Blasfemar era coisa comum na colônia, quando o universo sagrado fazia parte do cotidiano da população
Geraldo Pieroni
Onde há crença religiosa, há blasfêmia. A palavra vem da junção dos termos gregos blaptein (lesar, ferir, danificar) e phème (reputação). É, portanto, um ato, por palavra ou gesto, que fere uma reputação. No caso, a reputação divina.
“Cristo é tão infame quanto a lama da rua”, ousou dizer um certo português chamado Antônio Luís de Meneses. Sua punição: degredo para o Brasil. Antônio Pires jogou o terço e a imagem de Jesus ladeira abaixo. Luís Cabral anunciou, colérico, que queria matar “Nosso Senhor com duas pelotas de fuzil”. Diogo Pacheco de Mendonça, juiz dos direitos e domínios reais, mandou lambuzar com excrementos a santa cruz. Diogo Alfaia, pedreiro, roubou uma hóstia consagrada e a esmigalhou com os pés.
Se em Portugal as blasfêmias eram consideradas pelos juízes da fé como “enormes e feias”, o que se devia dizer do que acontecia no Brasil?
Nas cidades coloniais do século XVI e XVII, blasfemar era algo bastante comum. Autoridades administrativas, missionários, brancos, negros, mestiços desajustados, índios desgarrados das aldeias, vadios, ciganos e andarilhos, soldados, prostitutas, marinheiros e degredados afiavam a língua nas praças, igrejas e tabernas. Os alvos, na maioria das vezes, eram Deus, Cristo e sua família, os apóstolos.
Informados por autoridades do Brasil, os inquisidores de Lisboa estavam preocupados com os pecados praticados do outro lado do Atlântico. Mesmo que nenhum tribunal do Santo Ofício tenha sido oficialmente instalado em território brasileiro, a Inquisição mostrava-se ansiosa para punir os pecadores. Habituados a farejar heresias mesmo à distância, os inquisidores organizaram pelo menos três missões do Santo Ofício no Brasil nos dois primeiros séculos da colonização. A primeira, e talvez a mais importante, ocorreu entre 1591 e 1595.
Muitas confissões e denúncias de blasfêmia e desrespeito aos objetos sagrados foram anotadas. Em Pernambuco e na Bahia, entre 283 faltas confessadas, contaram-se 68 expressões insultuosas que renegam Deus, zombam dos santos ou duvidam da virgindade de Maria, a mãe de Cristo.
No topo da lista dos blasfemadores brasileiros estava o governador da capitania de Porto Seguro, Pero de Campo Tourinho, preso em 1546 por causa de insultos dirigidos a Deus e à Igreja. Tourinho disse publicamente que ofereceria uma vela de bosta para Santo Antônio e que os santos eram todos “santinhos de merda”. Ameaçado de excomunhão, reagiu de maneira ainda pior, proclamando aos quatro ventos que faria sua higiene pessoal com a carta papal.
Os homens eram os campeões da blasfêmia. Esta era, aliás, uma regra geral. “As mulheres não cometem ordinariamente este pecado”, afirmou o teólogo espanhol Luís de Granada, autor de O Guia dos Pecadores, ainda no século XVI. “A blasfêmia é a linguagem da autonomia viril e dos homens do povo, sempre próximos da marginalidade”, concorda o historiador francês Alain Cabantous. Há, contudo, alguns casos notáveis de mulheres que tentaram quebrar, quase sempre de forma escandalosa, essa hegemonia masculina. Violante Fernandes, cigana degredada, revoltada com as incessantes chuvas na Bahia, bradou que era Deus quem urinava sobre ela. Apolônia de Bustamante, outra degredada, sofrendo do mesmo desânimo por causa das tempestades, protestou publicamente: “Bendito sea el carajo de mi señor Jesu Christo que agora mija sobre mi”.
