Nascer no Afeganistão não é um bom começo de vida para ninguém. No país que é um dos cinco mais pobres do mundo e o segundo mais corrupto, 70% da população sofre de desnutrição e a expectativa de vida é a mesma de um adulto na Inglaterra da Idade Média: 43 anos. As arcaicidades de origem tribal, acrescidas de três décadas de guerra, deixaram o Afeganistão num tal estado de atraso que Cabul, a capital, só recentemente recebeu seu primeiro semáforo – que poucos viram funcionando, já que ele está quebrado dia sim e o outro também. Na tentativa de controlar o trânsito, policiais gesticulam inutilmente em meio às vias sem faixas, por onde carros velhos trazidos do Japão ziguezagueiam entre mendigos, mutilados e crianças, que vendem de frutas a galinhas.
Thaís Oyama, de Cabul
Fotos de Adam Dean, para VEJA
Thaís Oyama, de Cabul
Fotos de Adam Dean, para VEJA
VIDAS ROUBADAS
Afegãs rezam diante de um túmulo em cemitério de Cabul: sete em cada dez ainda usam burca e mais da metade se casa com homens escolhidos pela família antes dos 16 anos de idade
No caminho do aeroporto para o centro da cidade, as barreiras de soldados armados com anacrônicos fuzis Kalashnikov e os muros de concreto erguidos diante das embaixadas lembram a todo instante que a desgraça está à espreita. Só nos dois primeiros meses do ano, a capital do Afeganistão foi alvo de duas séries de atentados cometidos por homens-bomba, nas quais 21 pessoas morreram. O país foi apontado, no último relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como o lugar mais perigoso do mundo para gerar uma criança. Mas pior do que vir à luz é nascer mulher no Afeganistão.
Nove anos depois da queda do regime do Talibã, as afegãs continuam pagando a parte mais pesada da conta do fundamentalismo religioso. Nas ruas, a maioria ainda usa a burca, a roupa que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça e que era uniforme compulsório no tempo da milícia talibã. Embora as escolas para mulheres não sejam mais proibidas, as estudantes representam uma porcentagem ínfima da população feminina e mais da metade das afegãs ainda se casa antes dos 16 anos de idade – salvo raríssimas exceções, com homens escolhidos por sua família. Sob o totalitarismo medieval do Talibã, as que saíam às ruas desacompanhadas do marido ou de um parente do sexo masculino eram castigadas a chibatadas. Hoje, a proibição não existe mais, mas as afegãs continuam ausentes da paisagem. Para elas, qualquer lugar onde haja aglomeração masculina é considerado impróprio, o que inclui mercados, feiras, cinemas e parques. A segregação sexista faz com que até nos saguões dos aeroportos e nas festas de casamento exista um "setor feminino" – só no primeiro caso não formalmente delimitado. Nas bodas em que as mulheres comparecem maquiadas e com belos vestidos, quase sempre há dois salões – um para eles e outro para elas. Poucas se arriscam a desafiar as proibições sociais. A aplicação de castigos físicos a mulheres de "mau comportamento" continua a ser vista como um dever e um direito da família. Uma pesquisa feita em 2008 com 4 700 afegãs mostrou que 87% já tinham sido vítimas de espancamentos ou abusos sexuais e psicológicos – em 82% dos casos, infligidos por parentes. O Afeganistão livrou-se do jugo do Talibã, mas não conseguiu varrer o obscurantismo religioso que ele ajudou a disseminar. A interpretação radical e misógina dos princípios do Islã é a principal causa da tragédia das mulheres afegãs.
A prática da autoimolação é um dos sinais mais cruéis de sua magnitude. Entre 2008 e 2009, ao menos oitenta afegãs tentaram o suicídio ateando fogo ao corpo. Na província de Herat, a oeste de Cabul, a incidência desse tipo de episódio é tão alta que o principal hospital da região montou uma unidade para atender exclusivamente a casos assim. Quando a reportagem de VEJA visitou o lugar, havia três mulheres internadas por queimaduras autoinfligidas. Todas tinham menos de 26 anos e eram analfabetas. No Afeganistão, apenas 15% das mulheres com mais de 15 anos sabem ler e escrever. Rahime, de 25 anos, deu entrada no hospital com 35% do corpo queimado. Ela disse que tentou se imolar porque "estava cansada de viver". Contou que se casou aos 10 anos de idade e, desde então, engravidou seis vezes (sofreu três abortos espontâneos). A mãe estava com ela no hospital. Indagada sobre as razões que a fizeram permitir que a filha se casasse tão cedo, explicou que, na verdade, não a deu em casamento, mas foi obrigada a vendê-la. O marido era lavrador em uma plantação de ópio e não conseguia sustentar a família, de oito filhos. "Ficávamos três ou quatro noites sem ter o que comer", afirmou ela. Rahime foi entregue a um comerciante da região em troca de 200 000 afeganes, o equivalente a 4 300 dólares, divididos em dez pagamentos. O comerciante, hoje seu marido, é "bem mais velho" do que ela, mas nem a jovem nem a mãe souberam precisar quanto.
