Arrancadas de suas famílias e exibidas como troféus de guerra, crianças sertanejas sobreviventes de Canudos foram vendidas e usadas como mão-de-obra doméstica
Vanessa Sattamini Varão Monteiro
O cruel extermínio de prisioneiros, a epidemia de varíola que se alastrou pelo sertão, a fome e a sede dos sobreviventes não foram os únicos legados da Guerra de Canudos. O conflito ocorrido no interior baiano, entre novembro de 1896 e outubro de 1897, opôs os exércitos da República e a comunidade de sertanejos liderada por Antônio Conselheiro e deixou, como herança trágica, um grande contingente de crianças e adolescentes órfãos.
A Guerra de Canudos durou quase um ano e contou com a participação de cerca de dez mil soldados, vindos de dezessete estados brasileiros, que deram combate aos homens de Antônio Conselheiro em quatro expedições militares. O número estimado de vítimas é de vinte e cinco mil pessoas, entre elas mulheres e crianças. Quase todos os conselheiristas foram mortos depois de presos, boa parte na
prática da “gravata vermelha”, como era conhecida a degola.
A vitória dos militares só se deu ao cabo da quarta expedição: em 5 de outubro de 1897 terminou a resistência dos últimos sertanejos. Canudos ficou completamente destruída. Cinco mil e duzentas casas foram queimadas, enquanto a elite política, acadêmica e militar se congratulava pelo desaparecimento do arraial. O presidente da República, Prudente de Moraes, havia prometido que em Canudos não ficaria “pedra sobre pedra”. Acabada a guerra, era necessário, portanto, apagar os vestígios do que era visto pela ótica do poder como uma insurreição sertaneja. O fim deveria ser exemplar, para que outros movimentos que desafiassem a ordem republicana não se repetissem. Para as autoridades envolvidas era importante “que ali se plantasse a solidão e a morte”.
Na ocasião da terceira expedição militar, que se configurou como um desastre e culminou com a morte do coronel Moreira César, centenas de soldados feridos e mutilados começaram a desembarcar na estação da Estrada de Ferro da Calçada, em Salvador. A cidade não contava, no entanto, com infra-estrutura suficiente para atender aos combatentes. É nesse contexto que o corretor alemão Franz Wagner, radicado em Salvador, convocou a sociedade baiana para prestar auxílio aos soldados feridos no combate ainda em curso. Nascia, assim, o Comitê Patriótico da Bahia, que atuou no auxílio às vítimas da Guerra de Canudos entre 1897 e 1901.
A mobilização pública empreendida pelo Comitê alcançou larga escala. A população local, instituições e o governo contribuíam com doações em dinheiro, organizavam festas, quermesses e recitais para arrecadar fundos, socorriam diretamente os feridos, amparavam viúvas e encaminhavam os filhos dos soldados para colégios e orfanatos. Pouco a pouco, o Comitê se transformaria também na principal instituição de amparo aos sertanejos, especialmente às crianças sobreviventes de Canudos. Essa mudança de propósitos foi resultado do contato que alguns membros da organização tiveram com a realidade da guerra. Em setembro de 1897, o jornalista Lélis Piedade, secretário do Comitê, viajara até o cenário do conflito a fim de instalar, no local, uma enfermaria que pudesse prestar os primeiros socorros aos feridos. Na visita, deparou-se com a paisagem desolada do sertão: casas abandonadas e saqueadas. Conversou com militares, padres, sertanejos, jagunços conselheiristas feitos prisioneiros, mulheres e crianças. E o Comitê diversificou sua linha de ação.
Lélis não abandonou suas convicções republicanas. Continuou apoiando o exército e, no seu entendimento, Canudos não passava de uma reunião de fanáticos. A experiência, no entanto, fez com que passasse a ver com piedade as mulheres e crianças canudenses. Ficou chocado com a miséria, a fome, os feridos, os corpos que apodreciam pelas estradas com urubus à espreita, a epidemia de varíola que vitimava indiscriminadamente sertanejos e militares, a falta de água potável, as infestações de pulgas e as atrocidades que também foram cometidas pelas tropas federais. Lélis parece ter enxergado naquelas mulheres de Canudos e, sobretudo, nas crianças, algo mais do que bárbaros que deviam ser exterminados.
