sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A noite dos condenados


Relatos descrevem os últimos dias dos membros da Conjuração Baiana, enforcados, por ironia do destino, em uma praça chamada Piedade
Luiz Henrique Dias Tavares

Eles, os que foram enforcados, tiveram seus corpos esquartejados na tarde de 8 de novembro de 1799 na cidade do Salvador, capitania da Bahia. Eram quatro: dois soldados profissionais, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas de Amorim Torres, um aprendiz de alfaiate, Manuel Faustino dos Santos Lira, e um mestre alfaiate, João de Deus do Nascimento – todos pardos e filhos ou netos de escravos. Os membros da Conjuração Baiana haviam sido presos entre agosto e setembro de 1798 e tiveram os derradeiros momentos relatados por um padre que os assistiu em seus instantes de agonia.

Durante os catorze meses que ficaram presos nos cubículos situados nos porões do velho prédio da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, sofreram repetidos interrogatórios, tendo sido acusados de crime de rebelião. Os quatro conjuradores foram reunidos ao entardecer do dia 5 de novembro de 1799 para ouvir a sentença da condenação: deveriam morrer na forca armada na Praça da Piedade, assim denominada em homenagem a Nossa Senhora da Piedade. Em seguida, com grilhões nos pés, foram levados para o Oratório da Câmara. Ali eles permaneceram por três noites: 5, 6 e 7 de novembro de 1799.

A forca – chamada de “forca nova” porque ainda não havia sido utilizada – erguia-se em terreno de propriedade dos frades carmelitas descalços. O local das execuções ficava de frente para a igreja que os religiosos construíram – e que permanece ali com a beleza de sua nave e da cúpula branca que a cobre.

Graças aos relatos escritos por um frade carmelita descalço, sabemos como foram os últimos momentos dos condenados. Em seus dois manuscritos, o prior do Convento de Santa Tereza, frei José do Monte Carmelo, fornece detalhes sobre os momentos que antecederam a execução. O primeiro relato se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa sob o título Notícia da execução que se fez na cidade da Bahia em 8 de novembro de 1799 aos libertinos que saíram produzidos na sentença da Relação da sublevação intentada na cidade da Bahia. O segundo manuscrito, Outra relação feita pelo padre frei José do Monte Carmelo, religioso carmelita descalço, está guardado no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


Os dois relatos mostram impressões muito diferentes. A primeira “relação” tem um matiz condenatório que não se repete no outro texto. Neste, o tom é de piedade. Contudo, os dois esboçam igualmente uma dor que não desaparece. Motivado por este sentimento, naquela tarde de 5 de novembro de 1799, frei José do Monte Carmelo subiu as escadas de pedra que levavam dos cubículos nos porões da Câmara Municipal até o Oratório. Como um religioso cristão, sentira-se tocado pela dor que presenciava. Cercado por 20 religiosos, diante da cruz erguida sobre os quatro seres humanos acorrentados por grilhões nos pés e 40 guardas ao lado, com chibatas nas mãos, o frei segurava os quatro condenados com orações.

Frei José do Monte Carmelo não indicou com exatidão a data de cada noite que passou na vigília e na assistência aos condenados. No entanto, supõe-se que os episódios que registrou não ocorreram na noite de 5 de novembro, mas sim nas noites de 6 e 7, mais provavelmente na noite de 7, véspera do dia marcado para as execuções. Foi na noite do dia 7 que os guardas vieram chamá-lo para que assistisse o aprendiz de alfaiate Manuel Faustino dos Santos Lira, um jovem frágil, com o rosto fino marcado pela varíola que o atacara quando menino. Tinha 22 anos e era o mais jovem dos quatro.

Manuel jazia desmaiado, com uma tira de pano apertada no pescoço: tentara se enforcar. Frei José escreveu: “Chegando perto dele, o achamos afogado com a dita tira de pano, já sem sentidos, e cortando esta (que já estava tão unida com a carne que foi forçoso feri-lo para desatar), permaneceu grande espaço como morto, até que, com a água que se lhe deitava pela boca, tornou a si dando um grande suspiro”.

O condenado Manuel Faustino pediu a mão do frade logo que conseguiu falar. Disse ao religioso: “Dê-me sua mão sagrada”, e a beijou. Confessou que trouxera uma tira de pano da prisão, que amarrara uma ponta nos grilhões e a puxara para as suas costas, e com ela bastante distendida enlaçara o pescoço, apertando-a depois com os pés até desmaiar. Contou também que antes tentara o suicídio na cela em que se encontrava enfiando um prego na altura do coração. Ainda o tinha cravado no peito.

O soldado Lucas Dantas foi o segundo. A certa altura da noite de 7, ou na madrugada de 8, ele enfiou repetidas vezes uma colher de prata na garganta. Estava nessa situação desesperada quando chamou frei José e lhe entregou a colher, pedindo que a escondesse para que não caísse nas mãos dos guardas.