Afegãs rezam diante de um túmulo em cemitério de Cabul: sete em cada dez ainda usam burca e mais da metade se casa com homens escolhidos pela família antes dos 16 anos de idade
No caminho do aeroporto para o centro da cidade, as barreiras de soldados armados com anacrônicos fuzis Kalashnikov e os muros de concreto erguidos diante das embaixadas lembram a todo instante que a desgraça está à espreita. Só nos dois primeiros meses do ano, a capital do Afeganistão foi alvo de duas séries de atentados cometidos por homens-bomba, nas quais 21 pessoas morreram. O país foi apontado, no último relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como o lugar mais perigoso do mundo para gerar uma criança. Mas pior do que vir à luz é nascer mulher no Afeganistão.
Nove anos depois da queda do regime do Talibã, as afegãs continuam pagando a parte mais pesada da conta do fundamentalismo religioso. Nas ruas, a maioria ainda usa a burca, a roupa que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça e que era uniforme compulsório no tempo da milícia talibã. Embora as escolas para mulheres não sejam mais proibidas, as estudantes representam uma porcentagem ínfima da população feminina e mais da metade das afegãs ainda se casa antes dos 16 anos de idade – salvo raríssimas exceções, com homens escolhidos por sua família. Sob o totalitarismo medieval do Talibã, as que saíam às ruas desacompanhadas do marido ou de um parente do sexo masculino eram castigadas a chibatadas. Hoje, a proibição não existe mais, mas as afegãs continuam ausentes da paisagem. Para elas, qualquer lugar onde haja aglomeração masculina é considerado impróprio, o que inclui mercados, feiras, cinemas e parques. A segregação sexista faz com que até nos saguões dos aeroportos e nas festas de casamento exista um "setor feminino" – só no primeiro caso não formalmente delimitado. Nas bodas em que as mulheres comparecem maquiadas e com belos vestidos, quase sempre há dois salões – um para eles e outro para elas. Poucas se arriscam a desafiar as proibições sociais. A aplicação de castigos físicos a mulheres de "mau comportamento" continua a ser vista como um dever e um direito da família. Uma pesquisa feita em 2008 com 4 700 afegãs mostrou que 87% já tinham sido vítimas de espancamentos ou abusos sexuais e psicológicos – em 82% dos casos, infligidos por parentes. O Afeganistão livrou-se do jugo do Talibã, mas não conseguiu varrer o obscurantismo religioso que ele ajudou a disseminar. A interpretação radical e misógina dos princípios do Islã é a principal causa da tragédia das mulheres afegãs.
A prática da autoimolação é um dos sinais mais cruéis de sua magnitude. Entre 2008 e 2009, ao menos oitenta afegãs tentaram o suicídio ateando fogo ao corpo. Na província de Herat, a oeste de Cabul, a incidência desse tipo de episódio é tão alta que o principal hospital da região montou uma unidade para atender exclusivamente a casos assim. Quando a reportagem de VEJA visitou o lugar, havia três mulheres internadas por queimaduras autoinfligidas. Todas tinham menos de 26 anos e eram analfabetas. No Afeganistão, apenas 15% das mulheres com mais de 15 anos sabem ler e escrever. Rahime, de 25 anos, deu entrada no hospital com 35% do corpo queimado. Ela disse que tentou se imolar porque "estava cansada de viver". Contou que se casou aos 10 anos de idade e, desde então, engravidou seis vezes (sofreu três abortos espontâneos). A mãe estava com ela no hospital. Indagada sobre as razões que a fizeram permitir que a filha se casasse tão cedo, explicou que, na verdade, não a deu em casamento, mas foi obrigada a vendê-la. O marido era lavrador em uma plantação de ópio e não conseguia sustentar a família, de oito filhos. "Ficávamos três ou quatro noites sem ter o que comer", afirmou ela. Rahime foi entregue a um comerciante da região em troca de 200 000 afeganes, o equivalente a 4 300 dólares, divididos em dez pagamentos. O comerciante, hoje seu marido, é "bem mais velho" do que ela, mas nem a jovem nem a mãe souberam precisar quanto.
