Voltaire: nascimento dos intelectuais no Século das Luzes
Marcos Antônio Lopes
Doutorando em História - FFLCH/USP
LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995.
Um livro dedicado a Voltaire, e o que é muito melhor, escrito no espírito voltaireano, ou seja, recheado de metáforas cínicas e chistes espirituosos, o que leva muitas vezes a confundir o que vem da parte do biógrafo e o que pertence ao biografado. Trata-se de obra comemorativa, lançada por época das celebrações dos trezentos anos do nascimento de Voltaire, em 1994, e que segundo o editor, "...foi considerado o grande acontecimento literário por ocasião do tricentenário...". De fato, um belo e instigante livro sobre a história intelectual do século XVIII.
Esta biografia do Príncipe das Luzes, que é também quase um romance histórico, tal a habilidade de seu autor em integrar seu objeto em cores vivas a seu próprio tempo, poderia ser resumida da seguinte maneira: a busca frenética do triunfo, a glória literária perseguida a qualquer custo por um homem de admiráveis talentos. Pierre Lepape se encarrega de reconstituir a trajetória do Astro das Letras desde o caso Rohan, o infeliz incidente que levaria o escritor a seu primeiro exílio, os bons anos vividos na Inglaterra, responsáveis por seu amadurecimento intelectual e pelo desenvolvimento de suas preocupações científicas.
O livro começa explorando a grande capacidade voltaireana de se indignar diante do arbítrio, que seria a marca registrada por toda a vida do autor do Cândido. No caso específico do cavalheiro de Rohan, conta-se que o jovem Voltaire havia tomado algumas pauladas sob encomenda, dias após ter respondido de forma insolente às zombarias de um gentilhomme incomodado pelo prestígio de que gozava nos salões parisienses; por esta época, apenas com vinte e quatro anos, ele já era considerado o maior poeta francês de seu tempo! Inconformado com a surra, Voltaire tentou mobilizar os instrumentos da justiça para punir o agressor, mas sem conseguir mais que a carta de seu próprio exílio. Seu enorme talento literário, já reconhecido amplamente em Paris e Versalhes, não bastou para que lhe atendessem nesta pendência, até muito pelo contrário. A lição desse episódio é que nem mesmo um homem da expressão de Voltaire conseguiria romper a barreiras sociais da França aristocrática do século XVIII, apesar de seu já estrondoso renome. Tratava-se de ninguém menos que Monsieur de Voltaire, o homem que já havia conquistado Paris e a corte com sua literatura e seu teatro!
Segundo Lepape, o burguês envaidecido e exageradamente cioso de suas virtudes se equivocava ao esperar que lhe atendessem sobre o caso Rohan: "Tudo foi muito rápido para aquele jovem franzino, enfermiço, nervoso, emotivo, porém visível e espetacularmente brilhante". Em vez de justiça, encontrou desprezo e zombarias por sua insolência ao desejar fazer com que um elemento da nobreza fosse punido simplesmente porque mandara espancar um burguês. Como se referiu ao caso Rohan o bispo de Blois, "seríamos muito infelizes se os poetas não tivessem lombo", o que esclarece sobre o espírito da elite acerca da posição de escritores sem berço. Em resumo, diz Lepape, no século XVIII "surrar um poeta não chegava realmente a ser crime, de modo que Voltaire estava fazendo barulho por muito pouco".
O livro mostra o desenvolvimento do intelectual ainda em seus primeiros estudos, mas já completamente "devorado pela sede de celebridade", como lastima seu antigo confessor no Collège Louis le Grand. Como diria um de seus contemporâneos, La Harpe, por ocasião de sua morte: "Não lhe bastava ser o herói do século, ele desejava ser a novidade do dia". Perfeccionista até o exagero, confessava que era capaz de escrever uma carta em duas horas, mas necessitava de três meses para torná-la peça literária. Em seu fascínio luiscatorziano pela glória, era capaz de sacrificar sua felicidade pessoal pela simples satisfação de ver seu nome em evidência. Infeliz em Berlim, na corte de Frederico II, com quem entrara em contradição ao se ver diante de uma vaidade capaz de rivalizar com a sua, dizia viver no paraíso. Em suas cartas, afirmava não viver na corte do rei, mas privar de sua própria casa. Por falsa humildade, pedia aos amigos que sua felicidade não fosse divulgada entre seus inimigos, estratégia mais que explícita para tornar suas correspondências "confidenciais" em notícias quase instantâneas. De fato, ele soube como ninguém se utilizar da arte da conversação, que foi o seu trampolim para ingressar nos meios refinados da aristocracia; conseguiu agradar aos mais exigentes "árbitros do gosto" de seu tempo: "Dentro dessa bolha Voltaire iria evoluir como um peixe na água". Com efeito, escolheu desde cedo os valores da sociedade de corte, mesmo que aprisionada e desvalorizada por Luís XIV, o que não se alteraria muito com seu sucessor, sob o reinado do qual Voltaire viveu quase toda a sua vida: "Berço por talento, fortuna por espírito, poder por habilidade, ambição política por ambição literária. Pressupondo uma troca equilibrada, Arouet ocupou espontaneamente a sua malha na rede do clientelismo".