O secretário do Comitê presenciou também a prática de venda de crianças sertanejas, efetivamente órfãs ou separadas de suas famílias. Segundo seu relato, uma mulher, meio ébria, trazendo duas crianças com sinais de violência, tentou vender-lhe um menino. A distância entre o litoral civilizado e os rudes homens sertanejos, registrada e imortalizada por Euclides da Cunha em Os Sertões, começava a não fazer sentido para os representantes do Comitê, que associavam o que viam “a uma nova escravidão que se vai estabelecendo com estas desgraçadas vítimas de Canudos.”
Independentemente das críticas que recebeu, em função da sua mudança de postura em relação a Canudos e sua população, o Comitê organizou uma comissão para localizar e recolher os menores e as mulheres da região. O trabalho teve início com os oficiais do exército, aos quais o Comitê solicitou que devolvessem as crianças que se encontravam em seu poder para que pudessem ser encaminhadas aos orfanatos ou restituídas às suas famílias – já que várias delas haviam sido arrancadas brutalmente da companhia de suas mães, feitas prisioneiras. Outras foram dadas pelos soldados, no caminho, e muitas ficaram na companhia desses combatentes à guisa de “troféu de guerra”, ou para servirem, nas palavras de Lélis Piedade, como “uma lembrança viva de Canudos”.
Membros da Comissão Especial, nomeada para recolher crianças sertanejas, narraram os encontros que tiveram com as prisioneiras de guerra. Mulheres desesperadas se ajoelhavam suplicando a devolução de seus filhos levados pelos soldados. Em alguns casos, o Comitê conseguiu que as crianças fossem devolvidas. Em muitos outros, elas já haviam sido repassadas. No entanto, diversas dessas crianças, apesar de localizadas, não foram devolvidas nem adotadas legalmente, pois já haviam sido convertidas em mão-de-obra para serviços domésticos. Outras foram simplesmente ocultadas ou enviadas para outros pontos do estado por seus patrões e donos, que tinham medo de perdê-las.
São vários os relatos sobre pessoas que se recusaram a entregar as crianças que serviam como criadas. Cidadãos de boa situação financeira que receberam os menores das mãos de oficiais do exército negavam ao Comitê qualquer informação sobre eles, alegando que lhes foram entregues por um oficial para servir em suas casas. Além disso, não achavam justo que o Comitê protegesse filhos de jagunços.
Frente a essas dificuldades, mesmo após um trabalho árduo de busca e negociação, o resultado do trabalho da Comissão contabilizou apenas 13 crianças – entre meninos e meninas devolvidas às suas mães ou pais –, outras 16 foram entregues a parentes e 22 deixadas com pessoas idôneas civis e militares, que se responsabilizaram por elas. Outras 50 foram levadas pelo próprio Comitê a Salvador e encaminhadas aos orfanatos e colégios. Para os integrantes da Comissão Especial, o balanço final alcançado entretanto fora positivo.
As crianças que o Comitê conseguiu encaminhar para orfanatos e colégios aprenderam na escola o valor do trabalho. A educação estava pautada pelo aprendizado de uma profissão, aliado à instrução básica, pois os meninos pobres deviam aprender um ofício, além das matérias convencionais. Havia nos internatos uma divisão entre alunos aprendizes internos e alunos externos. Para os primeiros, estava destinada a instrução de ênfase profissional, enquanto para os segundos a escola reservava apenas a educação letrada. A posição social condicionava, desde a escola, o futuro e reproduzia, na prática escolar, as hierarquias da sociedade. Já as crianças que foram entregues aleatoriamente pelos soldados aprenderam o lugar que a sociedade lhes destinava nas casas de família, onde exerciam funções de empregados domésticos, na maioria das vezes sem remuneração alguma.
A filantropia dos primeiros tempos republicanos pode ter representado para essas crianças, que viveram a violência da guerra no sertão, um outro tipo de violência. As crianças de Canudos deviam trabalhar e aprender a amar a República através de valores que lhes eram ensinados na escola ou incutidos pela vida cotidiana. Deviam, sobretudo, aprender a esquecer a “aldeia sagrada” de Canudos. Não havia lugar para a diferença no projeto da primeira República brasileira.