"CANSADA DE VIVER"
Rahime, de 25 anos, ateou fogo ao corpo jogando querosene sobre a cabeça.
Ela foi dada em casamento aos 10 anos de idade
Para atear fogo em si próprias, as mulheres costumam recorrer a óleo de cozinha ou ao querosene usado para acender lampiões. Apenas 6% das casas na zona rural do país têm eletricidade. O óleo provoca queimaduras mais graves do que o querosene, porque gruda na pele, o que faz com que o calor permaneça por mais tempo em contato com o corpo. Tanto o óleo quanto o querosene superam a água fervente, já que a fumaça que produzem pode causar, além de intoxicação, queimaduras internas. A maior parte das mulheres que tentam imolar-se não morre na hora, mas depois de alguns dias, vítima de falência de múltiplos órgãos resultante da perda de água. Rahime tinha o rosto e o corpo enfaixados. Ela verteu querosene sobre a cabeça, e não sobre o peito, como ocorre com mais frequência. Enquanto falava, uma policial se aproximou da sua cama para interrogá-la sobre os motivos da tentativa de suicídio. A investigadora Zulaikha Qambari trabalha há três anos no Departamento para Solução de Conflitos Familiares da Delegacia de Herat. Rahime disse a ela que decidiu atear fogo ao corpo porque a sogra passou a maltratá-la desde que o seu marido foi trabalhar no Irã. As duas mulheres deitadas ao lado da jovem também culparam alguém da família pelo ato extremo: uma diz que decidiu se matar depois de apanhar do padrasto do marido e outra afirmou que tomou a decisão por causa de uma briga com a cunhada em torno de um cosmético que havia ganho de presente. A policial Zulaikha afirmou estar habituada a ouvir justificativas como essas. "Algumas mulheres demoram para contar a história inteira, que muitas vezes inclui estupros e espancamentos sistemáticos. Outras nem são capazes de explicar por que fizeram aquilo. Apenas dizem que não querem mais viver." Quando a reportagem se preparava para deixar o hospital, deparou com a chegada de uma quarta vítima. Ruquia, de 15 anos, proveniente da província vizinha de Badghis. Ela apresentava 45% do corpo queimado. A mãe disse aos médicos que a filha havia se acidentado fazendo chá. "Mentira", sussurrou o enfermeiro. "Sinta o cheiro de querosene que exala do corpo dela." A menina estava casada havia um ano.
A quantidade de mulheres que tentam imolar-se no Afeganistão atingiu o auge em 2004, quando só o hospital de Herat recebeu 350. Desde então, o número de vítimas tem-se mantido estável – e surpreendentemente mais alto do que o registrado no tempo em que o Talibã mandava no país. "Naquele período, quase não recebíamos casos como esses", afirma o diretor da unidade de queimados, Hamayoon Azizi, que há doze anos trabalha no hospital. Isso não quer dizer que as mulheres tinham menos motivos para sofrer no passado. Durante os cinco anos em que esteve no poder, o Talibã proibiu-as de trabalhar e de estudar. Instituiu a pena de apedrejamento para adúlteras e baniu qualquer tipo de entretenimento, incluindo cinema, televisão e até a brincadeira de empinar pipas, tradicional no país. A música também foi vetada, e quem fosse achado com uma fita cassete no carro era preso. Para o médico Azizi, o aumento no número de casos de autoimolação em relação àquele período é fruto do contato que muitas afegãs tiveram com o Irã, onde a prática está disseminada há mais tempo. O Irã faz fronteira com a província de Herat e, com o Paquistão, foi escolhido como refúgio por milhões de afegãos que deixaram o seu país no fim dos anos 90. Com a queda do Talibã, esses refugiados começaram a retornar ao Afeganistão – trazendo, na hipótese do médico, o "know-how" da autoimolação.