Pierre Lepape revela os infortúnios do autor para seguir a carreira das letras, caindo por isso em desgraça diante do próprio pai, que o deserda e manda exilar através de uma lettre de cachet. Desde os vinte anos que nuvens espessas iriam se formar sobre a cabeça de um homem que enfrentaria grandes tempestades sem nunca se deixar abater, e que sempre se ergueu vitorioso sobre os obstáculos colocados a um burguês num mundo que é, por excelência, aristocrático. Na época de Voltaire, a literatura se mostrava como um ofício perigoso, muito mais ainda para um escritor iconoclasta, que através das mais diversas acrobacias literárias a um só tempo arrebatava admiradores e espalhava a inveja, num contexto em que "um verso mais forte bastava para que o autor fosse desterrado pelo resto dos seus dias". A obra acompanha as provações do jovem autor François-Marie Arouet em meio às metamorfoses que o tornariam no aclamado Voltaire, nome que ele mesmo escolheria. Seus sucessivos exílios e prisões por ter tomado o partido da duquesa du Maine, que desejou reviver contra a regência do duque d'Orléans uma nova Fronda são narradas com a minúcia de um detetive. Esta "filiação" até um tanto quanto ingênua iria lhe valer a eterna antipatia de Luís XV, bem como seu exílio de trinta anos de Paris.
Das perseguições que adviriam nasceram seus combates literários e filosóficos que fizeram entrar em cena um Voltaire-estrategista, com um projeto de vida bem arranjado na cabeça, e não mais disposto a ser diversão fácil, uma espécie de macaco de circo de uma nobreza orgulhosa e entediada: "Achava que agora sabia o que devia fazer e não fazer para conquistar a glória sem correr novamente o risco da prisão. Trabalhar muito, se impor com os gêneros nobres, saber que a vida literária era mais um combate do que uma festa e que, se a coragem era necessária, também o eram a prudência e a astúcia, fortalecer as amizades úteis, garantir as mais sólidas proteções e não atacar frontalmente o poder em vigência. Não era ainda uma estratégia, mas já era um catálogo de boas decisões, que daí por diante ele seguiria ao pé da letra".
Queria ser rico, independente, apesar de saber que não poderia viver sem protetores, porque destes dependia seu prestígio, seu acesso a funções dignificantes no Estado monárquico. E apesar de toda a repulsa de Luís XV, ele chegaria a ser nomeado historiógrafo do reino. Pierre Lepape destaca um Voltaire arrivista, especulador financeiro sem escrúpulos, um agiota sovina que agia em parceria com judeus, aos quais abominava praticando exatamente os mesmos atos: "Pode-se ver aí a origem de seu anti-semitismo visceral, que mais tarde ele tentaria transformar em anti-judaísmo filosófico. Achando indigno aquilo que tinha de fazer para obter o ouro, descarregava violentamente sua indignidade em cima do parceiro judeu, que 'não pertencendo a país nenhum, exceto aquele em que ganha dinheiro', é por natureza um traidor, que 'pode muito bem trair o rei em favor do imperador e o imperador em favor do rei'". Sua situação precária durante mais de dez anos desenvolveu nele um "gosto imoderado pelo dinheiro". De fato, Voltaire seria um tipo de Górgias da modernidade, aquele sofista que se enriquecera a ponto de mandar esculpir estátuas de ouro de si próprio; ganhou tanto e em tão pouco tempo com suas operações financeiras na França e no exterior, a ponto de emprestar a juro para príncipes de toda a Europa.