Destituídas de suas famílias, de suas casas, retiradas do local onde nasceram, levadas para outras cidades, essas crianças foram privadas de seu próprio passado e, portanto, de suas identidades. A memória delas foi enquadrada, reconstituída segundo o que a memória oficial ditava sobre o que era preciso ser lembrado e o que deveria ser esquecido. A educação recebida ajudava a solidificar uma determinada interpretação da história – na perspectiva da época, o ensino deveria então civilizar aqueles que eram os filhos dos “rudes patrícios” que edificaram uma “Tróia de taipa”, na famosa expressão de Euclides da Cunha, e ousaram enfrentar os mandamentos de “ordem e progresso” inscritos na bandeira republicana. Civilizar, ordenar, conhecer o seu lugar na tão propalada construção do progresso representava a negação da diferença. Não bastava acabar fisicamente com a “aldeia sagrada”. Era preciso também apagar Canudos dos corações e das mentes das crianças, numa lógica preventiva que parecia querer evitar a repetição e o ressentimento.
No caso dos meninos de Canudos trazidos para Salvador, o projeto parece ter sido o de apagar qualquer vestígio de suas próprias memórias, da experiência vivida na aldeia do Conselheiro e, portanto, de suas identidades de origem. Esse jogo perverso de inversões tinha como objetivo civilizar os órfãos da guerra. Civilizar essas crianças que escaparam da morte pela degola, destino de tantas outras, foi, assim, algo muito próximo de um assassinato simbólico. Bárbaros, como assinalou Lévi-Strauss em 1945, são aqueles que acreditam na barbárie.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro é mestranda em História na PUC-Rio.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Canudos a Sudeste - Em primeiro plano, uma típica casa do arraial. Segundo o relato do correspondente da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, Favila Nunes, as construções eram de "pau-a-pique, cobertas com folhas de icó com barro por cima ou telha vã. (...) As portas são tão pequenas que é preciso abaixar-se para transpô-las; estendendo-se o braço para cima, toca quase a cumeeira; os caibros e ripas são seguros com cordas e cipós, as dobradiças das portas e microscópicas janelinhas são de sola, na sua quase totalidade não têm reboco nem caiação, interna ou externa". À esquerda, ao fundo, as ruínas da Igreja do Bom Jesus.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro
O cruel extermínio de prisioneiros, a epidemia de varíola que se alastrou pelo sertão, a fome e a sede dos sobreviventes não foram os únicos legados da Guerra de Canudos. O conflito ocorrido no interior baiano, entre novembro de 1896 e outubro de 1897, opôs os exércitos da República e a comunidade de sertanejos liderada por Antônio Conselheiro e deixou, como herança trágica, um grande contingente de crianças e adolescentes órfãos.
A Guerra de Canudos durou quase um ano e contou com a participação de cerca de dez mil soldados, vindos de dezessete estados brasileiros, que deram combate aos homens de Antônio Conselheiro em quatro expedições militares. O número estimado de vítimas é de vinte e cinco mil pessoas, entre elas mulheres e crianças. Quase todos os conselheiristas foram mortos depois de presos, boa parte na
prática da “gravata vermelha”, como era conhecida a degola.
A vitória dos militares só se deu ao cabo da quarta expedição: em 5 de outubro de 1897 terminou a resistência dos últimos sertanejos. Canudos ficou completamente destruída. Cinco mil e duzentas casas foram queimadas, enquanto a elite política, acadêmica e militar se congratulava pelo desaparecimento do arraial. O presidente da República, Prudente de Moraes, havia prometido que em Canudos não ficaria “pedra sobre pedra”. Acabada a guerra, era necessário, portanto, apagar os vestígios do que era visto pela ótica do poder como uma insurreição sertaneja. O fim deveria ser exemplar, para que outros movimentos que desafiassem a ordem republicana não se repetissem. Para as autoridades envolvidas era importante “que ali se plantasse a solidão e a morte”.
Na ocasião da terceira expedição militar, que se configurou como um desastre e culminou com a morte do coronel Moreira César, centenas de soldados feridos e mutilados começaram a desembarcar na estação da Estrada de Ferro da Calçada, em Salvador. A cidade não contava, no entanto, com infra-estrutura suficiente para atender aos combatentes. É nesse contexto que o corretor alemão Franz Wagner, radicado em Salvador, convocou a sociedade baiana para prestar auxílio aos soldados feridos no combate ainda em curso. Nascia, assim, o Comitê Patriótico da Bahia, que atuou no auxílio às vítimas da Guerra de Canudos entre 1897 e 1901.
