Os médicos não sabiam o que era, o governo não sabia como controlar, a imprensa não perdoava ninguém: a trágica epidemia de febre amarela que devastou o Rio no verão de 1850
Monique de Siqueira Gonçalves
As décadas de 1840 e 1850 marcaram a época dos grandes bailes na Corte, nos quais se ostentava luxo e riqueza. Havia, de fato, motivos para festejar: o comércio era impulsionado por bons ventos que faziam a economia crescer intensamente. Mas é muitas vezes diante de um clima de otimismo generalizado que o imprevisível se faz notar – e, neste caso, ele tinha a forma microscópica de um vírus.
A epidemia de febre amarela que se abateu sobre a cidade em 1850 ceifou, de acordo com estatísticas oficiais, 4.160 vidas só naquele ano (mas alguns estudos estimam que os óbitos possam ter chegado a 15 mil). Enquanto médicos e jornalistas debatiam publicamente possíveis soluções, o governo imperial mostrava-se cada vez mais incapaz de lidar com um problema dessa ordem.
Segundo os cálculos de José Pereira Rego (1816-1892), importante médico da Corte, a doença teria acometido, ao todo, cerca de 90.000 pessoas, mais de um terço da população carioca, estimada, por um relatório do ministério do Império da época, em 266.466 habitantes. Os próprios médicos estavam longe de um consenso sobre a natureza da febre amarela. De onde vinha? Como se propagava? Era contagiosa? Infecciosa? Qual era a cura? Como evitar que a cidade fosse atingida por novas epidemias? Perguntas como estas eram estampadas diariamente nas páginas dos jornais, que começavam a cobrar, de forma mais agressiva, soluções para o problema.
A epidemia causou grandes transtornos à cidade, imobilizando o comércio nos portos e nas ruas, atrasando a distribuição de jornais e outros produtos, e até mesmo paralisando as atividades do governo. Mesmo os trabalhos da Câmara dos Deputados e do Senado foram suspensos durante os meses de março e abril, pico do surto, pois muitos de seus membros estavam doentes.
Suspeitava-se que a moléstia fora trazida por um vapor vindo da Bahia, onde já havia provocado muitas vítimas. Em um relatório, o presidente da Província da Bahia afirmava que a febre amarela viera de Nova Orleans, em uma embarcação norte-americana. Outros acreditavam que a doença seria oriunda de navios negreiros que teriam trazido o germe da costa da África. Havia alguns também que culpavam a falta de salubridade das ruas da capital, com suas exalações pútridas, ativadas pelo forte calor daquele verão.
Para os navios que chegavam ao Rio, foi ostensivamente adotado, de janeiro a março daquele ano, o sistema de quarentenas: todas as embarcações ficavam impedidas de atracar nos portos da cidade durante quarenta dias. Sendo liberadas somente depois que se constatasse que não havia entre os tripulantes nenhum suspeito de estar afetado pela moléstia.Monique de Siqueira Gonçalves
As décadas de 1840 e 1850 marcaram a época dos grandes bailes na Corte, nos quais se ostentava luxo e riqueza. Havia, de fato, motivos para festejar: o comércio era impulsionado por bons ventos que faziam a economia crescer intensamente. Mas é muitas vezes diante de um clima de otimismo generalizado que o imprevisível se faz notar – e, neste caso, ele tinha a forma microscópica de um vírus.
A epidemia de febre amarela que se abateu sobre a cidade em 1850 ceifou, de acordo com estatísticas oficiais, 4.160 vidas só naquele ano (mas alguns estudos estimam que os óbitos possam ter chegado a 15 mil). Enquanto médicos e jornalistas debatiam publicamente possíveis soluções, o governo imperial mostrava-se cada vez mais incapaz de lidar com um problema dessa ordem.
Segundo os cálculos de José Pereira Rego (1816-1892), importante médico da Corte, a doença teria acometido, ao todo, cerca de 90.000 pessoas, mais de um terço da população carioca, estimada, por um relatório do ministério do Império da época, em 266.466 habitantes. Os próprios médicos estavam longe de um consenso sobre a natureza da febre amarela. De onde vinha? Como se propagava? Era contagiosa? Infecciosa? Qual era a cura? Como evitar que a cidade fosse atingida por novas epidemias? Perguntas como estas eram estampadas diariamente nas páginas dos jornais, que começavam a cobrar, de forma mais agressiva, soluções para o problema.
A epidemia causou grandes transtornos à cidade, imobilizando o comércio nos portos e nas ruas, atrasando a distribuição de jornais e outros produtos, e até mesmo paralisando as atividades do governo. Mesmo os trabalhos da Câmara dos Deputados e do Senado foram suspensos durante os meses de março e abril, pico do surto, pois muitos de seus membros estavam doentes.
