quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia


Rodrigo Faustinoni Bonciani
Doutorando em História Social - FFLCH/USP


PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

A literatura sobre os candomblés brasileiros enfatizou a análise do culto dos orixás, dos povos iorubá-falantes, dos terreiros nagôs. Essa tendência, observada desde Nina Rodrigues, se consolidou com os trabalhos de Pierre Verger e de outros autores. O livro de Luis Nicolau Parés analisa o culto dos voduns, dos povos gbe-falantes, dos terreiros jejes. O autor pretende inverter a ênfase no binômio nagô-jeje.

O livro pode ser dividido em duas partes. Os quatro primeiros capítulos estabelecem um panorama macro-histórico que analisa o processo de formação da etnicidade jeje, da África até a Bahia, e destaca a importância dos cultos de voduns na formação do candomblé brasileiro. Os quatro capítulos seguintes se dedicam à micro-história de dois terreiros jejes baianos (o Bogum de Salvador e o Seja Hundé de Cachoeira) e procuram fazer uma etnografia do panteão e do ritual vodum. Entre a macro e a micro história, o autor analisa a articulação das identidades, das dinâmicas associativas e das relações de poder, tripé fundamental para entendermos o processo de colonização do Atlântico e seus desdobramentos contemporâneos. Parés enquadra seu estudo entre a história e a antropologia da religião afro-brasileira, estabelecendo um cruzamento crítico na utilização de fontes escritas e orais.

A etnicidade jeje é entendida por meio de uma perspectiva relacional e multidimensional, constituída historicamente por influência do contexto africano, da ação dos europeus e de acordo com as diferenças regionais brasileiras. Destaca três elementos na constituição dessa identidade: as zonas ou portos de embarque na África, a referência a uma área geográfica comum e relativamente estável de moradia e as semelhanças lingüístico-culturais.

Reconstituídas as migrações dos povos adjas-ewés, o autor adota a expressão de Hounkpati Capo de uma área gbe falante. O termo "gbe" significa língua para um conjunto de povos (no norte do atual Togo, República do Benim e sudoeste da Nigéria), que chama de voduns as divindades que cultua. A área do vodum praticamente coincide com a área gbe e foi submetida ou sofreu influência do reino do Daomé a partir do século XVIII. Com a consolidação e centralização política do Daomé houve um processo de miscigenação entre os povos da área gbe, além da assimilação de diversos cultos com a imposição de um modelo hegemônico e hierárquico de instituição religiosa. Esse processo seria uma das razões para a assimilação da nação jeje como identidade coletiva no Brasil.

Na Bahia dos séculos XVIII e XIX os negros desenvolveram estratégias de identidade; o termo jeje foi assimilado para o relacionamento com a sociedade escravista e para o diálogo interafricano, enquanto que as subnações (mahis, savalus, agonlins, mundubis etc.) foram utilizadas no âmbito interno dos gbe-falantes. O autor entende que o etnônimo idjè ou o topônimo Adjadché foi transformado pelos comerciantes baianos em jeje e passou a denominar uma pluralidade de povos adjas, enquanto que no Benim manteve-se restrito aos guns do reino de Porto Novo.

O conceito de nação, que está na base da construção das identidades e etnicidades afro-ameríndias, é um fato colonial, mesmo que utilize elementos autóctones para a definição das mesmas. A perspectiva relacional, multidimensional ou dialógica utilizada no livro pode encobrir esse fato. As "nações" deveriam estimular ou criar antagonismos entre os diferentes grupos autóctones, abrindo caminho para as mediações européias. O destaque das semelhanças lingüístico-culturais entre povos tão diversos, homogeneizados pelo culto aos voduns e pela generalização gbe-falantes, e a construção de uma trajetória histórica linear, das migrações de Oduduwa até a Bahia, permitem uma naturalização da identidade, sua territorialização e a legitimação de mediações políticas, econômicas e culturais por meio de determinadas lideranças. Os processos de domínio podem ser dialéticos, mas não dialógicos. A motivação do termo jeje é político-econômica e é nessa chave que o conceito pode ser desconstruído. Mesmo relativizando o termo jeje, Parés acaba por adotá-lo, resignificando-o e reinventando-o.

