domingo, 22 de fevereiro de 2009

Às urnas, cidadãos!

Urna em Madeira Brasil Império 1822 - 1889
Urna de Votação em Madeira
Suas principais característica são a abertura superior para depositar a cédula e o sistema de fechadura com três chaves imitando o antigo “Piloro” – uma chave para o Juiz, outra para o Escrivão e a terceira para o Ministério Público.
Este modelo foi utilizada na época do Brasil - Império.
A Independência do Brasil obrigou o país a aperfeiçoar sua legislação eleitoral, que passou a ser influenciada pelo modelo francês.
Durante o Império, as eleições eram controladas pelo imperador, por meio da Secretaria do Estado dos Negócios do Brasil, dos presidentes das províncias e da oligarquia rural. Para garantir maioria ao governo, as alterações na legislação eram feitas às vésperas das eleições. Todo o processo eleitoral era eivado de vícios e propiciava um sem-número de fraudes.
www.tre-rn.gov.br/.../acervo/urnas_cmemoria.htm

Escapando ao controle das elites políticas, as eleições no Império eram períodos de grande desordem, que muitas vezes terminavam em pancadaria e morte
Suzana Cavani

Eleições, no Império, eram um acontecimento muito especial. Nesses dias sempre solenes, marcados por muita liturgia cívica, o mais modesto cidadão vestia sua melhor roupa, ou a menos surrada, e exibia até sapatos, peças do vestuário tão valorizadas entre aqueles que pouco tinham. Em contraste com essa maioria de gente nada refinada no trajar, destacava-se uma minoria sempre vestida com pompa e circunstância. Vestimentas de gala de autoridades civis, militares e eclesiásticas, roupas importadas – tudo do bom e do melhor compunha a indumentária de quem era mais que um cidadão qualquer e queria exibir em público essa sua privilegiada condição.

Esse desfile de contrastes mostrava o que as eleições representavam: um momento de afirmação de hierarquias e distinções sociais. A estratificação ficava ainda mais visível nos direitos dos cidadãos brasileiros definidos na Constituição. Nem todos podiam votar ou candidatar-se a cargos eletivos: tudo dependia da sua condição financeira. O sistema eleitoral do Império era bem diferente do atual. Até a reforma de 1881, o pleito era indireto. O eleitorado era dividido em dois grupos distintos: votantes e eleitores. Nas eleições primárias, ou de primeiro grau, cabia à maioria, os votantes, escolher nas urnas a minoria, os eleitores. Nas eleições seguintes, as secundárias ou de segundo grau, delegava-se aos eleitores, e somente a eles, a responsabilidade de eleger deputados e senadores.

A renda é que definia o lugar de cada cidadão nas eleições. Os que tinham renda líquida a partir de 100 mil-réis anuais compunham o corpo dos votantes. Os que tinham ganhos de 200 mil-réis ou mais, o dos eleitores. Cem mil-réis correspondiam à pensão de um estudante rico, ao custo de um luxuoso vestido de seda ou de dez pares de calçados ingleses. Após a reforma de 1845, quando a renda exigida para os votantes e eleitores já havia dobrado de valor, calculou-se que um trabalhador das plantações de café, que ganhava, em média, dois mil-réis por dia, ao término de 100 dias de labuta já teria o suficiente para votar.

Embora a escravidão deixasse sem cidadania uma fração significativa da população – pois os escravos não tinham direito a voto –, para os padrões da época muita gente votava no Brasil antes de 1881, inclusive os analfabetos. Além disso, durante muito tempo não se exigia nenhum documento que comprovasse o rendimento do eleitor. O simples testemunho de uma pessoa idônea resolvia a questão. Estima-se que na década de 1870 o eleitorado era composto de 10% da população do país. Muita gente de condição humilde votava nas eleições primárias. Só nas secundárias é que o eleitorado minguava drasticamente. O exemplo de uma freguesia urbana do Recife, em 1856, ilustra bem tal disparidade. Em Santo Antônio, para os seus 2.003 votantes, havia apenas 38 eleitores.


Na década de 1840, era quase consenso entre os políticos a necessidade de aumentar a renda do eleitorado, única medida considerada eficaz para reduzir a fraude e a interferência do governo nas urnas. Para eles, a corrupção eleitoral estava associada principalmente à participação popular. A reforma de 1845 elevou os rendimentos para o dobro do seu valor. O aceso debate que ocorreu no Parlamento nesta ocasião sugere que muitas pessoas, apesar de modestas, tinham recursos suficientes para votar. Mas quem eram os populares com direito a voto no Império? Pelas listas dos votantes da freguesia São Pedro, em Olinda, entre 606 cidadãos registrados havia alfaiates, pescadores, sapateiros, canoeiros, jornaleiros, marceneiros e pedreiros, que formavam metade do eleitorado. Nas regiões rurais, os votantes mais modestos saíam das fileiras de agregados dos engenhos e fazendas.

