, em que os coraixitas são derrotados.


Na biografia de Maomé escrita no século IX, o cronista Tabari dedica um terço da obra às façanhas guerreiras do profeta, o que evidencia a importância da guerra durante o período inicial do islã. Dez anos de grandes batalhas asseguram a Maomé um domínio quase total sobre a Arábia, com exceção de Meca. O profeta passa a enviar cartas aos soberanos de todo o mundo, nas quais expõe sua doutrina. Ele ordena que todos se convertam à sua religião. O islã é uma religião universal - "Nós o enviamos a todos os homens sem exceção", diz o Corão -, sendo inconcebível restringi-lo à etnia árabe de Hedjaz. É preciso, sim disseminá-lo aos confins do mundo, para a Abissínia, o Iêmen, o Egito, a Pérsia, para Bizâncio e até mesmo Roma!

No oitavo ano da hégira (630), Maomé decide eliminar os politeístas de Meca. Ele reúne um exército de 10 mil homens, todos prontos a se sacrificar em nome de Alá, e dirige-se para a cidade infiel. Mas o patriarca de Meca, Abu Sufian, apresenta-se e se converte diante de Maomé, que entra triunfante na cidade de onde fora expulso. A emoção é intensa. Na manhã seguinte, todos os habitantes de Meca são convocados a jurar lealdade ao novo senhor da cidade. Os que aceitam o seu reinado tornam-se muçulmanos, os que recusam são expulsos do território sagrado. Os escravos são libertados. Várias outras batalhas ainda ocorrerão, como em Honaïne, em 28 de janeiro de 630, ou em Tabuk, em agosto de 630, mas a atmosfera é agora favorável. A nova religião, consagrada a partir de então como a única da península arábica, instaura-se em detrimento do antigo panteão composto por seus 360 ídolos.

Pouco tempo depois, sentindo que sua pregação chegava ao fim, Maomé decide fazer a uma última peregrinação a Meca, designada desde então com o nome de peregrinação do adeus. Ela ocorre em março de 632: "Hoje concluí Vossa religião e realizei minha graça em relação a Vós. Recebi para Vós o islã como religião." Ao retornar para Medina, o profeta de 63 anos adoece e morre em junho de 632, no décimo ano da hégira. Ele é enterrado em Medina, local onde viveu durante o exílio. A nomeação de Abu Bakr, seu fiel companheiro, como califa (sucessor, em árabe) marca o fim do "islã do profeta" e o início do "islã histórico" dos quatro grandes califas.

Malek Chebel é antropólogo, psicanalista, especialista no mundo árabe e no islã; publicou Histoire de la circoncision des origines à nos jours (História da circuncisão das origens à atualidade, Balland. Coll. Le Nadir).

Revista Historia Viva

6 comentários:

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

Acho muito interessante a história de Maomé. Sigo o Cristianismo; mas acho maravilhosa as histórias de como surgiram outras regiliões e outras crenças.

Em-conexão disse...

Olá tudo bem. Independente de qualquer ponto de vista religioso, o Maomé, enquanto sujeito histórico e, portanto, construtor da história, nos revela uma biografia, um projeto de vida, um modelo de planejamento de liderança. Homem visionário. Precisamos buscar a coragem, para sermos tão ousados quanto Maomé. Nessa semana, fiz uma poesia que cita um pouco desse ambiente de ousadia. Sua escrita é uma silhueta das histórias de coragem. Parabéns.

Visite minha Casa, quando puder.

O endereço é:

(http://casadojulianosanches.blogspot.com/).

Um grande abraço.

Alvaro Oliveira disse...

Independente de religião ou crença,
gosto de conhecer um pouco sobre
diversas religiões em especial
sobre Maomé, figura histórica,
que arrasta multidões.

Um abraço

Alvaro Oliveira

- Moisés Correia - disse...

O mundo adormece na cama do céu
Enquanto permaneço acordado no teu roseiral…
Vigilante no teu galante corpo, rosa sem véu
Batem janelas inquietas, pétalas em temporal

Neste momento,
Desejo
Um bom fim-de-semana
Materializado em harmonia
Com muita alegria…
Um excelente CARNAVAL
Com muito divertimento
Desmascarando amor
Com paz,
Cheio de muita folia…

O eterno abraço…

-MANZAS-

Anônimo disse...

Kkkk estou rindo é do cavalo

Anônimo disse...

Religiões e suas ilusões