A mobilização pública empreendida pelo Comitê alcançou larga escala. A população local, instituições e o governo contribuíam com doações em dinheiro, organizavam festas, quermesses e recitais para arrecadar fundos, socorriam diretamente os feridos, amparavam viúvas e encaminhavam os filhos dos soldados para colégios e orfanatos. Pouco a pouco, o Comitê se transformaria também na principal instituição de amparo aos sertanejos, especialmente às crianças sobreviventes de Canudos. Essa mudança de propósitos foi resultado do contato que alguns membros da organização tiveram com a realidade da guerra. Em setembro de 1897, o jornalista Lélis Piedade, secretário do Comitê, viajara até o cenário do conflito a fim de instalar, no local, uma enfermaria que pudesse prestar os primeiros socorros aos feridos. Na visita, deparou-se com a paisagem desolada do sertão: casas abandonadas e saqueadas. Conversou com militares, padres, sertanejos, jagunços conselheiristas feitos prisioneiros, mulheres e crianças. E o Comitê diversificou sua linha de ação.
Lélis não abandonou suas convicções republicanas. Continuou apoiando o exército e, no seu entendimento, Canudos não passava de uma reunião de fanáticos. A experiência, no entanto, fez com que passasse a ver com piedade as mulheres e crianças canudenses. Ficou chocado com a miséria, a fome, os feridos, os corpos que apodreciam pelas estradas com urubus à espreita, a epidemia de varíola que vitimava indiscriminadamente sertanejos e militares, a falta de água potável, as infestações de pulgas e as atrocidades que também foram cometidas pelas tropas federais. Lélis parece ter enxergado naquelas mulheres de Canudos e, sobretudo, nas crianças, algo mais do que bárbaros que deviam ser exterminados.
O secretário do Comitê presenciou também a prática de venda de crianças sertanejas, efetivamente órfãs ou separadas de suas famílias. Segundo seu relato, uma mulher, meio ébria, trazendo duas crianças com sinais de violência, tentou vender-lhe um menino. A distância entre o litoral civilizado e os rudes homens sertanejos, registrada e imortalizada por Euclides da Cunha em Os Sertões, começava a não fazer sentido para os representantes do Comitê, que associavam o que viam “a uma nova escravidão que se vai estabelecendo com estas desgraçadas vítimas de Canudos.”
Independentemente das críticas que recebeu, em função da sua mudança de postura em relação a Canudos e sua população, o Comitê organizou uma comissão para localizar e recolher os menores e as mulheres da região. O trabalho teve início com os oficiais do exército, aos quais o Comitê solicitou que devolvessem as crianças que se encontravam em seu poder para que pudessem ser encaminhadas aos orfanatos ou restituídas às suas famílias – já que várias delas haviam sido arrancadas brutalmente da companhia de suas mães, feitas prisioneiras. Outras foram dadas pelos soldados, no caminho, e muitas ficaram na companhia desses combatentes à guisa de “troféu de guerra”, ou para servirem, nas palavras de Lélis Piedade, como “uma lembrança viva de Canudos”.
Membros da Comissão Especial, nomeada para recolher crianças sertanejas, narraram os encontros que tiveram com as prisioneiras de guerra. Mulheres desesperadas se ajoelhavam suplicando a devolução de seus filhos levados pelos soldados. Em alguns casos, o Comitê conseguiu que as crianças fossem devolvidas. Em muitos outros, elas já haviam sido repassadas. No entanto, diversas dessas crianças, apesar de localizadas, não foram devolvidas nem adotadas legalmente, pois já haviam sido convertidas em mão-de-obra para serviços domésticos. Outras foram simplesmente ocultadas ou enviadas para outros pontos do estado por seus patrões e donos, que tinham medo de perdê-las.
São vários os relatos sobre pessoas que se recusaram a entregar as crianças que serviam como criadas. Cidadãos de boa situação financeira que receberam os menores das mãos de oficiais do exército negavam ao Comitê qualquer informação sobre eles, alegando que lhes foram entregues por um oficial para servir em suas casas. Além disso, não achavam justo que o Comitê protegesse filhos de jagunços.
Frente a essas dificuldades, mesmo após um trabalho árduo de busca e negociação, o resultado do trabalho da Comissão contabilizou apenas 13 crianças – entre meninos e meninas devolvidas às suas mães ou pais –, outras 16 foram entregues a parentes e 22 deixadas com pessoas idôneas civis e militares, que se responsabilizaram por elas. Outras 50 foram levadas pelo próprio Comitê a Salvador e encaminhadas aos orfanatos e colégios. Para os integrantes da Comissão Especial, o balanço final alcançado entretanto fora positivo.