A engenheira civil Sabzina Hasanzada foi uma das muitas mulheres que abandonaram o Afeganistão para fugir do Talibã. Ela ficou viúva aos 31 anos e perdeu seu único irmão na guerra civil que antecedeu a vitória da milícia. Sem um homem para acompanhá-la na rua, como exigiam os radicais, ela tinha dificuldades até mesmo para abastecer a despensa da casa em que morava com as duas filhas. Resolveu mudar-se para o Paquistão e só voltou quando o regime caiu, em 2001. Hoje, está de volta ao seu trabalho no Ministério da Energia, onde ganha o equivalente a 400 dólares por mês. Mora na área antiga de Cabul, próxima ao mercado principal, aonde só vai de burca, embora deteste a roupa. "Evita que os vizinhos façam fofocas e que os homens cheguem perto", disse a VEJA. No mercado, a frequência é predominantemente masculina. É costume no país os homens fazerem as compras domésticas, orientados pelas mulheres, cujo lugar, supõem, é dentro de casa. Além disso, fica nesse mercado a maior feira de pássaros da capital, e criá-los para rinhas é um dos passatempos masculinos. Na verdade, qualquer briga é um passatempo para os afegãos. Há lutas organizadas de faisões, cães e camelos. Até as pipas brigam pela supremacia no céu, o que é compreensível num país que se vangloria da valentia de seus guerreiros e se orgulha de exibir na sua história a expulsão de duas potências invasoras, a britânica e a russa.
Sabzina, que se formou na Universidade de Cabul, faz questão de que as filhas, Frieshta, de 15 anos, e Silsila, de 12, frequentem a escola. Embora no ano passado 102 colégios para meninas do país tenham sido alvo de ataques atribuídos a membros do Talibã contrários à educação para mulheres, as escolas da capital eram consideradas seguras. Isso mudou no último dia 27, quando 22 meninas e três professoras foram hospitalizadas depois de ter sido expostas a um gás não identificado e caído inconscientes na sala de aula. Segundo a polícia, o ataque seguiu o padrão de três outros atribuídos ao Talibã, ocorridos pouco antes na província de Kunduz, no extremo norte do país. Os episódios reforçaram a sensação de que nuvens escuras continuam a pairar sobre o Afeganistão – mais precisamente, sobre a cabeça das mulheres do Afeganistão. Outros indícios recentes foram a aprovação de uma lei que obriga a esposa xiita a fazer sexo com seu marido sempre que ele exigir, sob pena de ser privada de sustento por ele, e a série de ataques a mulheres parlamentares. A ex-deputada Malalai Joya teve o mandato cassado ao defender
a secularização do estado afegão e Fawzia Koofi sofreu um atentado a tiros, em março, depois de ter recebido seguidas ameaças de morte por criticar a aprovação do chamado "estupro marital" para a minoria xiita.
Analistas da situação política afegã acreditam que a "talibanização" do país é fruto principalmente da aliança firmada pelo presidente Hamid Karzai com lideranças de partidos religiosos fundamentalistas nas eleições do ano passado – um apoio que ele agora precisa retribuir. O governo Karzai é fraco e corrupto. No ranking da Transparência Internacional dos países mais honestos do mundo, o Afeganistão era, até 2005, o 117º entre 180. Na última classificação, em 2009, caiu para o 179º posto. A corrupção lá chega a ser palpável. No bairro mais rico de Cabul, Sherpur, o conjunto de casas originalmente pertencentes aos "barões do ópio" (o Afeganistão produz 92% da substância usada no mundo para a fabricação de heroína) foi rebatizado de "Char-pur" – algo como "lugar de saqueadores". Isso porque, desde o início do governo Karzai, ele passou a abrigar também funcionários públicos cujo salário, estima-se, não seria suficiente para comprar nem um dos muitos lustres de cristal que pendem das varandas das casas – repletas de vidros verdes espelhados e outros itens de decoração compatíveis com a fineza atribuída aos seus moradores. Um dos poucos sinais de que os rumos do Afeganistão podem mudar um dia é um ainda incipiente, porém crescente, interesse dos jovens pela política, motivado em parte por uma campanha lançada por organizações não governamentais em 2009. A corredora Robina Jalali está entre esses jovens. Aos 25 anos, ela foi a primeira atleta afegã a participar de uma Olimpíada. De família rica (o pai, informou seu irmão, trabalha com exportação), ela ouve Shakira e Jennifer Lopez, veste roupas compradas em Dubai e conhece mais de vinte países. Cursa ciências políticas na Universidade de Karwan e já está em campanha para concorrer a uma vaga no Parlamento. "Quero que o Afeganistão se orgulhe de mim, mas também quero me orgulhar dele", diz.