Blasfemava-se tanto por causa das chuvas como por causa da seca. Em Pernambuco, numa região de poucas águas, Álvaro Pires protestou contra a ausência de chuvas vociferando contra Deus: “Ao diabo a lua e aquele que a criou!”. Filipe Tomás de Miranda, furioso, blasfemou contra Jesus, Maria e o sacramento da comunhão, mandando à merda Cristo, a hóstia e a Virgem Maria. Igualmente descontente com os católicos, o cristão-novo Simão Pires Tavares exclamou: “Merda para a escola de Jesus e a mesma sujidade para Jesus”. Antônio Nunes, marinheiro, durante uma jogatina jurou duas vezes “pelo filho de Jesus”, e o sapateiro Frutuoso Antunes declarou que a Virgem Maria não era virgem coisa nenhuma.
Pôr em dúvida a virgindade de Maria era uma das blasfêmias mais comuns, e também uma das mais graves, segundo os inquisidores. Desde o século IV, a tradição cristã prega a pureza da mãe de Jesus. Os teólogos explicitam, com base nos Evangelhos de Mateus e Lucas, que Maria permaneceu virgem inclusive durante e depois do parto.
Além das blasfêmias clássicas, havia também pequenos e bizarros incidentes que eram igualmente considerados faltas passíveis de punição. Fernão Pires, que nem padre era, batizava os cachorros e dava-lhes nomes, simulando o rito batismal. Numa época em que a Igreja católica estipulava jejum de 24 horas antes da comunhão, Jerônimo Nunes se empanturrou de bananas com cana-de-açúcar e logo depois foi para a missa. Guiomar de Oliveira, mulher de um sapateiro, para obter a afeição de seu cônjuge, utilizava as palavras da consagração durante o ato sexual.
Nas listas dos autos-de-fé (rituais de penitência pública e execuções), onde eram registradas as condenações dos réus, encontram-se, além das blasfêmias, os sacrilégios — irreverência contra objetos sagrados. Foi o caso de Luís Vaz de Paiva e seu sobrinho, que furtaram um crucifixo da capela de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia, para assustar as pessoas que passavam à noite na rua. O crucifixo, aliás, prestava-se a mil e uma utilidades, em práticas criativas, mas nada nobres. Diogo Castanho tinha o hábito de colocá-lo na cama quando se deitava com uma negra. Isidoro o amarrou numa goiabeira e lhe deu várias chibatadas. João Nunes, comerciante de Pernambuco, fazia suas necessidades sobre ele.
Todo esse despudor diante de símbolos sacros não significa, necessariamente, uma postura de revolta ou descrença em relação à Igreja. Revela, sim, uma extrema familiaridade das pessoas comuns com Deus e sua corte celestial, característica de uma sociedade saturada do sagrado. A blasfêmia é parte integrante e obrigatória do cristianismo, um componente ativo dessa cultura. O Ocidente cristão dos séculos XVI e XVII era a “civilização da blasfêmia”, nas palavras do historiador Jean Delumeau. Baseado em numerosos testemunhos da época, ele mostra que, num tempo de grande instabilidade psíquica, os indivíduos passavam constantemente de um extremo a outro: da piedade ao ódio e da violência ao arrependimento. Um fiel devoto podia, num momento de cólera, renegar Deus, e no instante seguinte ajoelhar-se, arrependido, aos pés do altar.
Mas, para a Igreja, esses atenuantes não existiam. A blasfêmia era encarada como o desprezo por Deus, desejado pelo pensamento e manifestado pela palavra ou pela ação. Como tal, podia ser castigada pelo juiz eclesiástico (que eram padres inquisidores), ou pelo juiz secular, que se ocupava dos crimes relacionados às legislações do rei. Ou até pelos dois, visto que uma sentença não anulava a outra. Em Portugal, as punições eram mais rígidas e seguiam um ritual já consagrado na prática. No Brasil, os blasfemadores geralmente eram advertidos e reconciliados. Nos casos mais graves, o acusado era enviado para a Inquisição de Lisboa, onde era tratado como todos os demais réus portugueses.
De modo geral, as penas iam de advertências e encarceramentos até açoites, banimentos e mesmo castigos espirituais, como ir a peregrinações e fazer rezas. Além disso, os blasfemadores deveriam usar publicamente, no momento do auto-de-fé, uma mordaça — símbolo da interdição da palavra ímpia: a boca representava o Verbo, a palavra divina que permite o sopro que é o espírito de Deus.
