quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O idioma da mestiçagem


Fábia Barbosa Ribeiro1
Doutoranda em História Social - FFLCH/USP


VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. Campinas: Editora Unicamp, 2007

Já dizia João Antonil que o Brasil era "o purgatório dos brancos, o inferno dos pretos e o paraíso dos mulatos"2. O jesuíta italiano, precursor dos manuais sobre as riquezas do Brasil, acreditava serem os mulatos um povo híbrido que trazia consigo as características mais nocivas das raças que o compunham, especialmente em sua herança relativa aos negros. Eram os mestiços, em sua opinião, preguiçosos, indolentes, espertos e sensuais, desafeitos ao trabalho e ardilosos no trato com seus senhores, sempre prontos a barganhar para conquistar favores e regalias. As mulatas então eram fontes de escândalo, pois eram objeto da lascívia de seus senhores e "sinhozinhos", com seus préstimos sexuais buscavam garantir melhores condições de vida e algumas vezes tinham a liberdade assegurada pela consangüinidade. À figura desses mestiços estava associado o caráter de imoralidade.

Essa idéia construída e reforçada principalmente a partir de meados do século XVII, é um dos pontos principais discutidos em O idioma da mestiçagem, de Larissa Vianna, que nos traz importantes contribuições para o entendimento das relações raciais no Brasil. Pautada por uma apurada pesquisa documental, a autora, com base em estudos sobre as irmandades religiosas de pardos no Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII, traça um panorama do modo como esse segmento social foi tratado pela sociedade colonial em formação na América portuguesa e de sua importância nos caminhos e descaminhos que levaram à constituição da população brasileira.

Realidade crescente na colônia, fortemente impulsionado pela chegada maciça de mão de obra africana, o fenômeno da mestiçagem era algo que precisava ser encarado, pensado e definido. E é a partir do século XVII que se disseminam idéias e preocupações a respeito do lugar social dos mulatos, sendo que as irmandades religiosas por eles criadas iriam jogar importante papel na consolidação de sua posição no universo colonial.

Iniciando com um amplo painel da formação das teorias raciais e de sua repercussão na atualidade, a obra nos mostra como a miscigenação no Brasil forçou a metrópole a repensar as relações jurídicas entre a população da colônia e a determinar o status e o lugar social de cada um. Em um universo marcado por uma gama variada de tipos e sujeitos que circulavam pelos espaços urbanos, livres, libertos e escravos misturavam-se em profusão e propiciavam uma dinâmica urbana diferente, impossível de ser ignorada. Reportando-se ao quadro baiano, mas que seguramente pode ser reproduzido às demais províncias, João José Reis nos auxilia na intrincada teia dos diferentes matizes dos nascidos no Brasil ao apontar-nos tipos como o crioulo, o escravo nascido na colônia; o cabra, "uma cor entre o mulato e o crioulo"; o mulato também alcunhado de pardo; os brancos, ricos e pobres, brasileiros ou estrangeiros (portugueses em sua maioria). À parte, havia ainda os africanos, que, embora não diferenciados em "cores", encontravam-se apartados a partir de suas etnias, as chamadas "nações", isto é, identidades criadas e assumidas a partir de suas vivências na realidade da diáspora. Ainda segundo Reis, ao menos os mulatos não sofriam dessa "ambigüidade nacional".3

Essa barafunda de origens e cores transformou o Brasil em cenário propício para o surgimento de tensões sociais, analisadas pela autora no âmbito das irmandades religiosas. É mister ressaltar que o pensamento sobre a mestiçagem não aporta somente por aqui, ele se desenvolve em todas as colônias da América, como demonstra Larissa Viana em seu primeiro capítulo intitulado: O estigma da "impureza": poder e mestiçagem, oferecendo-nos um apanhado geral das formas com que foram tratados os mulatos e estabelecendo comparações entre as colônias portuguesas, francesas, inglesas e espanholas, que tiveram de pensar e repensar a mistura entre as "raças" e especialmente o fruto desta, estabelecendo as bases sociais para o posterior surgimento das irmandades de homens pardos.