A intenção de Pierre Lepape é servir um Voltaire bem diferente daquele que considera o Voltaire construído pela lenda. Para Lepape, o Príncipe das Letras ascendeu aos píncaros da glória em seu próprio tempo não exatamente pelo caráter combativo de sua filosofia, mas muito antes pelo sucesso de suas peças bem comportadas, que seguiam de perto a tradição de Racine e Corneille, como Édipo e La Henriade: "Aceitava o mundo tal como era, contanto que pudesse encontrar nele um lugar à altura de seu talento. Nenhuma revolta, a não ser aquela que se costuma sentir diante do fracasso, ou diante do grande sucesso de um rival. O sistema de proteção, clientelismo e favorecimento pelos grandes não lhe parecia escandaloso nem indigno da literatura; apenas o achava pouco seguro, aleatório, demasiado à mercê de caprichos e acasos, para que alguém devesse apoiar-se exclusivamente nele".
Em relação à filosofia, só despertou realmente para ela após seu encontro com lorde Bolingbroke, um exilado inglês na França de Luís XV. Até então se interessara apenas pelas letras. Seu exílio na Inglaterra transformou o homem de letras em filósofo. Foi quando descobriu uma palavra-chave de seu vocabulário: tolerância. Descobriu também que um escritor não poderia ser feliz numa monarquia católica. Sua maior amargura foi não poder oferecer La Henriade a Luís XV; isto porque o livro tocava, apesar de ser até bastante elogioso para com Henrique IV, em questões sobre as quais não se devia discutir no século XVIII: religião e política. O poder sabia que estes eram temas que arrebatavam facilmente os corações, abrindo caminho para a discórdia.
Seu exílio na Inglaterra, devido ao caso Rohan, foi um cálice de amargura que ele procurou beber devagar, mas que operou em seus horizontes intelectuais metamorfoses profundas. Seu diálogo direto com Berkeley e os filósofos ingleses levaram-no a descobrir não só a filosofia, mas a incorporar também a história em seu universo de preocupações, da mesma forma como passou a se interessar pela política como tema relevante. Voltaire iria pisar em campos minados pelo Estado absolutista francês, em temas que a monarquia guardava a sete chaves. Surge então o Pedagogo social, o defensor das aspirações da sociedade civil, o criador dos rudimentos do que ficaria conhecido mais tarde como a "opinião pública". Torna-se daí por diante no erudito que encanta seu público usando como britadeira de demolição os próprios textos de seus adversários. Como ele mesmo gostava de expressar, em sua pedagogia do riso cínico, era preciso "ir à casa do inimigo para se abastecer de artilharia".
Desistindo de fazer carreira como escritor na Inglaterra, e retornando à França com a promessa íntima de ser menos desbocado, só conseguiu espalhar atrás de si um rastilho de pólvora. O sucesso de suas Cartas Filosóficas, obra na qual ressaltava o arcaísmo de uma civilização francesa esgotada e a grandeza de uma Inglaterra soberbamente moderna, fê-lo optar definitivamente pela verdade, o que revela sua índole marcada em demasia por um excesso de anseios. Perseguido pela polícia de Paris por suas diatribes literárias, viveu exilado por mais de trinta anos. Primeiramente em Cirey, com Madame du Châtelet. Homem já maduro, esquecera completamente as lições que havia imposto a si mesmo, aplicando golpes sempre muito abaixo da linha da cintura de seus desafetos, que por volta de 1735 contavam-se em número bastante considerável não apenas na França, mas em toda a Europa, e que se multiplicavam com extrema rapidez. É que atacando Voltaire, uma estrela de primeira grandeza, tinhase a chance de se construir uma reputação. Lendo o livro de Lepape tem-se a impressão de que Voltaire talvez fosse o autor talhado para um Como fazer inimigos e afastar pessoas: "Tinha o dom de transformar um confrade em rival, um rival em adversário e um adversário em detrator rancoroso". Ninguém como ele para levar tudo para o lado pessoal: a menor crítica, o mais leve comentário desfavorável, eram tomados como uma ofensa a ser reprimida por sua retórica mais que impiedosa.