Ainda assim, os atos eram julgados de acordo com vários níveis de gravidade, segundo as palavras pronunciadas e as circunstâncias, e por isso deveriam ser avaliados caso a caso. Aqueles associados a indivíduos de comportamento incontrolado, que se rebelavam contra a autoridade da Igreja e negavam os dogmas do catolicismo, eram diferentes dos pronunciados de forma irrefletida, que haviam entrado no uso corrente da linguagem cotidiana, como pequenos xingamentos proferidos no trabalho, nas tabernas, nos cabarés e nas casas de jogos.
As blasfêmias na colônia indicam a adaptação da cultura popular européia ao contexto brasileiro. Aqui elas adquiriram matizes próprios, como comer bananas ou cana-de-açúcar, alimentos inexistentes na paisagem européia, antes da missa ou pendurar a cruz numa goiabeira, como prova de insatisfação com Deus e com a Igreja. Os detalhes podem ser brasileiros, mas a raiz é européia. Em compensação, as práticas indígenas de enfeitar o corpo com pinturas ou marcando nele cicatrizes, assim como a adoração de certas divindades pagãs, provavelmente eram inéditas para os inquisidores. Era difícil avaliar até que ponto esses rituais, que tinham aspectos religiosos contrários ao catolicismo, podiam ser considerados blasfêmias. Muitas vezes, o próprio índio batizado, que deveria ser em tudo um bom cristão, voltava a praticar ritos pagãos, desafiando a ortodoxia da Igreja. Um desvio ao qual os emissários do Santo Ofício certamente não estavam habituados.
Apesar de todas as distinções e ambigüidades, a luta contra o pecado e o pecador deveria continuar. Afinal, blasfemador não era só aquele que se arriscava a desencadear a cólera divina: ele representava também uma ameaça à frágil harmonia social de um mundo que apoiava seus pilares sobre o solo ainda firme da religião.
Geraldo Pieroni é professor de História da Universidade Tuiuti do Paraná e autor do livro Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2005.
Saiba Mais - Livros:
LAPA, José Roberto do Amaral (apresentação). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará. Petrópolis: Editora Vozes, 1978.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989.
VAINFAS, Ronaldo (organizador). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Revista de História da Biblioteca Nacional
Geraldo Pieroni
Onde há crença religiosa, há blasfêmia. A palavra vem da junção dos termos gregos blaptein (lesar, ferir, danificar) e phème (reputação). É, portanto, um ato, por palavra ou gesto, que fere uma reputação. No caso, a reputação divina.
“Cristo é tão infame quanto a lama da rua”, ousou dizer um certo português chamado Antônio Luís de Meneses. Sua punição: degredo para o Brasil. Antônio Pires jogou o terço e a imagem de Jesus ladeira abaixo. Luís Cabral anunciou, colérico, que queria matar “Nosso Senhor com duas pelotas de fuzil”. Diogo Pacheco de Mendonça, juiz dos direitos e domínios reais, mandou lambuzar com excrementos a santa cruz. Diogo Alfaia, pedreiro, roubou uma hóstia consagrada e a esmigalhou com os pés.
Se em Portugal as blasfêmias eram consideradas pelos juízes da fé como “enormes e feias”, o que se devia dizer do que acontecia no Brasil?
Nas cidades coloniais do século XVI e XVII, blasfemar era algo bastante comum. Autoridades administrativas, missionários, brancos, negros, mestiços desajustados, índios desgarrados das aldeias, vadios, ciganos e andarilhos, soldados, prostitutas, marinheiros e degredados afiavam a língua nas praças, igrejas e tabernas. Os alvos, na maioria das vezes, eram Deus, Cristo e sua família, os apóstolos.
Informados por autoridades do Brasil, os inquisidores de Lisboa estavam preocupados com os pecados praticados do outro lado do Atlântico. Mesmo que nenhum tribunal do Santo Ofício tenha sido oficialmente instalado em território brasileiro, a Inquisição mostrava-se ansiosa para punir os pecadores. Habituados a farejar heresias mesmo à distância, os inquisidores organizaram pelo menos três missões do Santo Ofício no Brasil nos dois primeiros séculos da colonização. A primeira, e talvez a mais importante, ocorreu entre 1591 e 1595.