Segundo a autora, os mestiços foram tratados pela legislação colonial das Américas muitas vezes de forma diferenciada. Nas colônias inglesas ao Norte, por exemplo, havia multas e penalidades para aqueles que tivessem filhos bastardos ou que consumassem casamento inter-racial, neste último caso, considerado mais grave, a pena seria a expulsão do "criminoso" e de sua família. Em contraponto, no Caribe inglês e nas Antilhas francesas, não houve proibições legais sequer condenações significativas em praticamente nenhuma área. À semelhança, Portugal não adotou formulações legais às relações mistas, porém estabeleceu medidas restritivas ao acesso a cargos da administração colonial, salvo aqueles de menor escalão, cujo bloqueio era comumente quebrado pela ausência de quadros compatíveis com as funções. É importante frisar que as atitudes formais em relação à mestiçagem eram muitas vezes impraticáveis, por causa do alto contingente de população negra e pela desproporção dos sexos ocasionada pela escassez de mulheres. Viana menciona o exemplo do Caribe inglês, onde no século XVIII o índice de população negra variava entre 75% a 90% do total.4

Para a realidade luso-brasileira, não obstante a ausência de restrições legais, criar-se-iam mecanismos de controle da população mestiça, calcados nos "estatutos de pureza de sangue". Exigência das cortes portuguesas para a distribuição de cargos públicos, títulos de nobreza, filiação em entidades religiosas e ordens terceiras e exercício do sacerdócio, a pureza de sangue, prática registrada em Portugal desde meados do século XVI, era fruto de uma sociedade estamental onde o indivíduo era reconhecido pelo estrato social no qual estava inserido. Grupos ou regimes de privilégio concentravam na honra – transmitida através do sangue – um critério de integração ou seleção que perpetuaria a hierarquia social vigente.5 A autora aponta as origens da discriminação afirmando que, inicialmente, os cristãos-novos, especialmente os de "sangue mouro", eram o alvo preferencial de tais estatutos. Os candidatos deveriam passar por um profundo exame de suas "origens", visto que nem eles, tampouco seus ascendentes, poderiam apresentar resquícios de "sangue mouro" ou contato com trabalho manual, o chamado "defeito mecânico". Entretanto havia sempre a possibilidade de proceder-se à "limpeza do sangue" através de serviços prestados à coroa.

A partir da expansão das relações comerciais com a África e da efetiva entrada dos africanos em Portugal e nos diversos territórios do ultramar, o processo natural de miscigenação das populações tornou premente a necessidade de restrições aos mestiços, que se valiam muitas vezes da prerrogativa do sangue branco para ascender socialmente. Dessa forma, inclui-se ao rol dos impuros o mestiço, incorporando-se o "sangue mulato" como estigma e criando-se ao longo dos dois próximos séculos, barreiras à sua incorporação aos cargos da administração pública, ao sacerdócio, ao exército e a todas as áreas que pudessem ser restringidas. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia publicadas no ano de 1707, criadas para gerir as práticas religiosas em toda a colônia, vêm ratificar posturas com relação aos mestiços, procedendo à atualização do rol dos impuros e somando aos já impedidos "de nação hebréia", os de "outra qualquer infecta: ou de negro ou de mulato".6

Com o passar dos anos e o avanço da população mestiça, à barreira de acesso social – freqüentemente quebrada dentro do próprio sistema, é preciso frisar – juntaram-se outras tentativas de contenção dos mulatos, apontadas pela autora como infrutíferas e geradoras de protesto por parte de uma população já bastante significativa em meados dos séculos XVIII e XIX. Como, por exemplo, o estabelecimento de leis que proibiam não só aos mulatos como também aos negros forros, utilizarem vestimentas e acessórios que denotassem ascensão social ou riqueza. Marcadores sociais típicos da sociedade européia, esses signos de poder não deveriam ser utilizados por aqueles homens e mulheres impuros de sangue. Era preciso controlar os mestiços, mas como bem demonstra a autora, havia uma divergência constante entre o pensamento e as práticas coloniais no que diz respeito a essa crescente população.7

Nesse contexto de hibridismo e tensões sociais, surgem as irmandades de pardos, estudadas por Viana no espaço da urbe carioca. Criadas a partir das ordens religiosas leigas já existentes em todo universo colonial português, ofereciam a eles mais que um espaço de sociabilidade, sobretudo, locais onde o estigma do sangue mulato tendia a ser vencido num processo de valorização da mestiçagem, diretriz que perpassava a constituição dessas identidades sociorreligiosas. A autora reforça em boa parte de sua obra a idéia de que essas irmandades foram utilizadas como forma de apropriação e legitimação de um espaço diferenciado na hierarquia social pelos pardos.