Travou dezenas e dezenas destas "batalhas indignas" que só lhes respingavam mais lama. Não era homem de abrir batalhas com luvas de pelica, mas com ganchos certeiros de direita e de esquerda. Batia forte e de frente, revidando com elegância literária e rigor de raciocínio, o que arrasava ainda mais sua reputação junto ao círculo que cortejava eternamente, o aristocrático: "Não era tanto por orgulho pessoal que Voltaire jamais aceitaria ser atacado sem se lançar imediatamente à represália, mas por uma necessidade que se assemelhava à razão de Estado, que dizia respeito à integridade de seu território intelectual, a uma lógica de conquista em que sua glória pessoal se confundia com a da literatura. O que era bom para Voltaire era bom para os homens de letras. Mesmo uma guerra suja, desde que ela lhe permitisse sair vencedor". Em suma, nutriu a "pretensão de encarnar o mundo das letras e levá-lo à independência".
O livro de Lepape revela o intelectual que opta conscientemente por vender seus serviços ao Estado na crença de que, ocupando uma posição estratégica no sistema de hierarquias, pode a partir daí bafejar o mundo com as luzes do espírito. Sempre tencionou ser o pedagogo de testas coroadas, aos quais pretendia levar a filosofia, criando assim os chamados "déspotas esclarecidos". Queria iluminar a cúpula do Estado para lançar fachos de luz sobre a civilização. Mas na monarquia francesa não havia lugar para a aplicação dessa idéia. Luís XV simplesmente não suportava ouvir seu nome. Frederico II pendurou-lhe os guizos dourados que perseguira na França durante tantos anos, o que acabou por desabrochar nele uma crise de consciência: "O sentimento de ser o instrumento de diversão de Frederico II era mais do que podia suportar; e ele era por demais irônico para não se sentir humilhado pelo espetáculo que representava nas cerimônias oficiais, quando se via constrangido a levar no pescoço a grande chave que simbolizava suas funções de camareiro. Tinha ido a Prússia a fim de mostrar ostensivamente todo o brilho que podia se esperar de sua condição de filósofo; mas era grande a dificuldade que enfrentava para o êxito dessa demonstração". Foi quando começou a duvidar da missão civilizadora do rei prussiano, e a querer devolver "...sua famosíssima chave de camareiro...". Chegava ao término a derrota definitiva de uma aliança entre a filosofia e o poder político.
Para terminar, é preciso referir que capítulos importantes dessa obra são dedicados à história do livro no século XVIII, linha de pesquisa inaugurada por Lucien Febvre e Robert Mandrou, retomada e desenvolvida por Roger Chartier, Henri-Jean Martin, Robert Darnton, entre outros. O autor aborda ainda a anarquia do mundo editorial no Século das Luzes, no qual era possível publicar qualquer coisa em nome de quem quer que fosse, o que sempre colocou Voltaire em maus lençóis: editava-se qualquer coisa em seu nome, comprometendo-o ainda mais diante das autoridades. A leitura deste belíssimo livro de Pierre Lepape apresenta-nos ainda uma galeria repleta de personagens muito vivas e atraentes, figuras influentes como o naturalista Buffon, o teórico político Montesquieu, o bibliotecário ilustrado Malesherbes, bem como jovens notáveis e mortos-de-fome em busca de reconhecimento e distinção, Rousseau e Diderot, em seus encontros e desencontros com Voltaire. Digna de nota a metodologia do autor, que seguindo um roteiro cronológico flexível da produção voltaireana, vai revelando como cada conjuntura específica colaborou para a definição dos contornos intelectuais de suas obras. O autor demonstra que parte representativa de sua produção foram as assim chamadas "repostas voltaireanas", ou seja, reações rápidas e contundentes a críticas e comentários que o autor, por sua índole combativa, simplesmente não conseguia tolerar. Destaque para a esfera pública, mas também detalhes de bastidores, Voltaire emergindo de sua vida privada, o "sovina" que não se incomodava em gastar muito, desde que consigo mesmo, que vigiava de perto a correta aplicação de cada níquel com seu conforto e sua alimentação nos últimos anos de Ferney. Aspecto importante a ser levado em consideração são as lutas do movimento filosófico com os poderes constituídos do Ancien Régime, a campanha do caso Calas em que Voltaire destroçou sozinho todo um sistema judiciário injusto e indigno, as estratégias da repressão que procurava abater o impulso criativo do Iluminismo pela força bruta e pela interdição de suas obras.
Revista de História - USP
Marcos Antônio Lopes
Doutorando em História - FFLCH/USP
LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995.