CORRIDA CONTRA O ATRASO
A corredora Robina Jalali foi a primeira atleta afegã a participar de uma Olimpíada.
Ela se maquia, veste roupas compradas em Dubai e agora planeja concorrer a uma vaga no Parlamento. Diz que quer um dia sentir orgulho do seu país, o segundo mais corrupto do mundo e o mais perigoso para uma criança nascer, segundo o Unicef. Ao lado, menina diante da casa dos pais, no centro de Cabul
O presidente Hamid Karzai, segundo relatório do Pentágono divulgado no mês passado, conta com o apoio de apenas 29 das 121 áreas do país consideradas estratégicas para o seu governo – muitas delas sob comando de líderes tribais. As demais, conforme o relatório, ou não têm posição firmada ou apoiam os insurgentes do Talibã. Esse é um dos motivos pelos quais, em visita aos Estados Unidos na semana passada, Karzai reafirmou que, por ele, a "reconciliação nacional" do Afeganistão tem de passar por uma negociação com os chefões do Talibã. Os mesmos que foram apeados do poder em setembro de 2001 por sua cumplicidade com os terroristas da Al Qaeda. Trata-se de um pacto com o demônio. Caso ele vingue, mulheres como Robina, Rahime, Sabzina e suas filhas continuarão a arcar com uma conta não só pesada demais, como a perder de vista.
REDUTO FEMININO
Os shoppings estão entre os poucos lugares que as afegãs podem frequentar. Nos demais, onde há aglomeração masculina, existem restrições. Até em saguões de aeroportos e festas de casamento elas têm de ficar em setores separados dos destinados aos homens
Os shoppings estão entre os poucos lugares que as afegãs podem frequentar. Nos demais, onde há aglomeração masculina, existem restrições. Até em saguões de aeroportos e festas de casamento elas têm de ficar em setores separados dos destinados aos homens
A CAPITAL
Rodeada por montanhas, Cabul tem vias sem faixas, poucas calçadas e menos mulheres ainda nas ruas
Rodeada por montanhas, Cabul tem vias sem faixas, poucas calçadas e menos mulheres ainda nas ruas
MANSÕES DO ÓPIO
As casas de Sherpur, onde vivem grandes traficantes e, agora, também funcionários do governo.
Ao lado, afegãos rezam no parque Qargha – como todo parque, "inapropriado" para mulheres.
Nos fins de semana, só homens são vistos divertindo-se na roda-gigante e nos pedalinhos
As casas de Sherpur, onde vivem grandes traficantes e, agora, também funcionários do governo.
Ao lado, afegãos rezam no parque Qargha – como todo parque, "inapropriado" para mulheres.
Nos fins de semana, só homens são vistos divertindo-se na roda-gigante e nos pedalinhos
"MERCADO DO BUSH"
Assim os moradores de Cabul chamam a feira que vende produtos desviados da base militar americana de Bagram. À esquerda,, vendedor exibe suas aves no mercado de pássaros da capital
Um celeiro de homens-bomba
Assim os moradores de Cabul chamam a feira que vende produtos desviados da base militar americana de Bagram. À esquerda,, vendedor exibe suas aves no mercado de pássaros da capital
Um celeiro de homens-bomba
O PAQUISTANÊS Muhibullah, preso em Pul-e-Charkhi (à esq.) por planejar explodir-se num atentado
Se houvesse um ranking das penitenciárias mais explosivas do mundo, Pul-e-Charkhi estaria no topo. Entre os seus 4 622 detentos, estão 72 homens-bomba – afegãos e paquistaneses –, condenados em pelo menos uma instância judicial por planejar ou tentar cometer um atentado suicida. A prisão de Pul-e-Char-khi fica num descampado poeirento na periferia leste de Cabul. Ganhou notoriedade por ter sido palco da execução de milhares de prisioneiros políticos no tempo em que o Afeganistão esteve sob o regime comunista (1979-1989) e por abrigar, até dois anos atrás, quase setenta crianças e bebês. No Afeganistão, as presas podem manter os filhos pequenos junto a si. Até 2008, as crianças de Pul-e-Charkhi, além de ter de cumprir pena com as mães, eram obrigadas a conviver com milhares de homens condenados. A situação só mudou depois que o governo afegão criou a primeira penitenciária feminina de Cabul.