Utilizando compromissos e documentos dessas irmandades, colhidos em arquivos do Rio de Janeiro e Portugal, Viana demonstra que o termo "pardo" foi introjetado por essas irmandades e reforçado positivamente em discursos e especialmente na entronização de cultos voltados especificamente a eles. Apropriando-se primeiramente de devoções já existentes, como os cultos marianos à Nossa Senhora da Conceição e do Amparo, mas também introduzindo outras novas, como o culto a São Gonçalo Garcia, primeiro "santo"8 pardo cuja entrada no Brasil data de 1745. A legitimação desse culto foi amplamente promovida por parte dos franciscanos, o que indicaria, segundo a autora "a presença de algum nível de negociação política e cotidiana entre os devotos pardos e a Igreja militante".9

O caso da entronização do santo pardo Gonçalo Garcia revela uma face das tentativas de positivização da imagem dos pardos perante a sociedade. Em discurso proferido no momento da entrada do santo em Pernambuco, que os estudiosos Raquel Lins e Gilberto Andrade chamaram de "elogio do homem pardo", Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, defensor ardoroso da causa, elenca inúmeras qualidades e virtudes dos homens pardos. Apoiado em estudos filosóficos e bíblicos, ele chega à conclusão que "[...] os mistos como sabem os filósofos, são mais perfeitos de que as partes de que resultam, porque participam das perfeições dessas partes. E aqui temos já por princípio natural, a cor parda mais perfeita que a cor preta e branca [...]".10

No Rio de Janeiro a Irmandade de São Gonçalo Garcia surge no ano de 1748, ocupando uma modesta igreja no final da Rua da Alfândega.11 Esta confraria iria protagonizar uma contenda com a Irmandade de São Felipe e São Tiago, formada por pretos de nação congo. Ocorreu que no ano de 1791, os congo celebraram em escritura pública com os pardos de São Gonçalo, acordo em que partilhariam o templo da Rua da Alfândega e teriam espaço próprio para sepultamentos, cultos e para suas reuniões, mediante a realização de trabalho de edificação de imóveis. Mais adiante em data não especificada pela autora, os pretos de São Felipe e São Tiago entrariam com um ofício dirigido ao soberano, contra os pardos, alegando que embora tivessem cumprido sua parte no acordo estes últimos não haviam feito o mesmo, inclusive proibindo-os de sepultar os irmãos mortos naquele período. Os pretos congos reclamavam que os pardos eram "orgulhosos e inimigos dos suplicantes esquecidos de que estes são também vassalos, posto que a sua cor seja um pouco mais escura que a daqueles, qual a diferença que há do pardo ao preto?".12 Larissa Viana destaca com este documento que aos conflitos entre pretos e pardos, identificados por ela ao longo da obra em diversos momentos, vem se somar a retórica relativa à mestiçagem, que lançaria novas bases na definição de identidades individuais e coletivas. Além disso, são também reveladoras de relações que extrapolavam o âmbito religioso e permitiam entrever tensões sociais latentes.

Os compromissos das irmandades de preto e pardos aparentemente possuem uma estrutura rígida e uma elaboração muito semelhante àqueles das suas congêneres brancas, porém deixam transparecer em seus capítulos a percepção social de seus membros. Como nos mostra a historiografia13, havia irmandades de pretos que não aceitavam nem brancos, nem pardos, e que, ainda entre os pretos, se dividiam entre angolas, minas, cabo verde, guiné, entre outros. Algumas irmandades de pardos não aceitavam pretos, mas acolhiam aos brancos, vetando-lhes, porém, o acesso aos cargos diretivos, também exigiam dos pardos que fossem "legítimos". Entre estes últimos havia distinção entre libertos e escravos, diferença que gerava inclusive dissensões, como no caso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte do Hospício dos Pardos, cujos irmãos cativos no ano de 1761 encaminharam correspondência ao Conselho Ultramarino reclamando do desprezo e da petulância com que eram tratados por seus irmãos libertos. Alegavam os suplicantes, sobretudo, que as suas doações, patrocinadas muitas vezes por seus senhores e destinadas às festividades da irmandade, seriam constantemente desviadas pelos libertos para outras finalidades.14 Aparentemente coesos como "pardos legítimos" os irmãos da Boa Morte, entretanto, faziam de sua condição motivo de rivalidade e de diferenciação social dentro da própria irmandade.