Um livro dedicado a Voltaire, e o que é muito melhor, escrito no espírito voltaireano, ou seja, recheado de metáforas cínicas e chistes espirituosos, o que leva muitas vezes a confundir o que vem da parte do biógrafo e o que pertence ao biografado. Trata-se de obra comemorativa, lançada por época das celebrações dos trezentos anos do nascimento de Voltaire, em 1994, e que segundo o editor, "...foi considerado o grande acontecimento literário por ocasião do tricentenário...". De fato, um belo e instigante livro sobre a história intelectual do século XVIII.
Esta biografia do Príncipe das Luzes, que é também quase um romance histórico, tal a habilidade de seu autor em integrar seu objeto em cores vivas a seu próprio tempo, poderia ser resumida da seguinte maneira: a busca frenética do triunfo, a glória literária perseguida a qualquer custo por um homem de admiráveis talentos. Pierre Lepape se encarrega de reconstituir a trajetória do Astro das Letras desde o caso Rohan, o infeliz incidente que levaria o escritor a seu primeiro exílio, os bons anos vividos na Inglaterra, responsáveis por seu amadurecimento intelectual e pelo desenvolvimento de suas preocupações científicas.
O livro começa explorando a grande capacidade voltaireana de se indignar diante do arbítrio, que seria a marca registrada por toda a vida do autor do Cândido. No caso específico do cavalheiro de Rohan, conta-se que o jovem Voltaire havia tomado algumas pauladas sob encomenda, dias após ter respondido de forma insolente às zombarias de um gentilhomme incomodado pelo prestígio de que gozava nos salões parisienses; por esta época, apenas com vinte e quatro anos, ele já era considerado o maior poeta francês de seu tempo! Inconformado com a surra, Voltaire tentou mobilizar os instrumentos da justiça para punir o agressor, mas sem conseguir mais que a carta de seu próprio exílio. Seu enorme talento literário, já reconhecido amplamente em Paris e Versalhes, não bastou para que lhe atendessem nesta pendência, até muito pelo contrário. A lição desse episódio é que nem mesmo um homem da expressão de Voltaire conseguiria romper a barreiras sociais da França aristocrática do século XVIII, apesar de seu já estrondoso renome. Tratava-se de ninguém menos que Monsieur de Voltaire, o homem que já havia conquistado Paris e a corte com sua literatura e seu teatro!
Segundo Lepape, o burguês envaidecido e exageradamente cioso de suas virtudes se equivocava ao esperar que lhe atendessem sobre o caso Rohan: "Tudo foi muito rápido para aquele jovem franzino, enfermiço, nervoso, emotivo, porém visível e espetacularmente brilhante". Em vez de justiça, encontrou desprezo e zombarias por sua insolência ao desejar fazer com que um elemento da nobreza fosse punido simplesmente porque mandara espancar um burguês. Como se referiu ao caso Rohan o bispo de Blois, "seríamos muito infelizes se os poetas não tivessem lombo", o que esclarece sobre o espírito da elite acerca da posição de escritores sem berço. Em resumo, diz Lepape, no século XVIII "surrar um poeta não chegava realmente a ser crime, de modo que Voltaire estava fazendo barulho por muito pouco".
O livro mostra o desenvolvimento do intelectual ainda em seus primeiros estudos, mas já completamente "devorado pela sede de celebridade", como lastima seu antigo confessor no Collège Louis le Grand. Como diria um de seus contemporâneos, La Harpe, por ocasião de sua morte: "Não lhe bastava ser o herói do século, ele desejava ser a novidade do dia". Perfeccionista até o exagero, confessava que era capaz de escrever uma carta em duas horas, mas necessitava de três meses para torná-la peça literária. Em seu fascínio luiscatorziano pela glória, era capaz de sacrificar sua felicidade pessoal pela simples satisfação de ver seu nome em evidência. Infeliz em Berlim, na corte de Frederico II, com quem entrara em contradição ao se ver diante de uma vaidade capaz de rivalizar com a sua, dizia viver no paraíso. Em suas cartas, afirmava não viver na corte do rei, mas privar de sua própria casa. Por falsa humildade, pedia aos amigos que sua felicidade não fosse divulgada entre seus inimigos, estratégia mais que explícita para tornar suas correspondências "confidenciais" em notícias quase instantâneas. De fato, ele soube como ninguém se utilizar da arte da conversação, que foi o seu trampolim para ingressar nos meios refinados da aristocracia; conseguiu agradar aos mais exigentes "árbitros do gosto" de seu tempo: "Dentro dessa bolha Voltaire iria evoluir como um peixe na água". Com efeito, escolheu desde cedo os valores da sociedade de corte, mesmo que aprisionada e desvalorizada por Luís XIV, o que não se alteraria muito com seu sucessor, sob o reinado do qual Voltaire viveu quase toda a sua vida: "Berço por talento, fortuna por espírito, poder por habilidade, ambição política por ambição literária. Pressupondo uma troca equilibrada, Arouet ocupou espontaneamente a sua malha na rede do clientelismo".