As crianças que o Comitê conseguiu encaminhar para orfanatos e colégios aprenderam na escola o valor do trabalho. A educação estava pautada pelo aprendizado de uma profissão, aliado à instrução básica, pois os meninos pobres deviam aprender um ofício, além das matérias convencionais. Havia nos internatos uma divisão entre alunos aprendizes internos e alunos externos. Para os primeiros, estava destinada a instrução de ênfase profissional, enquanto para os segundos a escola reservava apenas a educação letrada. A posição social condicionava, desde a escola, o futuro e reproduzia, na prática escolar, as hierarquias da sociedade. Já as crianças que foram entregues aleatoriamente pelos soldados aprenderam o lugar que a sociedade lhes destinava nas casas de família, onde exerciam funções de empregados domésticos, na maioria das vezes sem remuneração alguma.
A filantropia dos primeiros tempos republicanos pode ter representado para essas crianças, que viveram a violência da guerra no sertão, um outro tipo de violência. As crianças de Canudos deviam trabalhar e aprender a amar a República através de valores que lhes eram ensinados na escola ou incutidos pela vida cotidiana. Deviam, sobretudo, aprender a esquecer a “aldeia sagrada” de Canudos. Não havia lugar para a diferença no projeto da primeira República brasileira.
Destituídas de suas famílias, de suas casas, retiradas do local onde nasceram, levadas para outras cidades, essas crianças foram privadas de seu próprio passado e, portanto, de suas identidades. A memória delas foi enquadrada, reconstituída segundo o que a memória oficial ditava sobre o que era preciso ser lembrado e o que deveria ser esquecido. A educação recebida ajudava a solidificar uma determinada interpretação da história – na perspectiva da época, o ensino deveria então civilizar aqueles que eram os filhos dos “rudes patrícios” que edificaram uma “Tróia de taipa”, na famosa expressão de Euclides da Cunha, e ousaram enfrentar os mandamentos de “ordem e progresso” inscritos na bandeira republicana. Civilizar, ordenar, conhecer o seu lugar na tão propalada construção do progresso representava a negação da diferença. Não bastava acabar fisicamente com a “aldeia sagrada”. Era preciso também apagar Canudos dos corações e das mentes das crianças, numa lógica preventiva que parecia querer evitar a repetição e o ressentimento.
No caso dos meninos de Canudos trazidos para Salvador, o projeto parece ter sido o de apagar qualquer vestígio de suas próprias memórias, da experiência vivida na aldeia do Conselheiro e, portanto, de suas identidades de origem. Esse jogo perverso de inversões tinha como objetivo civilizar os órfãos da guerra. Civilizar essas crianças que escaparam da morte pela degola, destino de tantas outras, foi, assim, algo muito próximo de um assassinato simbólico. Bárbaros, como assinalou Lévi-Strauss em 1945, são aqueles que acreditam na barbárie.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro é mestranda em História na PUC-Rio.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Canudos a Sudeste - Em primeiro plano, uma típica casa do arraial. Segundo o relato do correspondente da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, Favila Nunes, as construções eram de "pau-a-pique, cobertas com folhas de icó com barro por cima ou telha vã. (...) As portas são tão pequenas que é preciso abaixar-se para transpô-las; estendendo-se o braço para cima, toca quase a cumeeira; os caibros e ripas são seguros com cordas e cipós, as dobradiças das portas e microscópicas janelinhas são de sola, na sua quase totalidade não têm reboco nem caiação, interna ou externa". À esquerda, ao fundo, as ruínas da Igreja do Bom Jesus.
2 comentários:
Muito interessante e um alerta a todos nós. brasileiros, queátravés da midia, só temos conhecimento das crianças abandonadas na India, das guerras de países que estão correlacionados com o comercio de armas e o domínio do petróleo.
Dificilmente encontramos relatos das guerras que não repercutiu e que deixaram os filhos e netos da miséria de toda guerra.
É preciso que o povo brasileiro se volte mais para a nossa própria história.
Parabéns! Para mim, foi uma leitura que despertou a necessidade de um novo foco do nosso olhar patriota.
Um forte abraço
Mirse
Parabéns sobre o texto sobre a Guerra dos Canudos. Precisamos mesmo resgatar a nossa história e antepassados. Venho sempre aqui porque sei que vou encontrar informações de qualidade!
Obrigada e volte sempre! Você é muito bem-vindo!
Beijos.
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