As dinâmicas associativas também foram processos privilegiados para a construção dessas identidades. O autor destaca as irmandades católicas, os batuques e os candomblés. Ele entende que a estrutura social e ritual das organizações religiosas afro-brasileiras se tornou cada vez mais complexa e descreve os seguintes momentos: atividades individualizadas e independentes representativas de fragmentos de cultura religiosa; formação das primeiras congregações religiosas de caráter familiar ou doméstico; surgimento de congregações extra-familiares. Esta evolução estaria marcada pela ampliação das divindades cultuadas, pela estabilidade espacial e do calendário litúrgico e pela consolidação do complexo assento-ebó.

É no contexto das irmandades que a eficácia das denominações dos negros se revela. Sua função era estabelecer antagonismos entre os africanos e os crioulos, entre os boçais e os ladinos, e entre as diferentes "nações" africanas. Essa construção fica evidente nas posições das autoridades baianas frente aos folguedos dos escravos. Segundo o conde dos Arcos, "esses 'ajuntamentos' que reagrupavam os escravos por nações contribuíam para a sua divisão interna, separando os diversos grupos étnicos", e, para o conde da Ponte, a "festa contribuía para a elaboração de tensões" (apud Parés, [?] p. 129). Parés contrasta a postura tolerante do primeiro com a repressiva do segundo; interessa-me destacar o fundo comum dessas posições: as "nações", construídas no contexto do tráfico de escravos, passam a ter uma correlação com as práticas sociais e com as dinâmicas associativas; a "nação" inventada se transforma em "nação" vivida.

Outra contribuição de A formação do candomblé é repensar o binômio assimilação-resistência, indicando que esses elementos são tendências complementares e não antagônicas. Parés indica, por meio da análise do jornal O Alabama, as relações estreitas entre a polícia, membros do exército e alguns dirigentes dos candomblés, além da importância das congregações religiosas como fonte de votos, principalmente para os conservadores. No século XX, o autor destaca como principais períodos de ressurgimento do candomblé os anos 1930 e 1970, o primeiro relacionado a Vargas e ao Estado Novo, o segundo à ditadura militar e a Antônio Carlos Magalhães. Mesmo assim, termina por adotar a idéia de resistência assumida pela nova historiografia: "No contexto dos africanos e afro-descendentes no Brasil, o campo da religião, das crenças e das práticas rituais associadas ao mundo invisível parece ter sido o domínio por excelência da resistência cultural" (p. 95).

No final do capítulo 4 apresenta-nos uma das motivações centrais do seu trabalho: inverter a ênfase no binômio jeje-nagô, "questionando a tradicional interpretação vigente nos estudos afro-baianos que têm privilegiado o pólo nagô" (p. 157). O autor analisa as dinâmicas associativas e identitárias na Bahia e na África, no final do século XIX, o destacamento da tradição nagô-ketu no candomblé baiano e o papel dos intelectuais nesse processo.

Do ponto de vista macro-histórico, não são analisadas as disputas entre a França e a Inglaterra em relação às áreas de influência no Rio de Janeiro, Bahia e África ocidental. Durante o século XVIII os ingleses apoiaram os comerciantes baianos e o rei do Daomé, muitas vezes em detrimento de Portugal. A partir do século XIX, a Inglaterra favoreceu a centralização política no Rio de Janeiro e as elites econômicas do sudeste brasileiro. Os baianos se opuseram à esse projeto de independência e a política de combate ao tráfico de escravos acirrou a posição anti-britânica. Ora, a disputa colonial franco-inglesa fortaleceu o antagonismo entre nagôs (iorubá-falantes, que cultuam os orixás) e o Benim, e entre jejes (gbe-falantes, que cultuam os voduns) e a Nigéria [?]. Há, portanto, na Bahia, a rejeição ao vínculo jeje britânico e a valorização do vínculo nagô francês. Esse nagocentrismo foi reafirmado nos momentos de embate entre o nacionalismo brasileiro e o regionalismo baiano: final do século XIX (fim legal da escravidão e advento da República); entre as décadas de 30 e 50 do século XX; e durante a ditadura militar. O que me parece curiosíssimo é o fato de Luis Nicolau Parés ser catalão e ter se formado na Universidade de Londres [?].

