Separando o carvão, serrando madeira, empurrando vagões, as mulheres contribuíram para a expansão da indústria carbonífera, mas foram esquecidas pela História
Carlos Renato Carola
De tão exaustivo e insalubre, o trabalho nas minas ficou conhecido na Europa do século XIX como “trabalho nas trevas”. A metáfora servia como denúncia da exploração selvagem imposta a homens, mulheres e crianças, principalmente nas minas de carvão. Tal denúncia reforçava a idéia de que o ambiente de trabalho nas minas só podia ser suportado pelos homens, o que contribuiu para que muitos países da Europa e da América proibissem a presença de mulheres na atividade de mineração na primeira metade do século XX.
Mas em Santa Catarina, no sul do Brasil, a força feminina continuava a girar a poderosa máquina da indústria carbonífera em silêncio. A história tratou de apagar de suas páginas essa participação fundamental. As mulheres se tornaram invisíveis na atividade mineradora à medida que o processo de masculinização do trabalho nas minas se consolidou.
Até a década de 1970, a paisagem social da região carbonífera no sul do país era formada por um conjunto de edificações singulares: a vila operária, as minas de carvão, a ferrovia, as florestas de eucalipto e os depósitos de rejeitos. Qualquer forasteiro que desembarcasse na região nessa época e tivesse tido a oportunidade, ou a infelicidade, de conhecer uma mina de carvão, veria de longe uma massa pesada de ar poluído saindo de um conjunto de edificações formado por gigantescas vigas de madeira escuras; veria uma torre em cujo interior havia uma “gaiola” (o elevador da mina) por onde o carvão era içado dentro de vagonetes, e também por onde desciam e subiam diariamente os trabalhadores mineiros, como se fosse um “poço devorador que engolia uma ração diária de homens”, diria o escritor francês Émile Zola (1840-1902).
No interior da mina, dezenas de mineiros se ocupavam com suas pás e picaretas, procurando extrair a maior quantidade possível de carvão mineral, formando uma espécie de formigueiro humano. Na superfície, o espetáculo do trabalho era dominado por mulheres e crianças.
O trabalho de escolha do carvão era realizado em um espaço coberto, numa espécie de “rancho” de estilo rural em que mulheres e crianças se posicionavam em torno de uma mesa de madeira onde era feita a seleção do minério. A função primordial das mulheres era preparar as madeiras para o escoramento das galerias subterrâneas e selecionar carvão bruto extraído pelos operários do subsolo. Portando uma “picaretinha” de mão, elas – as “escolhedeiras” – desagregavam o mineral bruto, separando o carvão de outros materiais agregados. Nesse tipo de serviço, o trabalho infantil era tão comum que as próprias companhias construíam padiolas para a seleção do carvão de tamanho menor para as crianças. As trabalhadoras também eram obrigadas a executar outros tipos de serviço, entre os quais empurrar vagonetes carregados de carvão bruto, encher carroças ou caminhões de minério e, ainda, descer até o subsolo para desempenhar algum tipo de serviço quando necessário.
A mão-de-obra feminina passou a ser usada de forma mais intensa a partir dos anos 1930. Na década seguinte, Santa Catarina tornou-se o principal produtor de carvão do país e a cidade de Criciúma passou a ostentar orgulhosamente o título de capital brasileira do carvão.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo federal requisitou para a União toda a produção de carvão nacional e instituiu como medida de emergência a venda obrigatória de todo o carvão extraído em solo pátrio. Além disso, os trabalhadores ficaram obrigados a atender à convocação das autoridades e dos proprietários das companhias carboníferas, e se eles se recusassem, poderiam ser presos por insubordinação ou “impatriotismo”. Essa conjuntura estimulou a abertura de cerca de 120 empresas de mineração, entre pequenas empreiteiras e grandes companhias carboníferas. Na segunda metade da década de 1940, o governo federal iniciou na região a construção do complexo carbonífero da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), formado por minas de carvão, lavador (usina de beneficiamento), usina termelétrica, vilas operárias e centros recreativos.
Como a maioria das companhias carboníferas não dispunha de grandes capitais e a contingência da guerra motivou o aumento da produção nacional, a seleção manual do carvão foi a opção mais rápida e barata. Almejando cumprir as metas de produtividade impostas pelo mercado, os proprietários investiram no aumento da mão-de-obra. Para a separação do carvão, contrataram mulheres e crianças por um custo salarial inferior ao dos homens, justificando essa diferença pela noção de trabalho “leve” e “simples”, condizente com a suposta fragilidade físico-mental dos contratados. Além disso, prevalecia o argumento de que essa atividade possibilitava um ganho adicional para a família mineira. Constituiu-se formalmente uma divisão sexual do trabalho no espaço das minas, cabendo aos homens extrair o carvão do subsolo e às mulheres, os trabalhos na superfície. Mas, no cotidiano, os papéis e as fronteiras eram transgredidos, sendo que as tarefas das mulheres eram comumente aceitas como algo inferior e complementar às dos homens.