O padre foi testemunha também quando o soldado Luís Gonzaga das Virgens e o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento subiram da prisão para o Oratório como se tivessem enlouquecido. O frade escreveu: “Pareciam uns verdadeiros loucos”. Os 20 religiosos carmelitas descalços que os acompanhavam tentaram sem êxito ajudar os guardas a acalmar Luís Gonzaga e João de Deus. Os condenados entraram agitados no Oratório. Não falavam. Luís Gonzaga estava de olhos fechados. Foram chamados dois médicos, que atestaram fingimento. Não era a primeira vez que apresentavam esse comportamento, e nas outras duas vezes em que assim procederam na prisão também haviam sido desmentidos pelos médicos. Apesar do diagnóstico desfavorável, eles continuaram fora de si. Foi por isso que, na hora de descê-los do Oratório para formarem o cortejo que os levaria até a forca, os guardas os amarraram nas cadeiras em que foram conduzidos. Desceram os dois, Luís Gonzaga e João de Deus, carregados, e Lucas Dantas e Manuel Faustino, andando.

Somaram-se a eles no cortejo outros sete condenados, cuja sentença dada pelo Tribunal da Relação os obrigava a assistir ao suplício dos enforcados, depois de sofrerem 100 chibatadas cada um no pelourinho erguido no Largo do Terreiro de Jesus. O veredicto estabelecera também que os sete presos seriam embarcados em navios da rota da África e abandonados à própria sorte em diferentes locais da costa ocidental da África que não fossem do domínio da rainha de Portugal, D. Maria I. Esta pena foi rigorosamente cumprida, como provam as declarações dos comandantes de navios encarregados de fazer valer a ordem dos juízes do Tribunal da Relação.

Frei José do Monte Carmelo narra que Luís Gonzaga já estava com a corda no pescoço, o carrasco colocando-lhe o capelo da alva – o capuz que os condenados vestiam na hora do enforcamento –, quando apresentou sinais de ter recuperado a consciência. Em seguida, perguntou onde estava e, antes de ouvir a resposta, pediu para se confessar. O frade galgou a escada do patíbulo e escutou Luís Gonzaga pedir que lhe abrissem os olhos e o deixassem descer para uma verdadeira confissão. A descrição está na “relação” guardada no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Frei José continua a narrativa informando que o juiz de fora que presidia as execuções, João da Costa Carneiro de Oliveira, ao escutar o pedido de Luís Gonzaga, concedeu que este descesse da forca. A ordem das execuções foi alterada. Manuel Faustino ocupou o lugar de Luís Gonzaga, sendo o primeiro a cair no alçapão. Lucas Dantas foi o segundo.
Frei José escreveu que, antes de descer do patíbulo, já sem a corda no pescoço, Luís Gonzaga se dirigiu ao povo reunido que assistia à cerimônia por trás do quadrado formado por três fileiras de soldados armados. O texto do frade reproduz a fala de Luís Gonzaga: “Sigam a lei do verdadeiro Deus, a religião católica, que é só a única verdadeira, tudo o mais é engano; quando eu a servia, sem dúvida alguma vivia eu tão bem, ainda que pobre, talvez independente, porém depois que eu dei ouvidos a uns cadernos, a um Voltaire, a um Calvino, a um Rousseau, deixei o que não devia e por isso vim parar neste lugar. Senhores, quem quiser ser mau, seja só por si, e não convoque os mais aqui em que dão liberdade, olhai Senhores, quem quizer Senhores todos, falo geralmente com todos. Liberdade e igualdade são isto” – e apontou para a forca. Em seguida, continuou: “Sendo tantos os culpados no mesmo delito, e que estes quatro por desvalidos pagarão com pena última, Deus que olha para os pequeninos, e abraça a estes que olham do desprezo, permitiu que a Sua Misericórdia se fizesse sobre eles”.
Frei José desceu da forca com Luís Gonzaga. Estava escutando-o quando ergueu os olhos para a forca. Ao ver que João de Deus “permanecia impenitente”, gritou-lhe: “João de Deus, olha para Gonzaga, vê a dor e as lágrimas com que está fazendo a sua confissão, não queiras ser o único desgraçado”. Luís Gonzaga acompanhou o religioso no mesmo pedido. Pouco depois, ao voltar para a forca e ter a corda colocada no pescoço, Luís Gonzaga exclamou: “Ajudai-me, padres, nesta hora. Jesus me olha” – e caiu no alçapão. João de Deus chorava. Frei José se aproximou dele e perguntou por que chorava. João respondeu: “Por ser a morte de Gonzaga tão ditosa”. Ao que o frade retrucou: “Não digas isso, filho, porque podes ter outra semelhante.” João de Deus foi o quarto enforcado.

À execução seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de Lucas Dantas foi degolada – como também seriam am dos outros três – e depois espetada em um poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços foram expostos no caminho do Dique para o Largo de São Francisco, onde residira. No mesmo local foi colocada a cabeça de Manuel Faustino dos Santos Lira. A de João de Deus foi exposta na Rua Direita do Palácio, hoje Rua Chile; suas pernas, os braços e o tronco foram espalhados pelas ruas do Comércio, na Cidade Baixa. A cabeça e as mãos de Luís Gonzaga foram pregadas na forca, a cabeça espetada no patíbulo.

O calor dos dias 9, 10 e 11 apressou a decomposição dos corpos. Urubus desceram sobre eles. No dia 11, os Irmãos da Santa Casa de Misericórdia pediram ao governador, D. Fernando José de Portugal, que ordenasse sua retirada para o bem da saúde de todos que habitavam a Cidade do Salvador. No entanto, teriam permanecido em exibição pública até a madrugada do dia 15, quando foram retirados e enterrados em locais até hoje desconhecidos.

Luiz Henrique Dias Tavares é professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e autor do livro Da sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia (Unesp, 2003).
Revista de História da Biblioteca Nacional

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