por Rémi Kauffer
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Recém-empossado como vice-primeiro-ministro, Deng Xiaoping participa de recepção ao presidente americano Gerald Ford em Pequim, em 1975
Quem acredita em signos – coisa sempre importante quando se pensa na China – faz questão de lembrar que Deng Xiaoping nasceu no dia 12 de julho de 1904, sob o signo do dragão, sinônimo de grandes perturbações e, ao mesmo tempo, de prosperidade. Já os amantes da história observam que aquele também foi o ano da irrupção da Guerra Russo-Japonesa, conflito que se encerraria com a surpreendente vitória de um país asiático sobre uma potência européia.
Era o início de um século de crises e conflitos. Nos quatro cantos do mundo, e particularmente na Ásia, as reivindicações nacionais emergiam tal como o dragão adormecido desperta no seio da terra. Na China, esse dragão atendia pelo nome de Kuomintang, movimento nacionalista fundado por Sun Yatsen, do qual o próprio pai do jovem Deng era simpatizante.
O futuro líder comunista cresceu em meio a essa efervescência política e aos 15 anos, depois de concluir o ensino fundamental, partiu para a França, onde desembarcou no fim de 1920. Na Europa tomou contato com o marxismo e finalmente estabeleceu-se em Paris em 1925 enquanto uma revolta antibritânica explodia em sua terra natal. Tudo começou em Xangai, depois que um ofi cial inglês ordenou o fuzilamento de 12 chineses. Diante da agressão, os militantes do Kuomintang, agora oficialmente aliado da União Soviética e da Internacional Comunista (Comin tern), reagiram com a greve geral, marchando ao lado do Partido Comunista Chinês.
A onda de revolta chegou até a França e, na qualidade de um dos líderes comunistas chineses mais influentes em Paris, Deng ajudou a organizar grandes protestos contra a embaixada de seu país. Para fugir da perseguição que se seguiu, ele partiu para a clandestinidade e buscou exílio em Moscou.
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Deng Xiaoping e Mao Tse-tung juntos em março de 1959. O ímpeto de Mão era contrabalançado pela paciência do secretário-geral do partido
Na capital soviética, o “Pequeno Timoneiro” converteu-se num militante comunista disposto a todas as missões. E estas não faltavam. De volta à China, teve seu primeiro encontro com Mao Tsé-tung no dia 7 de agosto de 1927. Em seguida, foi enviado a Xangai para ajudar os comunistas locais na disputa contra os militantes locais do Kuomintang, liderados por Chiang Kai-shek.
Atuando na clandestinidade, o jovem ativista adotou o nome de “Deng Xiaoping” (a Pequena Paz), mas foi com o nome de guerra de Deng Bin que organizou, por ordem expressa do partido, diversas insurreições rurais fracassadas: na região de Guangxi, perto da fronteira com a Indochina.
Após essas tentativas frustradas de insurreição, fi nalmente Deng incorporou-se à Longa Marcha (ver glossário) em 1935. Rompendo à força o cerco dos soldados de Chiang Kai-shek, os comunistas abandonaram as montanhas do sul do país e se deslocaram até Yenam, no norte, onde instalaram uma nova capital revolucionária. Ao longo da marcha, Mao Tsé-tung tornou-se o líder inconteste do comunismo chinês. Em janeiro de 1935, Deng Xiaoping foi promovido ao posto de secretário do Comitê Central na decisiva conferência de Zunyi, na qual Mao se impôs.
Em Yenam, Deng teria papel destacado na guerra contra os japoneses. Ao lado do “Dragão Caolho” Liu Bocheng, assumiu o comando do exército “Liu-Deng” contra as tropas do Kuomintang, e se tornou um curinga na nova República Popular da China proclamada por Mao, em Pequim, em outubro de 1949.
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A repressão aos protestos estudantis da praça Tianamen, em Pequim, provou que Deng Xiaoping não estava disposto a permitir a democratização da China
De volta à sua Sichuan natal, Deng foi encarregado primeiro de administrar a província e, depois, de organizar a anexação manu militari do Tibete. Seu desempenho brilhante nas duas tarefas lhe abriu o caminho, em agosto de 1952, para a Cidade Proibida, transformada em quartelgeneral dos dirigentes comunistas.
Em 1954, Mao Tsé-tung assumiu a presidência da República, Liu Chao-chi, instalou-se à frente da Assembléia Nacional Popular, e Deng Xiaoping se tornou secretário-geral do Partido Comunista Chinês. Mão gostava dele e os dois se encontravam com muita freqüência.
