terça-feira, 17 de agosto de 2010

A luz da Revolução Francesa na escola

Matemático preconizava uma Educação que contribuísse para a liberdade de pensamento
Marcio Ferrari (Marcio Ferrari)

CONDORCET. Foto: Bettmann/Corbis

Menos de três anos depois da tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, data oficial do triunfo da Revolução Francesa, a Assembleia Nacional, que havia sido investida de poderes constituintes, recebeu um projeto de organização geral da instrução pública elaborado pelo marquês de Condorcet (1743-1794). Um dos líderes ideológicos da revolução, o matemático e filósofo ocupava uma cadeira de deputado pela cidade de Paris (leia a biografia no quadro abaixo). Seu projeto, apresentado na ocasião, era uma tradução para o campo educacional dos ideais iluministas que nortearam o processo de revolução (saiba quais são no último quadro).

Assim como a data simboliza o fim do absolutismo e a vitória da democracia, tanto quanto a substituição da aristocracia pela burguesia no poder político e econômico, o projeto de Condorcet - embora não tenha sido aprovado pela assembleia - construiu o arcabouço de uma nova Educação. "A Revolução Francesa materializava, por intermédio dele, a criação do modelo da escola do Estado-Nação: única, pública, gratuita, laica e universal", diz Carlota Boto, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Na concepção do marquês, a instrução era não só do Estado como também uma condição básica para o seu funcionamento. "O projeto de Condorcet tem um claro compromisso com a meta de uma sociedade democrática", prossegue Carlota Boto. "Ele entendia que de nada adiantava declarar um povo como portador de direitos - e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão era a marca da revolução - se cada um dos indivíduos não pudesse desfrutar deles."

Inclusão de todos, independentemente do sexo

Condorcet tinha uma concepção de sociedade democrática muito avançada, que incluía todas as pessoas, sem exceção. Ele foi um dos pioneiros na defesa de um ensino igual para homens e mulheres e também do voto feminino, que a maioria dos revolucionários não aceitava. Em discursos e escritos, argumentava contra a discriminação a protestantes e judeus e pregava o fim da escravidão e o direito de cidadania dos negros.

Educação, dizia Condorcet, era uma questão política. Por isso a ênfase no papel do Estado, assunto da primeira das Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, versão em livro do projeto apresentado à Assembleia Nacional. Seria responsabilidade do poder público zelar para que a "desigualdade que nasce da diferença entre os espíritos" não se tornasse, na prática, um motivo de distribuição desigual de direitos. A Educação, segundo Condorcet, deveria ser para todos e oferecer a a possibilidade de desenvolvimento dos talentos individuais. A sociedade justa seria baseada no mérito de cada um.

Um ensino que contribuísse para a liberdade de pensamento e a emancipação dos cidadãos não poderia estar subordinado aos dogmas da religião. Era pré-condição de sua existência que fosse totalmente laico. Diferentemente de alguns correligionários, Condorcet tampouco acreditava que a escola tivesse o papel de difundir civismo e amor à pátria. Ele via nisso um perigo de doutrinação e adoção não racional de princípios. "Mesmo sob a mais perfeita das Constituições, um povo ignorante é um povo escravo", dizia.

Biografia

Gênio dos cálculos e político engajado


Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, o marquês de Condorcet, nasceu em 1743 em Ribemont, Aisne, norte da França. Seu talento para a matemática chamou a atenção quando era adolescente. Condorcet publicou um tratado sobre cálculo integral e desenvolveu um método de contagem de votos utilizado até hoje. Em 1774, integrou a equipe de conselheiros econômicos de Luís XVI. Eleito em 1781 para a Assembleia Nacional, redigiu o projeto para a instrução pública e um esboço de Constituição. Não foram adotados, mas se tornaram modelos para democracias do futuro. Com a radicalização política ocorrida na sequência da Revolução Francesa, Condorcet foi acusado de traição por ter criticado um novo projeto constitucional. Perseguido, escondeu-se por oito meses na casa de uma amiga, onde escreveu Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano. Descoberto, foi levado à prisão em 1794, onde morreu misteriosamente dois dias depois.

Educação em graus e baseada em estatísticas

Outros projetos para a instrução pública apresentados à Assembleia Constituinte defendiam diferentes currículos para diferentes alunos, tendo em conta o meio social e o provável futuro profissional deles. No "antigo regime", seguindo uma tradição de séculos, a Educação formal dava aos ricos os meios de ilustração do espírito, reservando aos pobres o aprendizado dos ofícios artesanais.

Condorcet, ao contrário, dava à Matemática e à Ciência um peso especial e defendia que fossem aprendidas por todos. "Que cem homens medíocres façam versos, cultivem a literatura e a língua, daí não resulta nada para ninguém; mas que vinte se divirtam fazendo experiências e observações, eles provavelmente acrescentarão alguma coisa à massa dos conhecimentos", escreveu o pensador.

Condorcet planejou uma escolarização em graus. Cada cidade teria uma escola de primeiro grau de quatro anos. Num primeiro momento, o segundo grau ficaria a cargo de instituições em regiões-polo, que centralizariam o atendimento. Já os poucos cursos superiores estariam nos centros mais populosos. Conforme os professores se formassem e se criasse um bom contingente, novas escolas seriam abertas, ampliando a oferta em cada nível.

"A ideia era promover a progressiva inclusão das gerações ao mundo do conhecimento", diz Carlota Boto, da USP. "Condorcet chegava inclusive a estabelecer cálculos para saber quantas crianças provavelmente chegariam a galgar todos os degraus da instrução."

Os caminhos de Condorcet

Unidos pela fé... no conhecimento



ENSINO ESCLARECIDO Pintada nas telas da época, a luz da razão inspirou Condorcet
Foto: Reprodução

Condorcet foi um dos últimos iluministas, o grupo de pensadores franceses que acreditava, acima de tudo, no poder do conhecimento. A origem do termo iluminismo se refere justamente às "luzes" da razão que tirariam o homem dos domínios da superstição e da ignorância. Grande parte dos filósofos iluministas, Condorcet inclusive, esteve envolvida no projeto da Enciclopédia (que continha ilustrações como esta, à esquerda) organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean D’Alembert (1717-1783) e que contou também com a colaboração do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele e Condorcet foram os principais pensadores da Educação do período. Nos Estados Unidos, os fundadores da nação adotaram ideias muito semelhantes. Um deles, Benjamin Franklin (1706-1790), foi correspondente do marquês, com quem compartilhava o interesse pelas ciências.

A divisão de funções na época da industrialização na Europa preocupava Condorcet, que via a Educação como um remédio para a estupidez que a repetição de tarefas poderia gerar. A ideia era a da fé no progresso do espírito humano. "Ele acreditava que o presente tende a ser melhor do que o passado", diz Carlota Boto, da USP. "Os iluministas chamavam isso de perfectibilidade, e a Educação era a grande estratégia para alcançá-la."
Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
A Escola do Homem Novo, Carlota Boto, 207 págs., Ed. Unesp, tel. (11) 3242-7171 (edição esgotada)
Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, Condorcet, 264 págs., Ed. Unesp.
Ilustração e História, Maria das Graças de Souza, 250 págs., Discurso Editorial/Fapesp, tel. (11) 3814-5383 (edição esgotada)
Origens da Educação Pública, Eliane Marta Teixeira Lopes, 152 págs., Ed. Argumentum.
Revista Nova Escola

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