Pierre Lepape revela os infortúnios do autor para seguir a carreira das letras, caindo por isso em desgraça diante do próprio pai, que o deserda e manda exilar através de uma lettre de cachet. Desde os vinte anos que nuvens espessas iriam se formar sobre a cabeça de um homem que enfrentaria grandes tempestades sem nunca se deixar abater, e que sempre se ergueu vitorioso sobre os obstáculos colocados a um burguês num mundo que é, por excelência, aristocrático. Na época de Voltaire, a literatura se mostrava como um ofício perigoso, muito mais ainda para um escritor iconoclasta, que através das mais diversas acrobacias literárias a um só tempo arrebatava admiradores e espalhava a inveja, num contexto em que "um verso mais forte bastava para que o autor fosse desterrado pelo resto dos seus dias". A obra acompanha as provações do jovem autor François-Marie Arouet em meio às metamorfoses que o tornariam no aclamado Voltaire, nome que ele mesmo escolheria. Seus sucessivos exílios e prisões por ter tomado o partido da duquesa du Maine, que desejou reviver contra a regência do duque d'Orléans uma nova Fronda são narradas com a minúcia de um detetive. Esta "filiação" até um tanto quanto ingênua iria lhe valer a eterna antipatia de Luís XV, bem como seu exílio de trinta anos de Paris.
Das perseguições que adviriam nasceram seus combates literários e filosóficos que fizeram entrar em cena um Voltaire-estrategista, com um projeto de vida bem arranjado na cabeça, e não mais disposto a ser diversão fácil, uma espécie de macaco de circo de uma nobreza orgulhosa e entediada: "Achava que agora sabia o que devia fazer e não fazer para conquistar a glória sem correr novamente o risco da prisão. Trabalhar muito, se impor com os gêneros nobres, saber que a vida literária era mais um combate do que uma festa e que, se a coragem era necessária, também o eram a prudência e a astúcia, fortalecer as amizades úteis, garantir as mais sólidas proteções e não atacar frontalmente o poder em vigência. Não era ainda uma estratégia, mas já era um catálogo de boas decisões, que daí por diante ele seguiria ao pé da letra".
Queria ser rico, independente, apesar de saber que não poderia viver sem protetores, porque destes dependia seu prestígio, seu acesso a funções dignificantes no Estado monárquico. E apesar de toda a repulsa de Luís XV, ele chegaria a ser nomeado historiógrafo do reino. Pierre Lepape destaca um Voltaire arrivista, especulador financeiro sem escrúpulos, um agiota sovina que agia em parceria com judeus, aos quais abominava praticando exatamente os mesmos atos: "Pode-se ver aí a origem de seu anti-semitismo visceral, que mais tarde ele tentaria transformar em anti-judaísmo filosófico. Achando indigno aquilo que tinha de fazer para obter o ouro, descarregava violentamente sua indignidade em cima do parceiro judeu, que 'não pertencendo a país nenhum, exceto aquele em que ganha dinheiro', é por natureza um traidor, que 'pode muito bem trair o rei em favor do imperador e o imperador em favor do rei'". Sua situação precária durante mais de dez anos desenvolveu nele um "gosto imoderado pelo dinheiro". De fato, Voltaire seria um tipo de Górgias da modernidade, aquele sofista que se enriquecera a ponto de mandar esculpir estátuas de ouro de si próprio; ganhou tanto e em tão pouco tempo com suas operações financeiras na França e no exterior, a ponto de emprestar a juro para príncipes de toda a Europa.