VEJA entrevistou seis presos de Pul-e-Charkhi acusados de planejar ou tentar levar a cabo um ataque suicida em território afegão. Diante da reportagem, todos alegaram inocência – mesmo os já condenados em segunda instância pelo crime, como o paquistanês Muhibullah, de 22 anos, ex-estudante de um madraçal em Peshawar, e os que foram pegos com a boca na botija, como o afegão Malin, 26 anos, pintor de paredes em Cabul, com quem a polícia encontrou um colete recheado de explosivos. O único a ser apresentado algemado à reportagem foi o afegão Abdul Jalil, preso há um ano e meio, depois de tentar explodir-se em Nangrahar, província na fronteira com o Paquistão. Jalil não se deixou fotografar nem quis relatar sua versão para a prisão. No entanto, a um carcereiro que lhe perguntou o que faria se fosse solto, respondeu imediatamente: "Morreria em nome de Alá".
Como é vestir uma burca
Se houvesse um ranking das penitenciárias mais explosivas do mundo, Pul-e-Charkhi estaria no topo. Entre os seus 4 622 detentos, estão 72 homens-bomba – afegãos e paquistaneses –, condenados em pelo menos uma instância judicial por planejar ou tentar cometer um atentado suicida. A prisão de Pul-e-Char-khi fica num descampado poeirento na periferia leste de Cabul. Ganhou notoriedade por ter sido palco da execução de milhares de prisioneiros políticos no tempo em que o Afeganistão esteve sob o regime comunista (1979-1989) e por abrigar, até dois anos atrás, quase setenta crianças e bebês. No Afeganistão, as presas podem manter os filhos pequenos junto a si. Até 2008, as crianças de Pul-e-Charkhi, além de ter de cumprir pena com as mães, eram obrigadas a conviver com milhares de homens condenados. A situação só mudou depois que o governo afegão criou a primeira penitenciária feminina de Cabul.
VEJA entrevistou seis presos de Pul-e-Charkhi acusados de planejar ou tentar levar a cabo um ataque suicida em território afegão. Diante da reportagem, todos alegaram inocência – mesmo os já condenados em segunda instância pelo crime, como o paquistanês Muhibullah, de 22 anos, ex-estudante de um madraçal em Peshawar, e os que foram pegos com a boca na botija, como o afegão Malin, 26 anos, pintor de paredes em Cabul, com quem a polícia encontrou um colete recheado de explosivos. O único a ser apresentado algemado à reportagem foi o afegão Abdul Jalil, preso há um ano e meio, depois de tentar explodir-se em Nangrahar, província na fronteira com o Paquistão. Jalil não se deixou fotografar nem quis relatar sua versão para a prisão. No entanto, a um carcereiro que lhe perguntou o que faria se fosse solto, respondeu imediatamente: "Morreria em nome de Alá".
Como é vestir uma burca
O MUNDO ATRÁS DA TELA
O visor da burca impede a visão lateral e torna difícil enxergar os pés
A primeira constatação é que ela permite enxergar melhor do que se imagina. À luz do dia, os olhos aprendem rapidamente a ignorar a interferência da trama quadriculada que serve de visor da roupa. Ao menos quando se olha para a frente, dá para ver tudo com clareza. Já a visão lateral desaparece de dentro de uma burca. Olhar para os lados requer virar completamente a cabeça, e o primeiro tropeção ensina que enxergar os pés – assim como os muitos buracos que surgem diante deles nas ruas sem calçada e sem asfalto de Cabul – é outra tarefa complicada para uma mulher nessa situação. É por isso que quase todas caminham com uma das mãos sobre o peito, pressionando o tecido contra o corpo. Só assim conseguem ver um pouco melhor onde pisam. A sensação ao usar a roupa é a de estar dentro de uma barraca de camping, de onde se pode espreitar o mundo sem ser visto, já que ninguém presta atenção numa mulher de burca – você é só mais um ponto azul movimentando-se na paisagem.
