segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Lolita, ninfeta cinqüentona


Publicado em 1955, o romance Lolita provocou indignação e repulsa ao mostrar a paixão de um adulto por uma pré-adolescente. Conheça a história escandalosa de uma das maiores obras-primas da literatura do século 20
por Leandro Sarmatz
"Ninfeta.” Até mesmo o Houaiss, em sua prosa neutra e objetivamente descarnada, parece se deixar levar por algum tipo de embalo sensual: “menina adolescente voltada para o sexo ou que desperta desejo sexual”. O que o dicionário não diz é que essa palavrinha de origem grega apareceu ao mundo pela primeira vez em 1955, quando um até então obscuro escritor russo radicado nos Estados Unidos chamado Vladimir Nabokov (1899-1977) a usou para definir Dolores Haze, 12 anos, 1,48 metro. Aliás, Lolita. Lo. Li. Ta.

Lolita, o romance, talvez tenha sido a obra literária mais escandalosa do século 20. Provocou debates em tribunais, gerou incontáveis especulações biográficas sobre o escritor (que foi casado a vida inteira com a mesma mulher) e produziu farto material jornalístico no mundo todo. Cercou Nabokov de uma aura de escritor degenerado e popularizou as palavras “ninfeta” e “lolita”, que estão entre as campeãs de acesso da ferramenta de busca Google na internet.

Motivo? O livro conta a história da paixão de Humbert Humbert – um discreto professor europeu de meia-idade – por uma sapeca pré-adolescente americana. Fascinado pela beleza imaculada das menininhas púberes, Humbert se afunda no lodaçal dos desejos proibidos. Seduz e se deixa seduzir por Dolores, encarnação infantil da mulher fatal. Para piorar as coisas, a menina é sua enteada. Juntos, empreendem uma viagem automobilística pela América das longas estradas e pelas camas de intermináveis motéis fuleiros.

Não há, nas cerca de 300 páginas de Lolita, uma única cena explícita. Claro que há conotações sexuais às pencas. Classudo e irônico, Nabokov deixa nas mãos (e na cabeça) do leitor qualquer conclusão mais óbvia. Mesmo assim o livro fez um bocado de barulho, principalmente porque dava cara e nome à prática da pedofilia, comportamento poucas vezes explorado em obras literárias e que a sociedade fazia questão de manter bem debaixo do tapete.

Prevendo o escarcéu, nenhum editor americano quis publicar a obra. Depois de longa e infrutífera peregrinação pelas maiores editoras dos Estados Unidos, Lolita acabou saindo na França pela Olympia Press, provavelmente a editora de “sacanagem” mais refinada da história (A História de O, de Pauline Réage, e O Almoço Nu, de William Burroughs, estes sim sexualmente explícitos, foram alguns dos romances publicados pela editora). Essa primeira edição francesa vendeu apenas 5 mil exemplares. O barulho ainda era pequeno. Pouca gente soube valorizar o livro. Até que o escritor britânico Graham Greene – autor de O Americano Tranqüilo – desmanchou-se em elogios ao romance numa entrevista.

As palavras de Greene ecoaram nos ouvidos do editor de um tablóide que, ofendido com o teor do livro (que aparentemente não lera), denunciou-o nas páginas do jornal. Foi o que bastou para que o Ministério do Interior britânico recolhesse todas as cópias em circulação no país, além de pressionar os franceses para que banissem a obra. E assim o livro foi banido. Em 20 de dezembro de 1956, a polícia francesa recolheu todos os exemplares de Lolita e o livro permaneceu maldito na França por dois anos. Fazia companhia a outras obras-primas que um dia também foram tiradas de circulação supostamente por ofenderem a moral e a família, como Madame Bovary e As Flores do Mal (leia quadro abaixo).

Quando saiu nos Estados Unidos, em 1958 (editora Putnam, 5 dólares), Lolita fez história. Vendeu, apenas nas três primeiras semanas de lançamento, a soma de 100 mil exemplares (até então somente E o Vento Levou – o livro – havia alcançado marca semelhante). Foi um sucesso e um escândalo. Em plena guerra fria, o grande público considerava Nabokov apenas mais um russo pervertido querendo sacanear com os americanos com duvidosos costumes europeus. Os críticos babaram. Viam naquele insólito casal uma espécie de alegoria das relações entre Europa e América, a primeira apegada a valores antigos e decadentes, a segunda lépida, faceira e aberta às novas experiências oferecidas pelo mundo.

Poliglota, Nabokov lia e escrevia bem à beça em pelo menos três línguas: russo, inglês e francês. Jogava tênis. Era especialista em borboletas. Ensinava literatura em uma grande universidade americana. Um sujeito fino, em suma. Com o escândalo, viu-se projetado da noite para o dia para o circuito mais pop: assinou contrato com o diretor Stanley Kubrick, que filmou Lolita em 1962, teve a vida destrinchada nas revistas populares da época, foi caluniado nos tablóides e amaldiçoado por pastores evangélicos, fez amizade com Hugh Hefner, fundador da revista Playboy, e virou até motivo de uma deliciosa piada do humorista Groucho Marx, que disse: “Vou esperar seis anos para ler Lolita, até que ela complete 18”.

