Morador da Alemanha Oriental fecha janelas de edifício em frente ao Muro de Berlim, em 8 de outubro de 1961
Em 12 de agosto de 1961, uma tempestade formou-se sobre o céu de Berlim. Era uma noite quente de verão e a chuva viria para refrescar. Naquele sábado, a cidade estava animada. Os homens circulavam de camisas abertas e as mulheres trajavam vestidos floridos. Era uma ótima oportunidade para os alemães esquecerem onde realmente viviam e sob quais ameaças. Um momento ideal para encontrar a família ou visitar os amigos.
Os moradores de Berlim podiam atravessar tranqüilamente a linha de demarcação que separava a parte ocidental da cidade – constituída pelas zonas de ocupação americana, britânica e francesa – da parte oriental, o lado soviético. Nos dois sentidos, aliás. Se o oeste era mais animado, com as luzes mais vivas e os melhores restaurantes, o leste tinha também sua graça, com seus pequenos bistrôs à beira do rio Spree e preços mais atraentes, sobretudo nos teatros.
A despeito das tensões entre ocidentais e soviéticos, materializada por alguns arames farpados facilmente transpostos ou mesmo um simples traço branco pintado no chão, o movimento era constante de um lado para o outro. Dezenas de milhares de berlinenses que viviam no leste trabalhavam no oeste e voltavam obedientemente para casa todas as noites. Entretanto, o governo sabia que muitos aproveitavam as facilidades de passagem para emigrar definitivamente para o oeste. E sábado era o dia predileto, já que sua ausência não seria notada antes da segunda-feira, quando estariam longe.
ARQUIVO NACIONAL, BERLIM
Início da construção do muro, em agosto de 1961
Mas, naquele sábado, os controles pareciam particularmente pouco vigilantes. Muitos habitantes daquela época ainda hoje dão seu testemunho: não contavam, naquela noite, viver um momento histórico e talvez até trágico. Acostumaram-se tanto a viver ao ritmo das crises internacionais que a divisão da cidade em dois lados parecia-lhes rotineira.
De tempos em tempos, claro, chegavam aos ouvidos dos berlinenses alguns rumores alarmantes. E em 4 de agosto de 1961 houve um recenseamento para classificar os trabalhadores “fronteiriços”. No entanto, àqueles que perguntavam se o governo oriental não tentaria isolar a cidade com um muro, Walter Ulbricht, primeiro-secretário do Partido Socialista Unificado da Alemanha, respondia que os operários da construção civil tinham mais o que fazer. Todos acreditaram nele.
Suas últimas declarações foram dadas semanas antes daquela fatídica noite. Até então, a cidade possuía 87 locais de passagem onde o controle era formal. Mas nas casernas e nos comissariados, blocos finos de cimento e arames farpados já se amontoavam. Na madrugada de 12 de agosto, os veículos de carga ou guindastes estavam a postos. Até meia-noite e meia, porém, tudo parecia ainda normal.
Cinco minutos depois, começava aquilo que os oficiais do leste alemão denominaram Operação Muralha da China. Em princípio, os derradeiros foliões já estavam em casa. Várias divisões da Volksarmee, o exército, espalharam-se à razão de um soldado a cada 2 metros, bem atrás da linha no lado oriental. Não era uma frente ofensiva, menos ainda uma invasão, mas uma barreira que, a partir de então, se tornaria praticamente intransponível. Trinta metros atrás da linha, blindados soviéticos e autometralhadoras tomavam também posição, vigiando os eventuais fugitivos.
AKG IMAGES/LATINSTOCK
O portão de Brandemburgo, símbolo da cidade, em 14 de agosto de 1961: barricadas foram erguidas até que a construção do Muro estivesse concluída
Os arames farpados, em geral duplicados por grades de ferro, serviam para barrar as passagens de água corrente, numerosas em Berlim. Em vários grandes cruzamentos, como na Potsdamerplatz, policiais e militares arrancaram os trilhos do trem que ligavam o leste ao oeste.
O metrô, cuja linha sinuosa da S-Bahn permaneceria até o fim propriedade do leste alemão, foi interrompido por volta de 1 hora da manhã nas estações da “fronteira”, mas, curiosamente, ainda era possível atravessá-la a pé, caso se dessem provas de morar “do outro lado”. No restante da noite, o esboço do futuro muro foi reforçado. Daquela forma se manteria por muito tempo: três anos depois, ainda não ocupava mais que 6 km.
Na manhã de domingo, Berlim acordava atordoada e dividida. Havia aqueles que simplesmente ignoravam o que acontecera e ouviram a notícia pelo rádio. Outros, inocentes, deixaram-se enganar, de um lado e do outro da linha: os berlinenses do oeste podiam voltar para casa, mas alguns do lado leste optaram por não fazer o mesmo, pressentindo que não poderiam ir ao ocidente tão cedo de novo. À medida que as horas passavam, uma imensa cólera popular crescia. Mas, no leste, os prédios oficiais estavam bem guardados: não iam se deixar surpreender uma segunda vez, como no levante operário de 1953. O oeste, por sua vez, queria evitar qualquer incidente grave, enquanto aguardava as ordens dos dirigentes das três forças ocidentais ocupantes do território.