A intenção de Pierre Lepape é servir um Voltaire bem diferente daquele que considera o Voltaire construído pela lenda. Para Lepape, o Príncipe das Letras ascendeu aos píncaros da glória em seu próprio tempo não exatamente pelo caráter combativo de sua filosofia, mas muito antes pelo sucesso de suas peças bem comportadas, que seguiam de perto a tradição de Racine e Corneille, como Édipo e La Henriade: "Aceitava o mundo tal como era, contanto que pudesse encontrar nele um lugar à altura de seu talento. Nenhuma revolta, a não ser aquela que se costuma sentir diante do fracasso, ou diante do grande sucesso de um rival. O sistema de proteção, clientelismo e favorecimento pelos grandes não lhe parecia escandaloso nem indigno da literatura; apenas o achava pouco seguro, aleatório, demasiado à mercê de caprichos e acasos, para que alguém devesse apoiar-se exclusivamente nele".
Em relação à filosofia, só despertou realmente para ela após seu encontro com lorde Bolingbroke, um exilado inglês na França de Luís XV. Até então se interessara apenas pelas letras. Seu exílio na Inglaterra transformou o homem de letras em filósofo. Foi quando descobriu uma palavra-chave de seu vocabulário: tolerância. Descobriu também que um escritor não poderia ser feliz numa monarquia católica. Sua maior amargura foi não poder oferecer La Henriade a Luís XV; isto porque o livro tocava, apesar de ser até bastante elogioso para com Henrique IV, em questões sobre as quais não se devia discutir no século XVIII: religião e política. O poder sabia que estes eram temas que arrebatavam facilmente os corações, abrindo caminho para a discórdia.
Seu exílio na Inglaterra, devido ao caso Rohan, foi um cálice de amargura que ele procurou beber devagar, mas que operou em seus horizontes intelectuais metamorfoses profundas. Seu diálogo direto com Berkeley e os filósofos ingleses levaram-no a descobrir não só a filosofia, mas a incorporar também a história em seu universo de preocupações, da mesma forma como passou a se interessar pela política como tema relevante. Voltaire iria pisar em campos minados pelo Estado absolutista francês, em temas que a monarquia guardava a sete chaves. Surge então o Pedagogo social, o defensor das aspirações da sociedade civil, o criador dos rudimentos do que ficaria conhecido mais tarde como a "opinião pública". Torna-se daí por diante no erudito que encanta seu público usando como britadeira de demolição os próprios textos de seus adversários. Como ele mesmo gostava de expressar, em sua pedagogia do riso cínico, era preciso "ir à casa do inimigo para se abastecer de artilharia".
Desistindo de fazer carreira como escritor na Inglaterra, e retornando à França com a promessa íntima de ser menos desbocado, só conseguiu espalhar atrás de si um rastilho de pólvora. O sucesso de suas Cartas Filosóficas, obra na qual ressaltava o arcaísmo de uma civilização francesa esgotada e a grandeza de uma Inglaterra soberbamente moderna, fê-lo optar definitivamente pela verdade, o que revela sua índole marcada em demasia por um excesso de anseios. Perseguido pela polícia de Paris por suas diatribes literárias, viveu exilado por mais de trinta anos. Primeiramente em Cirey, com Madame du Châtelet. Homem já maduro, esquecera completamente as lições que havia imposto a si mesmo, aplicando golpes sempre muito abaixo da linha da cintura de seus desafetos, que por volta de 1735 contavam-se em número bastante considerável não apenas na França, mas em toda a Europa, e que se multiplicavam com extrema rapidez. É que atacando Voltaire, uma estrela de primeira grandeza, tinhase a chance de se construir uma reputação. Lendo o livro de Lepape tem-se a impressão de que Voltaire talvez fosse o autor talhado para um Como fazer inimigos e afastar pessoas: "Tinha o dom de transformar um confrade em rival, um rival em adversário e um adversário em detrator rancoroso". Ninguém como ele para levar tudo para o lado pessoal: a menor crítica, o mais leve comentário desfavorável, eram tomados como uma ofensa a ser reprimida por sua retórica mais que impiedosa.
