Luiz Antonio Simas
CURTO, José C. Álcool e escravos. Lisboa, Editora Vulgata, 2002, 402p.
O trabalho de José C. Curto preenche importante lacuna nos estudos sobre o álcool no Continente africano, entre os séculos XV e XIX. Ao buscar estabelecer as conexões entre o álcool e a aquisição de cativos na costa ocidental africana, o autor sistematiza as implicações de uma atividade comercial que marcou as economias da África, do Brasil e de Portugal.
Optando por uma análise de viés quantitativo, Curto divide o comércio em dois períodos distintos. O primeiro vai de meados do século XV até cerca de 1650, e é caracterizado pela importação e comercialização do vinho, com a preponderância do produto português como moeda de troca do comércio negreiro. A partir, entretanto, de meados do século XVII, e até a proibição do tráfico ao Sul do Equador, a cachaça foi a mais importante bebida alcoólica importada pela costa ocidental da África, sendo largamente utilizada por comerciantes brasileiros para conseguir escravos.
Esta transição se explica por uma série de vantagens que a cachaça teria em relação ao vinho. O preço da produção era mais baixo, o custo do transporte era mais barato, em virtude do menor tempo de navegação entre o Brasil e Luanda, e a cachaça era volumosa como lastro para navios em viagem. Além disso, a geribita oferecia aos fornecedores de escravos africanos a possibilidade de adquirirem proporcionalmente maiores quantidades de bebida. O vinho era mais caro, menos alcoólico e propenso a se estragar. Por ser bastante alcoolizada e destilada, a cachaça resistia à deterioração na viagem.
Acompanhando atentamente este processo, Curto questiona as análises que atribuíam ao tabaco e ao ouro a primazia na organização do comércio negreiro. Foram o vinho mediterrânico, inicialmente, e a cachaça brasileira, mais tarde, as mercadorias essenciais no peculiar comércio de homens.
Um ponto crucial do trabalho do autor é aquele que se refere ao lado africano do comércio de escravos. Sem negar a decisiva participação dos portugueses e dos colonos do Brasil no negócio, Curto enfatiza a participação fundamental de uma vasta gama de lideranças políticas e religiosas africanas que estimulavam e eram elementos ativos das operações comerciais negreiras. Foi marcante, também, o envolvimento de autoridades coloniais nas transações envolvendo o álcool e os cativos, sendo emblemático o caso do governador de Angola, João da Silva e Souza, que depois de deixar o governo transferiu-se para Pernambuco e começou a exportar significativas quantidades de cachaça para Luanda.
Como toda obra que nasce como referência, o trabalho de Curto também é estimulante pelas lacunas que não preenche. Permanece a dúvida, por exemplo, sobre as razões que impediram o desenvolvimento da produção de cachaça no território angolano. A justificativa que o governador de Angola em 1660, Francisco de Távora, deu ao Conselho Ultramarino, de que o desinteresse da população e a falta de lenha não estimulavam a produção do açúcar na costa, parece encobrir razões mais profundas que não permitiam o desenvolvimento da produção local. Mais estranho ainda é constatar que a partir do fim do trafico, em meados do século XIX, a geribita foi desaparecendo de Angola. Era de se esperar, em virtude da boa aceitação da bebida, que algum tipo de produção local se estruturasse.
Pena também, como salientou, na Introdução, Alfredo Margarido, que a documentação disponível não nos permita calcular os lucros obtidos pelos africanos envolvidos no processo. Os dados quantitativos permitem concluir que os lucros alcançados pelos europeus e brasileiros podiam chegar a 500% do capital investido. Sobre os locais, não há condições de se afirmar nada preciso, ficando apenas um vago silêncio como desafio para os que tentarem esmiuçar as repercussões africanas do negócio.
Fica, portanto, o estudo de Curto, como uma obra relevante para os estudos sobre a dinâmica das relações que envolveram Europa, América e África ao longo de mais de quatro séculos, e já não é sem demora que os leitores em língua portuguesa podem, finalmente, ter acesso a um trabalho de referência sobre um tema que, dos dois lados do Atlântico, tece o bordado de sombras de uma triste história.