As eleições eram realizadas com regularidade, sempre que a lei determinava. De quatro em quatro anos eram escolhidos deputados, vereadores e juízes de paz [magistrados que exerciam nas paróquias a função de juiz de casos mais simples, como a conciliação entre litigantes]. De dois em dois anos, os deputados provinciais. Para o Senado, só havia eleições em caso de morte dos seus membros, já que este Parlamento era vitalício. Pelo que se sabe, nunca se deixou de cumprir o calendário eleitoral no Império, mesmo em tempos difíceis, como o da Guerra do Paraguai, quando só não houve pleito na província do Rio Grande do Sul, dada a sua proximidade com o conflito.

O período eleitoral era muitas vezes marcado por desordens. A imprensa do Recife, em 1860, noticiava disputas apaixonadas, que quase sempre terminavam em pancadaria e morte: “Não há homem ou mulher, menino ou moço, rico ou pobre, nobre ou plebeu, branco ou preto que em dias de eleição popular não sinta o vivo efeito de uma animação voluntária para o vulgar. Nestes dias, perdem-se as amizades (...) e há quem tenha perdido a vida”.

As eleições eram, enfim, um grande problema a ser administrado pelo Estado, pois os dois partidos imperiais – liberais e conservadores – nunca deixaram de valer-se da violência para levar a melhor nas urnas. Formados majoritariamente por representantes das classes proprietárias de terras e de escravos e, por isso mesmo, sem grandes diferenças programáticas quanto à ordem social (foi só na década de 1870 que os liberais aderiram, a muito custo, à causa antiescravocrata), os dois partidos tinham divergências no plano político que os levavam a disputar com afinco as eleições. Para os liberais, o que importava, fundamentalmente, era a descentralização do poder e a autonomia das províncias; os conservadores, ao contrário, queriam a centralização política e as províncias com atribuições de poder limitadas. Às vezes, porém, causas “menos nobres” – rixas entre famílias, conflitos entre grandes proprietários para a definição dos limites de suas terras – se tornavam motivo para o apoio a partidos e candidaturas. Assim, a tarefa mais árdua das autoridades públicas consistia mesmo em refrear a ação das classes populares mobilizadas por grupos de interesses opostos.

Surpresas de peso, de todo modo, nunca aconteciam. Aqui e ali o partido de oposição elegia um candidato, mas o grande vitorioso acabava sendo sempre o partido da situação, que contava com o auxílio da máquina governamental. Nas últimas décadas do período imperial, porém, as grandes cidades pareciam despontar, timidamente, como espaços mais propícios à liberdade de voto, ou, pelo menos, a certas barganhas eleitorais. Ali já proliferava, a preços módicos, a venda ilegal de votos, assim como a revenda dos mesmos, para tristeza dos candidatos que primeiro desembolsavam dinheiro. O caso das cédulas coloridas, em 1856, é um curioso exemplo das “traições” do votante aos políticos e àqueles de quem dependiam para sobreviver. Conforme o costume, visando controlar os eleitores, cada partido, por segurança, escolhia uma cor para suas cédulas, e ele próprio as imprimia. No sistema antigo, estas é que eram depositadas nas urnas. Mesmo assim, os votantes encontravam formas de driblar o controle. Pelo menos foi o que aconteceu no Recife, na freguesia de Santo Antônio, em 1856, onde se registrou o caso da “cédula-melancia”, ou seja, de uma cor por fora, de outra por dentro. Sinal de que o votante camuflava a cédula que recebia de um partido para votar no outro. Provavelmente, ele fazia isso colando uma sobre a outra. Depois de 1881, as cédulas coloridas foram proibidas.


Uma novidade eleitoral interessante, introduzida na capital pernambucana ainda na década de 1840, foram os meetings. Adotados tanto por liberais quanto por conservadores, eles eram equivalentes aos comícios de hoje, para conquistar votantes, eleitores, e mesmo quem não votava. Na época, o setor comercial a retalho se achava monopolizado pelos portugueses, assim como o ofício de caixeiro de loja. Os trabalhadores livres brasileiros há muito reivindicavam medidas contra tal situação. Então os “praieiros”, ou liberais pernambucanos, nas eleições de 1846, promoveram meetings nos bairros populares em defesa da nacionalização daquele comércio. Os conservadores, ou “gabirus”, contra-atacaram, utilizando o mesmo modo de mobilização. Os próprios praieiros, por seu lado, registraram na imprensa algo inusitado de se ver no Recife naquele tempo: o barão da Boa Vista, eminente político gabiru, “andando pelas ruas a pé”, apertando a mão dos pardos e fazendo “mesuras” aos pretos!