Chu En-lai acumulava as funções de chefe do governo e ministro das Relações Exteriores. Ainda que totalmente subjugado por Mao, o primeiro-ministro nunca abriu mão de certa dose de realismo. Sem dúvida, foi por esse motivo que se transformou no segundo “padrinho” de Xiaoping. Na ação do pequeno sichuanês, Chu detectava a marca de um pragmatismo ardente. Isso o agradava, pois Mao, na sua utopia da mutação per manente, já estava jogando o país no funesto “Grande Salto Adiante”, que custaria a vida de cerca de 20 milhões de chineses e cujo fracasso o levou a perder a presidência da República para Liu Chao-chi em abril de 1959. Ao lado de Liu, Deng teve um papel importante nesse afastamento. Mão se encheu de raiva, mas nunca confessaria a Deng o ódio feroz que sentia de Liu. Mais do que indulgência, uma estranha cumplicidade unia dois dirigentes tão diferentes como Mao e Deng. “Está vendo aquele homenzinho ali? É inteligentíssimo. Tem um grande futuro pela frente”, disse Mão a Nikita Kruchev em 1957.
Obcecado pela história antiga de seu país, Mao Tsé-tung se sentia um continuador dos imperadores que governaram ao longo dos séculos. Aos seus olhos, a Longa Marcha, a tomada do poder e a instauração de um novo regime constituíam atos igualmente fundadores. O Partido Comunista era apenas uma espécie de “nova dinastia” coletiva destinada a fazer com que a China renascesse.
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Chineses acompanham a passagem da tocha olímpica pela província de Guangdong diante de um imenso retrato de Deng Xiaoping, em maio de 2008
YIN E YANG Nessa óptica, os vínculos pessoais eram tão importantes quanto os critérios ideológicos. O ímpeto de Mao era contrabalançado pela paciência de Deng, certamente mais sensato, às vezes mau aluno, porém muito hábil e excelente organizador. Contanto que estivesse cercado de uma sólida equipe de ideólogos maoístas, o pequeno Deng podia agir.
A partir do fim de 1965, Mão procurou reconquistar o status de chefe incontestável lançando o país nos horrores da Revolução Cultural, novo episódio sangrento que causaria a perda de 60 a 70 milhões de vidas e condenaria a China a um retrocesso de anos. Seu método: a “ideologização” radical dos conflitos. Seu objetivo: mobilizar as massas e lançá-las contra o aparelho do partido e contra Liu Chao-chi, que tinham se atrevido a chutá-lo para escanteio. Sua aliada do momento: a esposa Chiang Ching.
Atormentada pelas convulsões, toda a China pensava unicamente em termos ideológicos: “Mais vale ser vermelho do que especialista”. É bem verdade que Deng se calou, mas... que fazer? Em primeiro lugar, era preciso salvar a pele. Quase na mesma situação de Liu Chao-chi, o “Kruchev chinês”, ele não tardou a ser acusado de traição por Chiang Ching, Lin Piao e Kang Cheng. Deng escolheu sua tática: não contra-atacar, aguardando que a tempestade acalmasse. Aceitou tudo sem hesitar, desde autocríticas públicas até o exílio no interior para se “reeducar” em contato com os operários.
Ao contrário de Liu Chao-chi e de Lin Piao, essa tática precavida do bambu que se dobra sem se romper permitiu-lhe sobreviver. Aliás, ele se beneficiou de dois apoios essenciais: o de Chu En-lai e o de Mao, disposto a poupar para a China o seu subordinado mais pragmático.
Graças a esse apadrinhamento duplo, Deng retornou à cena em 1973, para azar de Chiang Ching e dos “radicais”. No plano prático, foi ele que auxiliou Chu, acometido de câncer tal como Kang Cheng. E, aparentemente, reatou a relação de intimidade que outrora tivera com Mao. Para a população, o nome do ex-secretário-geral do partido transformou-se em sinônimo de esperança.
Em abril de 1976, Deng e seus aliados exploraram ao máximo as manifestações na praça Tiananmem, a faísca que, com o pretexto de homenagear a memória de Chu En-lai, incendiou todo o prado contra o Bando dos Quatro (ver glossário). Enfurecido com mais essa prova de independência, Mão ordenou sua destituição, mas, simultaneamente, deu-lhe proteção pessoal. Uma vez mais o dirigente chinês aceitou acolher debaixo da asa aquele que se dispunha a torcer o pescoço do maoísmo.
Apesar de um eclipse provisório, aquele foi, na verdade, o início da irresistível ascensão de Deng Xiaoping. Mao morreu no dia 9 de setembro de 1976. A luta pela sucessão começou imediatamente, opondo o Bando dos Quatro a Hua Guofeng, um maoísta um tanto inexpressivo e menos radical, que o falecido líder havia entronizado no último momento. Antecipando-se a Chiang Ching e seus amigos, que preparavam um golpe de força, Deng e os generais moderados esmagaram o Bando dos Quatro com o apoio ativo de Wang Dongxing, o “gorila” de Mao.