Revista Estudos Afro-Asiáticos
CURTO, José C. Álcool e escravos. Lisboa, Editora Vulgata, 2002, 402p.
O trabalho de José C. Curto preenche importante lacuna nos estudos sobre o álcool no Continente africano, entre os séculos XV e XIX. Ao buscar estabelecer as conexões entre o álcool e a aquisição de cativos na costa ocidental africana, o autor sistematiza as implicações de uma atividade comercial que marcou as economias da África, do Brasil e de Portugal.
Optando por uma análise de viés quantitativo, Curto divide o comércio em dois períodos distintos. O primeiro vai de meados do século XV até cerca de 1650, e é caracterizado pela importação e comercialização do vinho, com a preponderância do produto português como moeda de troca do comércio negreiro. A partir, entretanto, de meados do século XVII, e até a proibição do tráfico ao Sul do Equador, a cachaça foi a mais importante bebida alcoólica importada pela costa ocidental da África, sendo largamente utilizada por comerciantes brasileiros para conseguir escravos.
Esta transição se explica por uma série de vantagens que a cachaça teria em relação ao vinho. O preço da produção era mais baixo, o custo do transporte era mais barato, em virtude do menor tempo de navegação entre o Brasil e Luanda, e a cachaça era volumosa como lastro para navios em viagem. Além disso, a geribita oferecia aos fornecedores de escravos africanos a possibilidade de adquirirem proporcionalmente maiores quantidades de bebida. O vinho era mais caro, menos alcoólico e propenso a se estragar. Por ser bastante alcoolizada e destilada, a cachaça resistia à deterioração na viagem.
Acompanhando atentamente este processo, Curto questiona as análises que atribuíam ao tabaco e ao ouro a primazia na organização do comércio negreiro. Foram o vinho mediterrânico, inicialmente, e a cachaça brasileira, mais tarde, as mercadorias essenciais no peculiar comércio de homens.
Um ponto crucial do trabalho do autor é aquele que se refere ao lado africano do comércio de escravos. Sem negar a decisiva participação dos portugueses e dos colonos do Brasil no negócio, Curto enfatiza a participação fundamental de uma vasta gama de lideranças políticas e religiosas africanas que estimulavam e eram elementos ativos das operações comerciais negreiras. Foi marcante, também, o envolvimento de autoridades coloniais nas transações envolvendo o álcool e os cativos, sendo emblemático o caso do governador de Angola, João da Silva e Souza, que depois de deixar o governo transferiu-se para Pernambuco e começou a exportar significativas quantidades de cachaça para Luanda.
Como toda obra que nasce como referência, o trabalho de Curto também é estimulante pelas lacunas que não preenche. Permanece a dúvida, por exemplo, sobre as razões que impediram o desenvolvimento da produção de cachaça no território angolano. A justificativa que o governador de Angola em 1660, Francisco de Távora, deu ao Conselho Ultramarino, de que o desinteresse da população e a falta de lenha não estimulavam a produção do açúcar na costa, parece encobrir razões mais profundas que não permitiam o desenvolvimento da produção local. Mais estranho ainda é constatar que a partir do fim do trafico, em meados do século XIX, a geribita foi desaparecendo de Angola. Era de se esperar, em virtude da boa aceitação da bebida, que algum tipo de produção local se estruturasse.
Pena também, como salientou, na Introdução, Alfredo Margarido, que a documentação disponível não nos permita calcular os lucros obtidos pelos africanos envolvidos no processo. Os dados quantitativos permitem concluir que os lucros alcançados pelos europeus e brasileiros podiam chegar a 500% do capital investido. Sobre os locais, não há condições de se afirmar nada preciso, ficando apenas um vago silêncio como desafio para os que tentarem esmiuçar as repercussões africanas do negócio.
Fica, portanto, o estudo de Curto, como uma obra relevante para os estudos sobre a dinâmica das relações que envolveram Europa, América e África ao longo de mais de quatro séculos, e já não é sem demora que os leitores em língua portuguesa podem, finalmente, ter acesso a um trabalho de referência sobre um tema que, dos dois lados do Atlântico, tece o bordado de sombras de uma triste história.
Revista Estudos Afro-Asiáticos
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