Até vinte anos atrás, as burcas eram feitas de algodão e plissadas a mão. Hoje, são de poliéster e fabricadas na China. Custam o equivalente a 20 dólares e, ao contrário das antigas, não amassam, não desbotam e não perdem as pregas jamais. Mas são abafadas como o inferno – e causam dor de cabeça, resultado da pressão do elástico interno que prende a peça em torno do crânio. Em compensação, as burcas protegem contra as moscas que sobrevoam os muitos esgotos a céu aberto de Cabul. Embora só as mãos fiquem visíveis, quem quiser perscrutar quem está sob uma burca pode começar prestando atenção na cor do tecido. Quanto mais claro o tom de azul (sempre azul, já que a ideia é não ser original), mais jovem é a mulher que está debaixo dela.
Conforme o dia escurece, a visão vai piorando. A quantidade de tropeções aumenta e a sensação de claustrofobia começa a dar comichão nas mãos. Puxo finalmente o véu e descubro o rosto. Burcas podem proteger contra a poeira, a gripe A e o "bad hair day", mas tirá-las – e sentir a lufada de ar fresco que adentra os pulmões – é a melhor parte da experiência de vesti-las.
O Jackie Chan afegão
SOCOS E LÁGRIMAS
Cartaz do filme O Fim, 103º produzido pelo ator e diretor Salim Shaheen (à esq.):
tragédias do Afeganistão para quem está longe dele
Roteirista, produtor, diretor e ator autodidata, Salim Shaheen acaba de terminar seu 103º longa-metragem. Como todos os anteriores, Farjam (O Fim) não custou mais do que 30 000 dólares e demorou menos de cinco meses para ficar pronto. Tem socos e pontapés em abundância – Shaheen é fã do diretor e ator chinês Jackie Chan, de quem empresta os golpes de kung fu e um certo humor, às vezes involuntário – e lágrimas suficientes para encher o Rio Helmand, o maior do Afeganistão. Só nos primeiros cinco minutos da fita, três parentes do personagem principal vão ao encontro de Alá: a irmãzinha, vítima da pobreza da família, que não pôde comprar-lhe remédios; o pai, atropelado quando tentava buscar socorro para a menina; e a mãe, fulminada por um ataque cardíaco ao receber a notícia do atropelamento do marido.
Ao falar dos sofrimentos impostos pela pobreza – e também das tragédias de amor decorrentes de casamentos forçados, das histórias de devoção filial, sacrifícios maternos e honra familiar –, Shaheen leva um pouco do Afeganistão para os que estão saudosos dele. Ao longo de trinta anos de guerras, estima-se que quase um terço da população tenha abandonado o país. Só no Paquistão e no Irã vivem até hoje 3 milhões de afegãos desterrados. Eles estão espalhados também pela Índia, Alemanha e Canadá e são o principal público dos DVDs de Shaheen, cujas personagens femininas quase sempre aparecem sem véu. As ousadias do cineasta já fizeram com que diversas de suas atrizes fossem agredidas na rua. Suspeita-se que uma delas, Mursal Negah, de 22 anos, tenha tido sorte pior. Recentemente, ela surgiu em uma fita de Shaheen dançando numa roda de homens com os cabelos descobertos. Pela cena, recebeu ameaças de parentes e decidiu mudar-se para o Canadá. Antes que isso ocorresse, no entanto, foi encontrada morta. Seus pais só comunicaram o fato ao diretor e aos amigos da atriz em março, um mês depois de ela ter sido enterrada, sem autópsia. Segundo a família, Mursal foi vítima de ataque cardíaco.
O livreiro de Cabul quer fazer as pazes
Cartaz do filme O Fim, 103º produzido pelo ator e diretor Salim Shaheen (à esq.):
tragédias do Afeganistão para quem está longe dele
Roteirista, produtor, diretor e ator autodidata, Salim Shaheen acaba de terminar seu 103º longa-metragem. Como todos os anteriores, Farjam (O Fim) não custou mais do que 30 000 dólares e demorou menos de cinco meses para ficar pronto. Tem socos e pontapés em abundância – Shaheen é fã do diretor e ator chinês Jackie Chan, de quem empresta os golpes de kung fu e um certo humor, às vezes involuntário – e lágrimas suficientes para encher o Rio Helmand, o maior do Afeganistão. Só nos primeiros cinco minutos da fita, três parentes do personagem principal vão ao encontro de Alá: a irmãzinha, vítima da pobreza da família, que não pôde comprar-lhe remédios; o pai, atropelado quando tentava buscar socorro para a menina; e a mãe, fulminada por um ataque cardíaco ao receber a notícia do atropelamento do marido.