Assim começava o tempo das evasões. Ainda não tinham o caráter acrobático e tão arriscado que assumiriam na seqüência durante os 28 anos da divisão. O mundo guardaria na memória, graças ao fotógrafo Peter Leibing, a imagem do jovem soldado da Volksarmee, Conrad Schumann, saltando por cima dos fios de arame farpado. Era a silhueta juvenil e simbólica de um dos primeiros berlinenses do leste que optou pelo ocidente. Mais de 5 mil berlinenses, por terra, por água, em veículos arranjados às pressas, e mesmo pelo ar, o seguiriam durante esse interminável quarto de século. E mais de 500 seriam mortos ou feridos antes de atingir o outro lado do muro.
A espinha na garganta do Ocidente
© AKG IMAGES/LATINSTOCK
Desde antes do fim da Segunda Guerra, o estatuto de Berlim era ambíguo: combinou-se – e ratificou-se na Conferência de Potsdam, em 1945 – que depois da derrota hitlerista, o Reich e sua capital seriam ocupados pelas potências vitoriosas, independentemente das posições conquistadas por seus respectivos exércitos. O bom senso, naturalmente, fazia com que os anglo-americanos e os franceses se instalassem no oeste, e os russos no leste. Berlim, porém, era muito descentrada em relação ao conjunto do território alemão, entendido sob suas fronteiras de 1937, anteriores às diversas anexações operadas por Hitler. Como o Exército Vermelho entrou ali primeiro, Churchill, Roosevelt e De Gaulle exigiram que Stálin lhes entregasse igualmente um setor de ocupação.
Em 1945, Berlim era, portanto, uma espécie de ilha quadripartite no interior da futura RDA (República Democrática Alemã), que seria fundada em 1949 como a RFA (República Federal Alemã, o lado ocidental). Entre 1948 e 1949, Moscou implementou o bloqueio da capital, para impedir os ocidentais de usar as linhas ferroviárias e as estradas. Depois, durante 12 anos, sucederam-se as escaramuças verbais, esperanças de conferência logo malogradas, propostas e contrapropostas a respeito do estatuto de Berlim.
Depois da morte de Stálin, Nikita Kruchev, por sua vez, comandou sem embaraços o futuro de Berlim, que declarou ser uma “espinha atravessada na garganta do Ocidente, sobre a qual posso marchar quando quiser”.
Os anos passaram sem resultados concretos. Em Moscou, esperava-se que Berlim ocidental tombasse como um fruto maduro. Mas todo o cuidado foi tomado para não atentar contra o direito das três potências ocidentais ocupantes. Em Berlim oriental, Ulbricht desesperava-se diante da ampliação do êxodo. Terminou por obter sinal verde do Kremlin e construir um muro, oficialmente destinado a proteger os berlinenses do leste contra os “traficantes de seres humanos” do oeste. No dia 13 de agosto de 1961, a 0h35, a Operação Muralha da China começou. Foi preciso esperar o 9 de novembro de 1989 para que o Muro desabasse – com o sinal verde do Kremlin.
LICENÇA PARA MATAR
A exumação dos arquivos da Stasi, a polícia política da antiga Alemanha Oriental, está na ordem do dia no país, que vem reavaliando os excessos cometidos pelo regime comunista. Um documento inédito acaba de ser revelado, causando comoção. Trata-se de uma autorização da Stasi para abater “sem condições” qualquer pessoa que tentasse cruzar o Muro de Berlim. E a ordem, datada de 1973, ainda ressalta: “Não hesitem em fazer uso de sua arma de fogo, mesmo em caso de violação da fronteira por mulheres e crianças, freqüentemente utilizadas pelos traidores”.
A tarefa de recuperação dos arquivos, porém, é árdua: logo que as primeiras pedras do muro começaram a ruir, a Stasi destruiu boa parte do material.
Mas agora os alemães vão utilizar um software desenvolvido especialmente para auxiliar na reconstituição dos 600 milhões de fragmentos de papel que sobraram dos arquivos. Desde a queda do muro, uma equipe tenta reconstruir artesanalmente esses documentos, mas até agora apenas 350 dos 16.250 sacos de papel picado puderam ser tratados. O governo alemão destinou 6,3 milhões de euros para financiar, com a ajuda do software, a reconstituição de mais 400 sacos, o que deve durar de dois a cinco anos. (Graziella Beting)
Bernard Brigouleix É jornalista do Le Monde e autor de diversas obras, dêntre as quais 1961-1989: Berlin, les années du mur (Tallandier)
Revista Historia Viva
3 comentários:
A resistência e a coragem impulsionam o povo a situações não-planejadas pelos governos.
Nessa semana, fiz uma comparação entre a vida humana e a natureza no meu blog. Citei o bambuzal, como símbolo de resistência, inclusive. Dê uma olhada.
Visite minha Casa, quando puder.
O endereço é:
(http://casadojulianosanches.blogspot.com/).
Um grande abraço.
Muito bom o artigo! Na minha opinião este muro continua no mesmo lugar, e ergueram-se outros à imagem e semelhança, sendo que a inteligência aliou-se ao mundo virtual. Barricadas, Farcs , AES, enfim ou certamente por ter compreendido bem esses anos e por ter vivenciado de perto a Ditadura Miliatar no Brasil, onde membros da minha família foram presos e torturados, eu acredito que apenas os nomes estão trocados. Atualmente vivemos a Ditadura do tráfico. E muros são levantados a cada segundo para sufocar e subjugar.
Parabéns!
Muito bom!
Abraços
Mirze
Obrigada pelo lindo selo!!!!
Tantas ações do ser humano e que não servem de nada... a não ser para prejudicar mais do que 'parece' estar prejudicado.
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