Muitas confissões e denúncias de blasfêmia e desrespeito aos objetos sagrados foram anotadas. Em Pernambuco e na Bahia, entre 283 faltas confessadas, contaram-se 68 expressões insultuosas que renegam Deus, zombam dos santos ou duvidam da virgindade de Maria, a mãe de Cristo.
No topo da lista dos blasfemadores brasileiros estava o governador da capitania de Porto Seguro, Pero de Campo Tourinho, preso em 1546 por causa de insultos dirigidos a Deus e à Igreja. Tourinho disse publicamente que ofereceria uma vela de bosta para Santo Antônio e que os santos eram todos “santinhos de merda”. Ameaçado de excomunhão, reagiu de maneira ainda pior, proclamando aos quatro ventos que faria sua higiene pessoal com a carta papal.
Os homens eram os campeões da blasfêmia. Esta era, aliás, uma regra geral. “As mulheres não cometem ordinariamente este pecado”, afirmou o teólogo espanhol Luís de Granada, autor de O Guia dos Pecadores, ainda no século XVI. “A blasfêmia é a linguagem da autonomia viril e dos homens do povo, sempre próximos da marginalidade”, concorda o historiador francês Alain Cabantous. Há, contudo, alguns casos notáveis de mulheres que tentaram quebrar, quase sempre de forma escandalosa, essa hegemonia masculina. Violante Fernandes, cigana degredada, revoltada com as incessantes chuvas na Bahia, bradou que era Deus quem urinava sobre ela. Apolônia de Bustamante, outra degredada, sofrendo do mesmo desânimo por causa das tempestades, protestou publicamente: “Bendito sea el carajo de mi señor Jesu Christo que agora mija sobre mi”.
Blasfemava-se tanto por causa das chuvas como por causa da seca. Em Pernambuco, numa região de poucas águas, Álvaro Pires protestou contra a ausência de chuvas vociferando contra Deus: “Ao diabo a lua e aquele que a criou!”. Filipe Tomás de Miranda, furioso, blasfemou contra Jesus, Maria e o sacramento da comunhão, mandando à merda Cristo, a hóstia e a Virgem Maria. Igualmente descontente com os católicos, o cristão-novo Simão Pires Tavares exclamou: “Merda para a escola de Jesus e a mesma sujidade para Jesus”. Antônio Nunes, marinheiro, durante uma jogatina jurou duas vezes “pelo filho de Jesus”, e o sapateiro Frutuoso Antunes declarou que a Virgem Maria não era virgem coisa nenhuma.
Pôr em dúvida a virgindade de Maria era uma das blasfêmias mais comuns, e também uma das mais graves, segundo os inquisidores. Desde o século IV, a tradição cristã prega a pureza da mãe de Jesus. Os teólogos explicitam, com base nos Evangelhos de Mateus e Lucas, que Maria permaneceu virgem inclusive durante e depois do parto.
Além das blasfêmias clássicas, havia também pequenos e bizarros incidentes que eram igualmente considerados faltas passíveis de punição. Fernão Pires, que nem padre era, batizava os cachorros e dava-lhes nomes, simulando o rito batismal. Numa época em que a Igreja católica estipulava jejum de 24 horas antes da comunhão, Jerônimo Nunes se empanturrou de bananas com cana-de-açúcar e logo depois foi para a missa. Guiomar de Oliveira, mulher de um sapateiro, para obter a afeição de seu cônjuge, utilizava as palavras da consagração durante o ato sexual.
Nas listas dos autos-de-fé (rituais de penitência pública e execuções), onde eram registradas as condenações dos réus, encontram-se, além das blasfêmias, os sacrilégios — irreverência contra objetos sagrados. Foi o caso de Luís Vaz de Paiva e seu sobrinho, que furtaram um crucifixo da capela de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia, para assustar as pessoas que passavam à noite na rua. O crucifixo, aliás, prestava-se a mil e uma utilidades, em práticas criativas, mas nada nobres. Diogo Castanho tinha o hábito de colocá-lo na cama quando se deitava com uma negra. Isidoro o amarrou numa goiabeira e lhe deu várias chibatadas. João Nunes, comerciante de Pernambuco, fazia suas necessidades sobre ele.