Estabelecido o panorama macro-histórico, Parés passa a analisar os terreiros jejes baianos. O Bogum, do candomblé jeje-mahi, teve sua origem entre o final do século XVIII e o início do XIX. Em uma das tradições orais, é associado a escravos mahis aquilombados; em outra versão, aparece associado a Joaquim Jeje, que participou da revolta dos malês e havia adotado o islamismo sem abrir mão do culto dos voduns. Em Cachoeira, a tradição oral também associa o surgimento dos candomblés a antigos quilombos, indicando a possibilidade de terem sido a base para a formação das congregações afro-brasileiras e de sua complexidade organizacional. Sobre o candomblé da Roça de Cima, onde depois foi criado o Seja Hundé, Parés destaca o papel de duas pessoas: Ludovina Pessoa e Zé do Brechó. Ludovina, de origem africana, foi uma das mais importantes mães-de-santo do candomblé; possuía uma rede de relações que se estabelecia entre o Recôncavo, Salvador e a África (fisicamente ou espiritualmente, dizia-se que vinha todo ano da África). Zé do Brechó era um crioulo politicamente influente, conhecedor das práticas religiosas e proprietário de terras; fazia parte de uma elite negra nascente, que se fortalecia com o fim da escravidão. Concluindo o estudo sobre esses terreiros, Parés observa que a etimologia dos mesmos "parece refletir hibridismos étnicos havidos na fundação dos terreiros" (p. 204).

Os terreiros jejes valorizam os vínculos de parentesco para reforçar suas estruturas de poder. Parés mostra que a morte de uma mãe-de-santo muitas vezes levava a conflitos internos na disputa pelo poder no terreiro. É interessante observar que o mesmo processo acontecia nas sucessões dinásticas africanas. Portanto, é preciso analisar o sentido das identidades, as dinâmicas associativas e as relações de poder na perspectiva das sociedades africanas ou afro-brasileiras: como elas se apropriam das identidades e reconfiguram os dispostivos de domínio? A rede social que ligava os terreiros à sociedade também foi um elemento fundamental para a consolidação de suas lideranças. Nesse momento, fica patente a necessidade de se cruzar a macro e a micro-história.

Dentre as transformações observadas atualmente nos candomblés jejes, Parés destaca: a migração de certas lideranças e a criação de novos terreiros no sul do Brasil; a busca pela pureza africana e as viagens para iniciação na África; o predomínio de líderes brancos, principalmente homossexuais; a alteração em aspectos litúrgicos; o problema da terra.

Parés retoma a tese que rompe com a idéia de invenção local do candomblé e entende que os cultos de vodum na África deram origem ao modelo organizacional que foi replicado para os outros grupos étnicos e suas divindades particulares. Segundo o autor, a justaposição de várias divindades num mesmo templo e a organização seriada do ritual, que caracterizam o candomblé contemporâneo, vêm da tradição vodum da área gbe desde pelo menos o século XVIII. Ao mesmo tempo, a diversidade local das divindades, de seus atributos, gênero e funções levam ao questionamento da própria idéia de um panteão, ou panteões jejes. A mesma complexidade se revela na hora de estabelecer uma liturgia jeje: "(…) a diferente origem étnica e afiliação religiosa dos agentes sociais responsáveis pela transferência transatlântica estaria na base de certas variações regionais brasileiras. Esse fato vem salientar que, mesmo dentro da tradição jeje, havia já uma heterogeneidade de práticas religiosas, até agora pouco conhecida" (p. 355).

Os "jejes" não se deixam fixar em uma nação, etnia, tradição, ou matriz africana. A historicidade dessa identidade deve ser analisada na longa duração do colonialismo ou na particularidade de suas apropriações históricas. Quando Parés se debruça sistematicamente sobre essas dinâmicas históricas, particularmente as políticas, ameaça romper com a naturalização da identidade e da matriz africana. Mas seu ponto de partida, o nagocentrismo, e o ponto de chegada, o candomblé jeje, dependem da construção dessa etnicidade. A ambivalência em relação ao termo "jeje" representa o problema central do livro e das relações entre as ciências humanas e as sociedades afro-ameríndias: como descolonizar a relação com as sociedades negras e suas manifestações culturais, econômicas e políticas? Esse é o desafio enfrentado por Luis Nicolau Parés.

Revista de História - USP

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