Como Vera Fischer, Lolita continua fazendo barulho e seduzindo mesmo depois de ter passado dos seus 12 anos. Nas últimas semanas, uma denúncia agitou os meios literários e provocou imensa irritação em Dmitri Nabokov, filho e único herdeiro do espólio literário do autor. Tudo porque um pesquisador insinuou que o picante tema do romance – a paixão de um quarentão por uma menininha – foi “chupado” de um texto alemão publicado em 1916. Evidências não faltam. Há uma série de pontos em comum. Ao mesmo tempo, Nabokov não tinha muito domínio do idioma e o texto nunca foi traduzido para as outras línguas faladas por ele. Vá saber. De qualquer maneira, foi com Nabokov que o mundo conheceu e se escandalizou com a representação artística da pedofilia. A imaginação sexual dos marmanjos nunca mais seria a mesma graças ao livro, que verbalizava alguns dos sentimentos mais recônditos de uma parcela da humanidade.

Lolita foi a glória e a miséria de Nabokov. Divulgado em escala planetária, o livro o transformou num homem rico (e infame, para alguns círculos mais tradicionalistas). Mas eclipsou, de certa forma, o resto de sua produção: poemas, ensaios, contos, outros romances e traduções de autores russos, uma série de trabalhos memoráveis e com um quê de aristocráticos. O autor tinha plena consciência disso. Numa entrevista em meados da década de 60, declarou melancolicamente: “Lolita tem fama, eu não. Eu sou um romancista obscuro, duplamente obscuro, com um nome impronunciável”.

Réu encadernado
Conheça as histórias de alguns livros e autores que foram parar nos tribunais
MADAME BOVARY

Emma Bovary trai o marido e transa com o leiteiro, o padeiro e uma penca de outros homens nessa obra de Gustave Flaubert (1821-1880) que viria a ser o abre-alas do romance moderno. Publicado em 1856 e levado a juízo em 1857, Madame Bovary – cujo subtítulo é “Costumes da Província” – causou um rebuliço danado nos tribunais. O “caso Flaubert” é um dos mais famosos da história da literatura. Acusada de ofensa à moral pública e à religião, a obra foi debatida com ardor pelos advogados. No frigir dos ovos, Flaubert acabou sendo absolvido – não sem antes ter de ouvir longas e hipócritas considerações morais a respeito do adultério.

AS FLORES DO MAL

O livro que inaugurou a poesia moderna graças aos versos que falavam das contradições da cidade, da sexualidade dos bairros populares e dos apelos ao mesmo tempo eróticos e mórbidos da vida foi parar na corte em 1857. Considerado culpado por obscenidade, Charles Baudelaire (1821-1867) foi multado em 300 francos e teve poemas inteiros amputados do seu livro. Somente em 1949 o julgamento foi reformado pela corte de cassação da França. A essa altura, As Flores do Mal já era o livro de poesia mais influente dos últimos dois séculos.

ULISSES

Publicado em 1922 e considerado até hoje um dos textos mais brilhantes da história literária, Ulisses foi acusado de obsceno e corruptor pelas autoridades americanas. Motivo: mostrava, em detalhes (incluindo os escatológicos), um dia inteiro na vida das pessoas comuns de Dublin e terminava com o monólogo de uma mulher adúltera. A obra do irlandês James Joyce (1880-1940) chegou a ser apreendida no porto de Nova York quando desembarcava ilegalmente nos EUA. O romance já causara confusão mesmo antes de sua publicação integral. Quando saiu em capítulos na revista The Little Review, entre 1918 e 1920, escandalizou as autoridades, que convocaram os editores para se explicarem na corte. Debatido e julgado, foi considerado “inocente”, e então pôde ser lido sem restrições.

O AMANTE DE LADY CHATTERLEY

O romance do britânico D.H. Lawrence (1855-1930) penou para poder circular livremente. Tudo porque mostra uma mulher “faminta de sexo” que transa com o guarda-caça de seu marido paralítico e apresenta algumas dezenas de vezes a palavra “fuck”. Publicado em Florença em 1928, o livro foi imediatamente banido do Reino Unido. A editora Penguin publicou-o em 1960 numa tiragem gigantesca e a preço de banana, mas teve que se haver com a sanha moralista. O livro foi parar nos tribunais. O júri ouviu dezenas de clérigos, cientistas e críticos literários. O romance foi lido palavra por palavra, página a página, entre as quatro vetustas paredes do tribunal londrino. Veredicto: absolvição, claro.


Saiba mais
Livros

Vladimir Nabokov, Jane Grayson, Penguin, 2001 - Biografia (em inglês) farta em informações e ilustrações que acompanham toda a trajetória do escritor, além de trazer depoimentos de gente próxima a ele

Vladimir Nabokov, Cristina F. Barragán, Editorial Almagesto, 1993 - Ensaio escrito em espanhol por uma especialista argentina. Embora não seja completamente original – a autora se ampara muito em outros trabalhos de interpretação – fornece, ao menos, um olhar latino-americano sobre o escritor

Lolita, Vladimir Nabokov, Companhia das Letras, 1997 - O romance que mais provocou barulho no século 20. Tradução elegante e cuidadosa de Jório Dauster

A Pessoa em Questão, Vladimir Nabokov, Companhia das Letras, 1994 - Autobiográfico mas nunca auto-indulgente, o autor narra os primeiros anos de sua vida (a infância na nobreza russa pré-revolução), fala do exílio e comenta os períodos de adaptação em culturas tão diversas quanto a francesa, a alemã e a norte-americana. Além da viagem ao passado, o livro é escrito com a maestria habitual: adjetivos inesperados, ironias cortantes, erudição às pencas, anedotas deliciosas

Revista Aventuras na Historia

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