Ao falar dos sofrimentos impostos pela pobreza – e também das tragédias de amor decorrentes de casamentos forçados, das histórias de devoção filial, sacrifícios maternos e honra familiar –, Shaheen leva um pouco do Afeganistão para os que estão saudosos dele. Ao longo de trinta anos de guerras, estima-se que quase um terço da população tenha abandonado o país. Só no Paquistão e no Irã vivem até hoje 3 milhões de afegãos desterrados. Eles estão espalhados também pela Índia, Alemanha e Canadá e são o principal público dos DVDs de Shaheen, cujas personagens femininas quase sempre aparecem sem véu. As ousadias do cineasta já fizeram com que diversas de suas atrizes fossem agredidas na rua. Suspeita-se que uma delas, Mursal Negah, de 22 anos, tenha tido sorte pior. Recentemente, ela surgiu em uma fita de Shaheen dançando numa roda de homens com os cabelos descobertos. Pela cena, recebeu ameaças de parentes e decidiu mudar-se para o Canadá. Antes que isso ocorresse, no entanto, foi encontrada morta. Seus pais só comunicaram o fato ao diretor e aos amigos da atriz em março, um mês depois de ela ter sido enterrada, sem autópsia. Segundo a família, Mursal foi vítima de ataque cardíaco.
O livreiro de Cabul quer fazer as pazes
SHAH RAIS, que inspirou o best-seller da noruguesa Asne Seierstad, em sua livraria no centro de Cabul (à direita, a fachada que, como todas da capital afegã, implora por uma tinta)
Shah Muhammad Rais diz que cansou de brigar. Depois de seis anos percorrendo os tribunais noruegueses em busca de "reparação" pelos supostos danos decorrentes da publicação do best-seller O Livreiro de Cabul, inspirado nele e em sua família, Rais afirmou a VEJA que vai retirar o processo contra a autora, a jornalista norueguesa Asne Seierstad. "Ela já reconheceu o mal que fez", disse. Na obra, a jornalista descreve o livreiro, chamado na história de "Sultan", como um pai tirano e um marido insensível, que, entre outras coisas, fez a mulher chorar por vinte dias ao adotar uma segunda e adolescente esposa, para a qual reservava frutas e guloseimas negadas aos demais integrantes da família.
Para escrever o livro, Asne morou por três meses na casa de Rais – hoje, vazia. Ele agora vive no andar superior de sua livraria, no centro da capital afegã, com os dois filhos mais velhos. A primeira mulher mora no Canadá. A segunda, em Oslo. Rais chegou a declarar que foi obrigado a tirá-las do Afeganistão, juntamente com seis de seus oito filhos, porque trechos do livro de Asne poriam em risco a segurança delas e das crianças. Hoje, no entanto, admite que a família nunca recebeu nenhuma ameaça e que, no caso da primeira mulher, a mudança para o Canadá se deu "apenas por precaução". Quanto à segunda, que Rais nega ser a sua preferida, ele explica que o que ocorreu foi que ela, grávida de nove meses, o acompanhou numa viagem a Oslo para tratar do processo contra a jornalista e lá deu à luz o caçula do casal, que nasceu com graves problemas respiratórios. "Meu filho teria morrido se não fossem os médicos noruegueses", conta. Hoje, com 4 anos de idade, a criança ainda sofre de complicações respiratórias sérias que lhe valeram asilo humanitário e tratamento gratuito em Oslo. "A generosidade do povo norueguês é um dos motivos pelos quais quero acabar com esse processo", diz Rais. Há dois anos, ele esteve no Brasil. O que mais o impressionou na visita? A diversidade da população ("Negros, brancos, orientais, tudo misturado") e o restaurante Porcão. "Maravilhoso. Pretendo voltar lá um dia e levar a minha mulher. Quer dizer, as minhas mulheres."
19 de maio de 2010
Revista Veja
Um comentário:
Olá Eduardo :)
Este é, sem dúvida alguma, o melhor texto que li sobre o Afeganistão.
Vou fazer link mais logo... impreterivelmente!
Um grande abraço e... muito, muito obrigado!
Bem-haja! :)
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