As tensões sociais subjacentes à existência dessas confrarias são captadas pela autora e nos trazem a percepção de como as irmandades refletiam em seu seio as relações sociais construídas em seu entorno. As irmandades de pardos constituíram-se no bojo de um processo intencional de estigmatização do "sangue mulato", conseqüência direta do rápido crescimento da população mestiça. É importante ressaltar como destaca a autora, que recentes estudos têm abordado a construção da categoria "pardo" e de seus múltiplos significados. Os pardos poderiam agregar também as pessoas de cor livres, caso dos crioulos que procuravam distanciar-se do universo escravista assumindo uma "identidade parda".15 Isso demonstra a elasticidade e variedade de sentidos sociais inerentes a tal alcunha, categoria de denominação social muitas vezes ambígua e oscilante.

Esse fato não retira sobremaneira a importância das irmandades de pretos e pardos no tocante à integração social de seus membros. A autora reitera a concepção destas entidades como locais precípuos de convivência, espaços de representação social no meio urbano, e que, não obstante seus conflitos internos e externos, mais do que segregar ou separar, geravam a possibilidade de desenvolvimento de sociabilidades que serviriam como "um freio à desagregação de coletividades submetidas a enormes pressões sociais".16 Não obstante haja considerável número de pesquisas sobre as irmandades de pretos, há ainda poucos trabalhos que abordem especificamente as irmandades de pardos, destacando-se dessa forma O Idioma da Mestiçagem de Larissa Viana, que vem suprir esta lacuna de modo eficiente e preciso.

1 Bolsista pelo CNPq..
2 ANTONIL, João André. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1983, p. 89-90.
3 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15-16.
4 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 66-74.
5 Idem, p. 53.
6 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Apud VIANA, Op. Cit. p. 77.
7 VIANA, Op. Cit., p. 79-80.
8 Coloco aspas ao termo santo, pois como nos explica a autora, Gonçalo Garcia um hindu natural de Baçaim, era ainda apenas beato ao ter a sua imagem entronizada festivamente no Recife no ano de 1745, ele seria canonizado muitos anos mais tarde, em 1862, porém no século XVIII já era identificado como santo. Ver: VIANA, Op. Cit. p. 124-127.
9 Idem, p.130.
10 Citado por VIANA à página 127. Fragmento retirado pela autora do "Discurso histórico, geográfico, genealógico, político e economiástico recitado na nova celebridade que dedicaram os pardos de Pernambuco ao santo de sua cor, o Beato Gonçalo Garcia na sua Igreja do Livramento do Recife aos doze de setembro de 1745" proferido por Frei Antonio de Santa Maria de Jaboatão. In: LINS, Raquel e ANDRADE, Gilberto. "Elogio do homem pardo", Ciência e Trópico. Recife, vol. 1, n. 12, 1984.
11 Não fora a primeira contudo. De devoção exclusiva dos homens pardos, já havia a Irmandade de São Brás, de 1648; a Irmandade de Nossa Senhora do Amparo, de 1654; a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, de 1663; e a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de 1700, esta última, iria se juntar, alguns anos mais tarde, aos pardos da Boa Morte. Embora juntas no mesmo templo, mantiveram-se independentes. Ver: VIANA, Op. Cit. p. 144-147.>
12 VIANA, Larissa. Op. Cit., p. 167.
13 As restrições presentes nos compromissos das irmandades foram analisadas por diversos trabalhos, entre eles: SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: UFMG, 1963; SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975; BOSCHI, Caio César. Os leigos no poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII), São Paulo: FAPESP/Annablume, 2002; REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas: UNICAMP, 2005, entre outros.
14 VIANNA, Larissa. Op. Cit., p. 158-159.
15 Entre esses estudos a autora menciona os trabalhos de Mattos, Hebe, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora UNICAMP, 1989; FARIA, Sheila Castro. A colônia em movimento: fortuna e cotidiano colonial. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998.
16 VIANA, Larisa. Op. Cit., p. 172.

Revista de História - USP

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