Travou dezenas e dezenas destas "batalhas indignas" que só lhes respingavam mais lama. Não era homem de abrir batalhas com luvas de pelica, mas com ganchos certeiros de direita e de esquerda. Batia forte e de frente, revidando com elegância literária e rigor de raciocínio, o que arrasava ainda mais sua reputação junto ao círculo que cortejava eternamente, o aristocrático: "Não era tanto por orgulho pessoal que Voltaire jamais aceitaria ser atacado sem se lançar imediatamente à represália, mas por uma necessidade que se assemelhava à razão de Estado, que dizia respeito à integridade de seu território intelectual, a uma lógica de conquista em que sua glória pessoal se confundia com a da literatura. O que era bom para Voltaire era bom para os homens de letras. Mesmo uma guerra suja, desde que ela lhe permitisse sair vencedor". Em suma, nutriu a "pretensão de encarnar o mundo das letras e levá-lo à independência".
O livro de Lepape revela o intelectual que opta conscientemente por vender seus serviços ao Estado na crença de que, ocupando uma posição estratégica no sistema de hierarquias, pode a partir daí bafejar o mundo com as luzes do espírito. Sempre tencionou ser o pedagogo de testas coroadas, aos quais pretendia levar a filosofia, criando assim os chamados "déspotas esclarecidos". Queria iluminar a cúpula do Estado para lançar fachos de luz sobre a civilização. Mas na monarquia francesa não havia lugar para a aplicação dessa idéia. Luís XV simplesmente não suportava ouvir seu nome. Frederico II pendurou-lhe os guizos dourados que perseguira na França durante tantos anos, o que acabou por desabrochar nele uma crise de consciência: "O sentimento de ser o instrumento de diversão de Frederico II era mais do que podia suportar; e ele era por demais irônico para não se sentir humilhado pelo espetáculo que representava nas cerimônias oficiais, quando se via constrangido a levar no pescoço a grande chave que simbolizava suas funções de camareiro. Tinha ido a Prússia a fim de mostrar ostensivamente todo o brilho que podia se esperar de sua condição de filósofo; mas era grande a dificuldade que enfrentava para o êxito dessa demonstração". Foi quando começou a duvidar da missão civilizadora do rei prussiano, e a querer devolver "...sua famosíssima chave de camareiro...". Chegava ao término a derrota definitiva de uma aliança entre a filosofia e o poder político.
Para terminar, é preciso referir que capítulos importantes dessa obra são dedicados à história do livro no século XVIII, linha de pesquisa inaugurada por Lucien Febvre e Robert Mandrou, retomada e desenvolvida por Roger Chartier, Henri-Jean Martin, Robert Darnton, entre outros. O autor aborda ainda a anarquia do mundo editorial no Século das Luzes, no qual era possível publicar qualquer coisa em nome de quem quer que fosse, o que sempre colocou Voltaire em maus lençóis: editava-se qualquer coisa em seu nome, comprometendo-o ainda mais diante das autoridades. A leitura deste belíssimo livro de Pierre Lepape apresenta-nos ainda uma galeria repleta de personagens muito vivas e atraentes, figuras influentes como o naturalista Buffon, o teórico político Montesquieu, o bibliotecário ilustrado Malesherbes, bem como jovens notáveis e mortos-de-fome em busca de reconhecimento e distinção, Rousseau e Diderot, em seus encontros e desencontros com Voltaire. Digna de nota a metodologia do autor, que seguindo um roteiro cronológico flexível da produção voltaireana, vai revelando como cada conjuntura específica colaborou para a definição dos contornos intelectuais de suas obras. O autor demonstra que parte representativa de sua produção foram as assim chamadas "repostas voltaireanas", ou seja, reações rápidas e contundentes a críticas e comentários que o autor, por sua índole combativa, simplesmente não conseguia tolerar. Destaque para a esfera pública, mas também detalhes de bastidores, Voltaire emergindo de sua vida privada, o "sovina" que não se incomodava em gastar muito, desde que consigo mesmo, que vigiava de perto a correta aplicação de cada níquel com seu conforto e sua alimentação nos últimos anos de Ferney. Aspecto importante a ser levado em consideração são as lutas do movimento filosófico com os poderes constituídos do Ancien Régime, a campanha do caso Calas em que Voltaire destroçou sozinho todo um sistema judiciário injusto e indigno, as estratégias da repressão que procurava abater o impulso criativo do Iluminismo pela força bruta e pela interdição de suas obras.
Revista de História - USP
Um comentário:
Eduardo,
Iluminei-me aqui de Voltaire e voltarei sempre que puder...
Convido-te a conhecer o CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos), pequeno jardim de lembranças e homenagens...
Abraço mineiro,
Pedro Ramúcio.
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