Todo esse despudor diante de símbolos sacros não significa, necessariamente, uma postura de revolta ou descrença em relação à Igreja. Revela, sim, uma extrema familiaridade das pessoas comuns com Deus e sua corte celestial, característica de uma sociedade saturada do sagrado. A blasfêmia é parte integrante e obrigatória do cristianismo, um componente ativo dessa cultura. O Ocidente cristão dos séculos XVI e XVII era a “civilização da blasfêmia”, nas palavras do historiador Jean Delumeau. Baseado em numerosos testemunhos da época, ele mostra que, num tempo de grande instabilidade psíquica, os indivíduos passavam constantemente de um extremo a outro: da piedade ao ódio e da violência ao arrependimento. Um fiel devoto podia, num momento de cólera, renegar Deus, e no instante seguinte ajoelhar-se, arrependido, aos pés do altar.
Mas, para a Igreja, esses atenuantes não existiam. A blasfêmia era encarada como o desprezo por Deus, desejado pelo pensamento e manifestado pela palavra ou pela ação. Como tal, podia ser castigada pelo juiz eclesiástico (que eram padres inquisidores), ou pelo juiz secular, que se ocupava dos crimes relacionados às legislações do rei. Ou até pelos dois, visto que uma sentença não anulava a outra. Em Portugal, as punições eram mais rígidas e seguiam um ritual já consagrado na prática. No Brasil, os blasfemadores geralmente eram advertidos e reconciliados. Nos casos mais graves, o acusado era enviado para a Inquisição de Lisboa, onde era tratado como todos os demais réus portugueses.
De modo geral, as penas iam de advertências e encarceramentos até açoites, banimentos e mesmo castigos espirituais, como ir a peregrinações e fazer rezas. Além disso, os blasfemadores deveriam usar publicamente, no momento do auto-de-fé, uma mordaça — símbolo da interdição da palavra ímpia: a boca representava o Verbo, a palavra divina que permite o sopro que é o espírito de Deus.
Ainda assim, os atos eram julgados de acordo com vários níveis de gravidade, segundo as palavras pronunciadas e as circunstâncias, e por isso deveriam ser avaliados caso a caso. Aqueles associados a indivíduos de comportamento incontrolado, que se rebelavam contra a autoridade da Igreja e negavam os dogmas do catolicismo, eram diferentes dos pronunciados de forma irrefletida, que haviam entrado no uso corrente da linguagem cotidiana, como pequenos xingamentos proferidos no trabalho, nas tabernas, nos cabarés e nas casas de jogos.
As blasfêmias na colônia indicam a adaptação da cultura popular européia ao contexto brasileiro. Aqui elas adquiriram matizes próprios, como comer bananas ou cana-de-açúcar, alimentos inexistentes na paisagem européia, antes da missa ou pendurar a cruz numa goiabeira, como prova de insatisfação com Deus e com a Igreja. Os detalhes podem ser brasileiros, mas a raiz é européia. Em compensação, as práticas indígenas de enfeitar o corpo com pinturas ou marcando nele cicatrizes, assim como a adoração de certas divindades pagãs, provavelmente eram inéditas para os inquisidores. Era difícil avaliar até que ponto esses rituais, que tinham aspectos religiosos contrários ao catolicismo, podiam ser considerados blasfêmias. Muitas vezes, o próprio índio batizado, que deveria ser em tudo um bom cristão, voltava a praticar ritos pagãos, desafiando a ortodoxia da Igreja. Um desvio ao qual os emissários do Santo Ofício certamente não estavam habituados.
Apesar de todas as distinções e ambigüidades, a luta contra o pecado e o pecador deveria continuar. Afinal, blasfemador não era só aquele que se arriscava a desencadear a cólera divina: ele representava também uma ameaça à frágil harmonia social de um mundo que apoiava seus pilares sobre o solo ainda firme da religião.
Geraldo Pieroni é professor de História da Universidade Tuiuti do Paraná e autor do livro Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredados no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2005.
Saiba Mais - Livros:
LAPA, José Roberto do Amaral (apresentação). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará. Petrópolis: Editora Vozes, 1978.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989.
VAINFAS, Ronaldo (organizador). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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