Nas eleições de 1860, seria a vez de os meetings fazerem sucesso na própria cidade do Rio de Janeiro. Em 1884, nas eleições para a Câmara dos Deputados, a bandeira da abolição congregaria outra vez muita gente trabalhadora, além de uma nascente classe média, nos afamados meetings das principais cidades brasileiras. É possível até se conseguir um mapa socioeconômico dos bairros do Recife acompanhando os discursos de Joaquim Nabuco (1849-1910) nos encontros que organizou. Em São José, um dos bairros mais populares, o orador seria aclamado pelo povo por sua defesa do trabalho, segundo ele prejudicado pela vigência da escravidão. Na freguesia da Madalena, sua fala será endereçada aos moradores “do bairro da riqueza”, na de Afogados, aos residentes no “ bairro da miséria”. Esses encontros, ao que parece, congregavam muita gente. O Jornal do Recife, em novembro de 1884, chegou a falar de duas mil pessoas reunidas num meeting, noticiando ainda que, por causa do evento, os bondes “transitaram constantemente cheios”, transportando apenas “menos de metade dos que se dispuseram a comparecer àquela reunião”.

Mas a reforma eleitoral de 1881, conhecida como Lei Saraiva, reduziu drasticamente o eleitorado do Brasil, que ficou restrito a 1% da população. Boa parte dos que “viviam do trabalho” e prestigiavam os meetings não mais votariam. A nova legislação, que introduziu as eleições diretas no país, passou a exigir dos cidadãos com direito a voto duas coisas difíceis para a maioria deles: alfabetização e prova documental de renda. Para o povo brasileiro, portanto, aquelas “Diretas Já” do século XIX foram uma grande derrota. No entanto, a luta pelo livre exercício do voto, assim como pela cidadania de maneira geral, continuaria República afora, para chegar, entre avanços e recuos, até os dias de hoje.

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SUZANA CAVANI É PROFESSORA DE HISTÓRIA DA UNIVERDIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (UFPE) E AUTORA DA TESE "S EMPERRADOS E OS LIGUEIROS: A HISTÓRIA DA CONCILIAÇÃO EM PERNAMBUCO (1849-1857)" RECIFE: UFPE, 1999.



SAIBA MAIS:

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª edição, 2003.

GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Campus/UFRJ, 1997.

SOUZA, Francisco Belizário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979.

Fontes impressas
LISBOA, José Francisco. Jornal de Timon. Partidos e eleições no Maranhão. Introdução e notas de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Um comentário:

Aparício Fernando disse...

Em Saquarema-RJ aconteceu um fato muito estranho. Antes das eleições de 2012 era só andar pelas ruas e perguntar em quem o eleitor iria votar que a resposta era unânime: Pedro Ricardo, candidato da oposição. Pois bem, o rapaz perdeu em todas, eu disse todas as 173 urnas da cidade. Perdeu e perdeu de muito. O mais estranho é que hoje, um mês após as eleições, você vai às ruas e os eleitores continuam unânimes em dizer que votaram em Pedro Ricardo. Seria muito mais cômodo pro eleitor dizer que votou na candidata vitoriosa. Mas não, o eleitor bate o pé afirmando que votou no outro. Curiosamente, é difícil encontrar alguém que confirme que votou na candidata vencedora, que coincidentemente é a esposa do deputado estadual Paulo Melo, presidente da ALERJ. Existem vários relatos da internet e inclusive vídeos no YOUTUBE atestando a vulnerabilidade das urnas eleitorais. Está lá pra quem quiser assistir. O fato é que esse triunvirato: Cabral, Zveiter e Paulo Melo atenta contra a democracia. Todos os poderes encontram-se de um lado só da balança, prejudicando a alternância do poder, principal filosofia da democracia. O fato é que não adianta espernear, pois o TSE, por mais que existam evidências que comprovem, jamais irá admitir fraudes em suas 'caixas pretas'. O ideal seria que a urna eletrônica emitisse, também, um cupom onde mostrasse em quem o eleitor votou. E que esse cupom fosse colocado numa urna tradicional ao lado dos mesários, para fins de comprovação posterior. Uma coisa é certa: nenhum outro país no mundo, depois de examinar, quis comprar nosso ‘avançadíssimo, rápido e moderno' método de escrutínio, nem o Paraguai.