quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Lundu à cigana?


A influência dos ciganos na música e nas danças populares brasileiras é maior do imaginávamos até agora
Samuel Araújo e Antonio Guerreiro de Faria

Os calon constituem uma das quatro principais populações designadas genericamente como “ciganas” em solo europeu (além deles, há os rom, os sinti e os manush), e chegaram a Portugal em levas sucessivas pouco antes de 1450. Perseguidos, foram proibidos de “ter traje ou vestimenta” diferenciados, morar em número superior a dois casais na mesma rua, viver como nômades, exercer ofício de ambulante ou comerciante de cavalos, ler a sorte e falar sua língua. Em muitos casos, a deportação para as colônias substituía a pena de trabalho forçado nas minas. Uma dessas decisões beneficiou João de Torres, considerado o primeiro calon a chegar ao Brasil, em 1574.

O primeiro assentamento de que se tem notícia no Rio de Janeiro ficava no alagadiço logo conhecido como Campo dos Ciganos – onde mais tarde seria a Praça Tiradentes. A comunidade se estendeu, no século XIX, até as ruas de Sant‘Ana e dos Ciganos, esta posteriormente rebatizada de Rua da Constituição. Como seus membros passaram a trabalhar como oficiais de justiça e a se dedicar ao comércio de escravos, a comunidade se transferiu para o Valongo – para ficar próxima ao mercado – e a Cidade Nova. Com a abolição da escravatura, eles se instalaram no local do atual bairro do Catumbi, onde ainda residem remanescentes da comunidade original.

Em 1995, registramos uma festa denominada pelos calon de bródio. Realizada no bairro do Catumbi, na residência de Altamiro Sampaio, oficial de justiça aposentado, foi organizada coletivamente em homenagem a Jaime Duarte, bacharel em Direito e autorizado de um cartório de notas da cidade.

O bródio se inicia com o discurso do homenageado louvando o dono da casa e o violeiro Oscarino, delegado de polícia aposentado, que, “com a magia de sua voz e de seu toque, nos conduz a uma viagem serena ao passado, nos trazendo sempre para o presente”. A casa está enfeitada com palmas e flores brancas, com pequenos cortinados de renda afixados aos umbrais. Uma grande mesa com doces e refrigerantes se encontra posta na sala principal, onde ficam as cantoras e o tocador. Os homens se retiram para uma área separada, onde conversam e tomam cerveja.


Um ancião, ainda segundo Mello Moraes, ordena ao tocador que “bata no pinho”. Nesse momento tem início a Serra-baia, dança de par em que o cavalheiro canta um verso e, ao terminar, tira a dama para dançar e “rodam duas vezes, param de fronte um ao outro, afastam-se, aproximam-se, recuam sapateando, saltando e dançando”. A dama continua a dançar enquanto o cavalheiro se senta, e a dança continua, com pares que se revezam. Segue-se a dança denominada Anu, com dois pares, em que os figurantes “quebram-se duas vezes, param, contemplam-se ao som das castanholas, as violas acompanham as trovas entoadas pelos cantadores, as moças dançam juntas e depois retornam a seus pares”.

Tanto a descrição do século XIX quanto nossa documentação das práticas culturais calon provocaram questionamentos acerca da formação da cultura popular no Brasil. Ao examinarmos dois desenhos bem conhecidos, publicados por Rugendas em meados do século XIX, ambos intitulados “Danse landu” no original, notamos em um desses trabalhos um casal de aparente ascendência européia dançando ao som de um instrumento de cordas dedilhadas, e, no outro, um casal de negros dançando de modo não muito diferente, ao som de tambor e de um instrumento de teclas, provavelmente originário da África meridional. Segundo Mário de Andrade, o lundu tinha se tornado, no século XIX, o primeiro gênero de música e dança “nacional”, isto é, produto da fusão de várias vertentes culturais formadoras.

Considerando os mesmos desenhos, em 1970 o musicólogo Baptista Siqueira afirmou que “as lâminas de Rugendas mostram brancos e mulatos que dançam como ciganos ao som de instrumento dedilhado, com ruídos de castanholas, numa verdadeira confusão de traços culturais e etnológicos”. Afirmou ainda que a dança “tem todas as características daquelas usadas em nosso país pelos remanescentes ciganos”, e a associa ao fandango espanhol.

Algumas perguntas sobressaem dessas leituras. Seria a danse landu relacionada de algum modo à população cigana? Em caso positivo, seria a dança registrada em 1995 um traço surpreendente de sua estabilidade entre os descendentes daquela mesma população? Sendo assim, poderíamos supor a formação dos primeiros gêneros de música e dança no Brasil compreendendo movimentos culturais mais abrangentes do que as fórmulas binárias (africanos e europeus) ou ternárias (admitindo-se a contribuição indígena), ainda muito comuns em abordagens históricas da formação cultural brasileira? Este breve estudo, com dados registrados em séculos contíguos e sem a pretensão de ser conclusivo, sugere ao menos a existência de enigmas pouco explorados que se impõem à pesquisa histórica contemporânea sobre os caminhos da música e da dança no Brasil.

Samuel Araújo é doutor em Musicologia pela Universidade de Illinois (EUA) e professor da Escola de Música da UFRJ.

Antonio Guerreiro de Faria é compositor e mestre em Música Brasileira pela Unirio, onde é professor.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

3 comentários:

Luna disse...

os ciganos estão em todo o mundo e as suas raízes
também estão disseminadas, as musicas são de alegria e
contam historias de vida
bj

Anônimo disse...

Na Europa, a realidade que tão bem descreveu esse blog no segundo parágrafo, ainda acontece.
Qto ao texto, uma aula incrível.
Obrigada!

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

Ótimo artigo! Acredito que a musica e a dança são incrivelmente maravilhosas por ter um conjunto de cultura, sensibilidade, historia e vivencias.
A história de vida dos ciganos, variam muito de "região"... Na Europa é uma forma de vida, não tão comum à vida que levam no Brasil... mas possuem a mesma força, o mesmo gosto pela vida...e por manter sua cultura.