Hua Guofeng não durou mais que alguns meses no poder. No fim de 1978 tudo ficou decidido: Deng se tornou o verdadeiro número um, cercado dos discípulos Hu Yaobang e Zhao Ziyang. Homens dos quais ele não vacilaria em se livrar em caso de necessidade, assim como não titubearia em jogar na prisão qualquer um que ousasse reivindicar a “quinta modernização”: a democracia.
“MILAGRE ECONÔMICO”
Deng Xiaoping não acreditava na democracia. Pelo menos demoraria muito a chegar a tanto. A China só se desenvolveria se conduzida pela única força centralizada do país, o Partido Comunista. Sem dúvida, um partido disposto a discutir, aberto, realista no plano econômico, mas cujo papel de guia não podia ser contestado. No fundo, as coisas não tinham evoluído desde que o jovem Deng aderira ao comunismo. Dramaticamente retardada por dez anos de Revolução Cultural, a China continuava sendo, aos seus olhos, um país imenso, pobre, subdesenvolvido que precisava “ser parido a fórceps”.
Sem consideração pelo amor-próprio tradicional de seus compatriotas, Deng não cessava de pôr o dedo na ferida. Mao queria fazer da China um novo Império do Meio. Deng defi niu um objetivo mais limitado para sua pátria: “chegar, na metade do século XXI, ao nível de um país medianamente desenvolvido”. E criou um método para isso: “Para que o socialismo seja concretamente superior ao capitalismo, é necessário que ele seja capaz de nos tirar da pobreza”.
O rumo a ser seguido era o da liberalização econômica sem democracia, e Deng se empenhou com ardor em construir esse caminho. Se durante a Revolução Cultural a China havia se tornado o império do “totalmente político”, sob Deng Xiaoping o Ocidente passou a vê-la como o reino do “totalmente econômico”.
Esse raciocínio, porém, era um tanto limitado: a realidade chinesa também era política, como demonstraram os protestos estudantis na praça de Tiananmem, em abril de 1989, ao reivindicarem o advento da democracia.
A resposta foi a repressão comandada pelo marechal Yang Shangkun e seu cunhado, o general Yang Baibing. Sangue nas ruas de Pequim. Apesar das aparências, nem por isso o principal líder chinês restaurou o maoísmo. Foi justamente o que ele demonstrou ao apoiar, na década de 90, o retorno progressivo e cautelosamente controlado do clã “reformador” (no sentido econômico do termo). Mas continuou fiel ao seu credo: sem a estrutura de um partido dirigente forte, a China jamais viria a ser uma grande potência. O homem que liqüidou o maoísmo nunca cogitou de se livrar de toda a herança do “imperador vermelho”, e aplicou ao seu antigo mestre a avaliação que Mao havia feito do próprio Deng 20 anos antes: “70% de bom e 30% de ruim”.
CRONOLOGIA
COLEÇÃO PARTICULAR
O futuro líder chinês na infância
1904
Nasce na província de Sichuan, em 22 de agosto
1920
Muda para a França, onde entra em contato com o marxismo
1925
Em Paris, participa de protestos contra a presença britânica na China e é obrigado a se exilar na União Soviética
1935
Participa da Longa Marcha e é promovido a secretário do Comitê Central do Partido Comunista Chinês
1949
Após o triunfo da revolução, assume a administração da província de Sichuan
1965
Início da Revolução Cultural. Deng Xiaoping é acusado de traição e enviado para campos de trabalho
1973
Deng é reabilitado politicamente. No ano seguinte é nomeado vice primeiro- ministro
1978
Assume o comando da China, e dá início a amplo programa de reformas econômicas
1989
Reprime violentamente os protestos estudantis da praça Tianamen, em Pequim
1997
Morre no dia 19 de fevereiro
GLOSSÁRIO
LONGA MARCHA: retirada das tropas do Partido Comunista Chinês para fugir da perseguição do Kuomintang entre 1934 e 1935. O movimento consolidou a liderança de Mão Tsé-tung.
BANDO DOS QUATRO: núcleo radical do Partido Comunista Chinês ligado a Mao Tsé-tung formado por sua esposa, Chiang Ching, e por Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wanga Hongwen, todos acusados de cometer excessos durante a Revolução Cultural.
Rémi Kauffer é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e membro do comitê editorial da revista Historia.
Revista Historia Viva
Um comentário:
Que caminhada! Poucas pessoas fazem a caminhada valer a pena. Mas ficam marcadas!
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