Suspeitava-se que a moléstia fora trazida por um vapor vindo da Bahia, onde já havia provocado muitas vítimas. Em um relatório, o presidente da Província da Bahia afirmava que a febre amarela viera de Nova Orleans, em uma embarcação norte-americana. Outros acreditavam que a doença seria oriunda de navios negreiros que teriam trazido o germe da costa da África. Havia alguns também que culpavam a falta de salubridade das ruas da capital, com suas exalações pútridas, ativadas pelo forte calor daquele verão.
Alguns jornais se posicionaram mais uma vez criticando a medida mas os principais inconformados eram os comerciantes estrangeiros: durante a quarentena, as mercadorias também ficavam retidas nos navios, o que causava imensos prejuízos ao comércio externo. Péssimas condições higiênicas, falta de mantimentos, contínua exposição ao sol, desalento causado pela permanência forçada no mar: os embaixadores de países como Portugal e Inglaterra denunciaram a situação em que se encontravam os tripulantes retidos. Marinheiros doentes, estrangeiros ou naturais, foram isolados na Ilha de Bom Jesus, onde os navios aportavam, evitando que entrassem na cidade até que estivessem completamente restabelecidos.
Sem conhecer a natureza da Febre Amarela, era quase impossível controlá-la. Leigos e acadêmicos debatiam intensamente se a doença era contagiosa ou infecciosa. Essa discussão não se limitava aos espaços acadêmicos, mas invadia também as páginas dos jornais. Os médicos partidários da primeira tese defendiam as quarentenas, pois desta forma evitavam que os doentes entrassem em contato com indivíduos sãos. Outros, convencidos de que o mal era infeccioso, clamavam por medidas de higiene pública para sanear o ambiente imundo das ruas. Acalorados debates, tanto nos editoriais, quanto nos artigos e nas cartas, comentários irônicos e críticas aos médicos, incapazes de chegar a uma conclusão clara sobre a origem da doença, davam a tônica de muitas matérias.
Diante de tamanha pressão, o governo central convidou vários membros da Academia Imperial de Medicina e professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para formar a Comissão Central de Saúde Pública. O órgão ficou responsável pela formulação de um Regulamento Sanitário dirigido ao combate emergencial da moléstia. Algumas das medidas tomadas pela Comissão foram de tipo preventivo, como incentivos à população a manter a higiene corporal por meio de banhos freqüentes, caminhadas leves pela manhã, e cultivo de bons hábitos, evitando excessos na ingestão de alimentos, no uso das bebidas e nas relações sexuais. Tudo a fim de evitar o desequilíbrio corporal, que favorecia o adoecimento, segundo as concepções médicas em voga no século XIX.
Além disso, o regulamento proibia os dobres de sinos, que informavam as mortes e só faziam aumentar o desespero da população, e vetava a publicação de matérias nos jornais, referentes à epidemia, sem a autorização da comissão. A proposta de censura prévia à imprensa não demonstrava somente a preocupação dos médicos da Comissão com a intensidade dos debates sobre a natureza da doença. As publicações diárias punham constantemente em xeque a competência e a eficácia do conhecimento médico acadêmico, que até o momento não apresentara nenhuma solução real para a epidemia, e questionavam também a eficácia das medidas tomadas pela Câmara Municipal, responsável pela limpeza das ruas, e pelo governo imperial.
Se a doença poderia ser causada pela exalação de miasmas, advindos de corpos e alimentos perecíveis em putrefação, porque não investir na higiene da cidade? Os jornais denunciavam a imundície das praias; as valas a céu aberto nas estreitas ruas do centro da cidade; o mau cheiro das igrejas onde se realizavam enterramentos e a péssima organização destes nos cemitérios das Ordens Terceiras, demasiado próximos às residências.
Os periódicos da Corte seriam também arena de encarniçadas disputas por conhecimento e clientela dentro da própria classe médica. De um lado os médicos acadêmicos, ou “alopatas”, com seus remédios que produziam efeitos contrários aos das doenças, do outros os “homeopatas”, que pregavam o uso terapêutico de soluções muito diluídas de substâncias com efeitos semelhantes àqueles que o doente já apresentava. Enquanto os primeiros se empenhavam em garantir o monopólio da categoria, a homeopatia, que dava seus primeiros passos por aqui, era muito bem acolhida pelos cariocas. As incertezas deixadas pela medicina oficial abririam espaço para a expansão dos homeopatas, que cobiçavam uma clientela mais seleta, formada pela pequena parte da população que sabia ler e tinha acesso aos jornais.