Entre os dispositivos de controle disciplinar, os proprietários aplicavam multas, advertências e demissões aos que não trabalhavam “direitinho”. No caso das trabalhadoras, o desacato à fiscal da escolha ou ao capataz era motivo de advertência, suspensão ou demissão; brincadeiras ou brigas entre companheiras de trabalho – situação comum no dia-a-dia – também incorriam no risco de alguma penalidade. A “escolhedeira” que não trabalhasse dentro das normas e expectativas de produção era punida com suspensão ou demissão e ainda ganhava o adjetivo de trabalhadora “inconveniente”. O estigma podia acarretar graves conseqüências e comprometer seriamente as condições de vida da família mineira, uma vez que os proprietários das principais companhias carboníferas também eram donos das moradias operárias, do armazém, dos clubes recreativos. Além disso, também disponibilizavam recursos para a Igreja, para a construção de escolas e a manutenção de hospitais.
O caso de Ana Maria, que trabalhou como “escolhedeira” de dezembro de 1948 a fevereiro de 1952 na Mineração Geral do Brasil, no município de Urussanga, ilustra os mecanismos de controle da empresa. Sua ficha funcional revela que foi suspensa duas vezes: uma suspensão de três dias em outubro de 1949, por ter desacatado sua colega de trabalho, que provavelmente era a fiscal de escolha, e outra suspensão de três dias em março de 1950, por desobediência ao capataz da mina. Na mina Barão do Rio Branco, Maria F. foi suspensa várias vezes: dois dias em janeiro de 1951, por não obedecer às ordens do capataz ou da fiscal de escolha, e por estar “de brincadeira” no horário de serviço; três dias em outubro do mesmo ano, dois dias em agosto de 1952 e mais dois dias em dezembro de 1955 por “desobedecer às ordens da administração”.
Mesmo diante do risco que as transgressões representavam, as mulheres, assim como os homens, praticavam cotidianamente atos de indisciplina e estratégias para fugir ou burlar os dispositivos de controle das companhias mineradoras. Era comum, por exemplo, solicitarem atestado médico para justificar ausência do trabalho em função de doenças, assim como era uma prática comum faltar ao trabalho sem apresentar uma justificativa formal, ausência que muitas vezes ocorria por causa de afazeres domésticos ou obrigações conjugais. Brigas e brincadeiras durante o trabalho eram proibidas, mas no dia-a-dia da mina isso era praticamente burlado. Algumas trabalhadoras até ousaram confrontar o poder dos coronéis do carvão, acionando a justiça do trabalho com o objetivo de conquistar direitos trabalhistas.
Durante trinta anos – de 1930 a 1960 –, a indústria carbonífera catarinense não hesitou em explorar o trabalho de mulheres e crianças. Porém, na história local e na memória oficial cristalizada em monumentos, nomes de ruas e praças, as trabalhadoras não foram lembradas nem reconhecidas como sujeitos históricos e nem como personagens da expansão industrial. Nos lugares onde se constrói a memória oficial homenageiam-se, preferencialmente, as figuras históricas dos grandes empreendedores da indústria do carvão e as autoridades governamentais reconhecidas pelas elites locais como benfeitoras do progresso, transformados em símbolos que exaltam a ideologia do trabalho. No meio artístico de base popular, a atenção se concentrou na representação do trabalhador mineiro como um “soldado heróico”. O mineiro é identificado como o sujeito anônimo que trabalhava nos “subterrâneos das trevas” para sustentar sua família e representado como um herói que produzia a riqueza mineral, que resultou no progresso da região carbonífera. Prevaleceu o pressuposto ideológico de que somente os homens fizeram parte da história da mineração na região carbonífera.
Em Santa Catarina, principalmente a partir da década de 1950, ocorreu um processo inverso daquele descrito e analisado por Karl Marx (1818-1883) na Europa do século XIX, onde se observa que uma das conseqüências imediatas da mecanização da produção foi a incorporação de “trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento físico incompleto”. Assim, “a primeira preocupação do capitalista ao empregar a maquinaria foi a de utilizar o trabalho das mulheres e das crianças”. No Brasil, o processo de mecanização promoveu a valorização do trabalho dos homens (masculinização das minas), e a primeira providência tomada pelos donos das mineradoras foi eliminar o trabalho manual de seleção e classificação do carvão, feito por mulheres e crianças. Dispensaram a mão-de-obra feminina justificando as demissões pelas simples expressões “extinção da escolha” ou “extinção de serviço”. Na História, o processo foi ainda mais cruel, e impôs a essas trabalhadoras o silêncio e o esquecimento.
Carlos Renato Carola é professor de História na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Criciúma-SC, e doutor em História pela USP. Autor do livro Dos subterrâneos da história: as trabalhadoras das minas de carvão de Santa Catarina (1937-1964). Florianópolis: Ed. da UFSC, 2002.
Revista Nossa Historia
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