O mercado de remédios, que ganhara fôlego desde fins da década de 1840, decolou com a chegada da febre amarela. Os medicamentos de fórmula desconhecida e secreta se multiplicaram rapidamente. De pequenos retângulos pretos com diminutas letras brancas, presentes até a década de 40, os anúncios de remédios passaram a ocupar mais de uma coluna, com o fundo neutro, letras negras e bem maiores e diagramação mais ousada, já no início dos anos 50.
Promessas de curas infalíveis se multiplicavam, atraindo a população e gerando altos lucros. A “Salsaparrilha de Sands” foi o remédio que alcançou a maior fama com a eclosão da epidemia: seus anúncios na imprensa foram aumentando em número e tamanho, até depois do surto e nas décadas seguintes, ocupando, por vezes, uma página inteira, o que exigia altos investimentos dos fabricantes. O “Lírio do Japão” era outro exemplo: chamado de panacéia universal, apresentava em sua propaganda a referência a uma "cura infalível" para uma enorme variedade de doenças. Alguns médicos alopatas apelaram muitas vezes a Comissão e a Câmara Municipal pela proibição de tais anúncios nos jornais. Apesar dos protestos, as salsaparrilhas e outros remédios não perderam o espaço na imprensa.
Em 1851, a Junta Central de Higiene Pública, que substituiu a antiga Comissão, proibiu, em seu regulamento, a fabricação de remédios de fórmula desconhecida. Entretanto, esta seria apenas uma vitória legal. Para espanto geral, muitos dos membros da Junta e da própria Academia Imperial de Medicina, e até mesmo seu presidente, Francisco de Paula Cândido (1805-1864), permitiram que seus nomes fossem publicados nas propagandas em apoio ao uso da salsaparrilha, nos anos seguintes.
Entre os anúncios nos jornais, se destacavam também aqueles sobre as “Barcas de Banho", como “locais próprios para a limpeza do corpo, necessária ao equilíbrio corporal e visando a cura e até mesmo a prevenção de moléstias”. Em frente ao Hotel Pharoux, no cais, ficava estacionada uma delas, para que os hóspedes do estabelecimento pudessem facilmente "valer-se da barca apropriada para banhos de água salgada, sem mudar de casa, abarracar nas praias, ou expor-se às vistas dos curiosos".
Apenas no Rio de Janeiro, sucessivos e repetidos surtos de febre amarela mataram, até 1889, cerca de 28.000 pessoas, segundo os relatórios do Ministério do Império. Durante todo esse tempo, a imprensa ainda seria o palco de muitas disputas e reivindicações. Assuntos como a imundície das ruas, a multiplicação de remédios milagrosos e a disputa pelo monopólio profissional da medicina no país continuariam sem solução por todo o século XIX. A emergência da epidemia de febre amarela no Rio acabou pondo em evidência a insalubridade da cidade e a ineficácia das medidas implementadas pelas autoridades diante de uma doença tão avassaladora.
Monique de Siqueira Gonçalves é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz / COC – Fiocruz e autora da Dissertação de Mestrado A febre amarela, o poder público e a imprensa durante a década de 1850, no Rio de Janeiro. RJ: UERJ, 2005.
Saiba Mais
Cobrindo a epidemia - Trechos de jornais dão a medida das discussões e das polêmicas
Bibliografia:
BENCHIMOL, Jaime. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pausteriana no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; UFRJ, 1999.
CHALOUB, Sidney. Cidade Febril – Cortiços e epidemias na corte imperial. SP: Companhia das Letras, 1996.
EL-KAREH, Almir Chaiban. “Estado e assistência pública: as epidemias dos anos de 1850 na cidade do Rio de Janeiro” In: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), Anais da XVIII Reunião. Rio de Janeiro, 1998.
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. RJ: Ed. Civilização Brasileira, 1966.
Filme: Sonhos Tropicais, Direção de André Sturm, Pandora Filmes, 2002
Revista de História da Biblioteca Nacional
2 comentários:
Muito interessante o tema. E maIS INTERESSANTE É RECONHECER NA HISTÓRIA A REPETIÇÃO DOS FATOS.
Ainda existe a febre amarela. As bactérias estão cada vez mais resistentes. Se antes a penicilina serviu de bálsamo, hoje de nada vale. Os governos e os laboratórios , ao meu ver, estão obsoletos em relação às enormes epidemias que apenas uma guerra, pode deflagrar o alastramento.
Muito bom o post!
Parabéns!
Abraços
Mirse
Tem selinho da "Proximidade" la para vc.
beijooo.
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