O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX
Alberto da Costa e Silva
O início do século XIX caracteriza-se por um aguçamento dos nacionalismos. E não só na Europa, mas também nas duas margens mais ao sul do Atlântico. Na América, as colônias espanholas e portuguesa independentizam-se; na África, os grandes agrupamentos étnicos se consolidam.
O Oitocentos é também o século em que o Reino Unido procura fazer do Atlântico um mar inglês; o século em que se destrói o tráfico triangular entre a Europa, a América e a África e em que se desfazem as ligações bilaterais entre os dois últimos continentes; o século em que as sociedades africanas, até então fora das grandes rotas do caravaneiro e do navegador, começam a integrar-se, ainda que de modo imperfeito, nas estruturas políticas mundiais.
Na realidade, a África só abria para o exterior um pouco da casca. Assim fora desde sempre. O estrangeiro se parava no Sudd, ao sul da Núbia, em Ualata, Gana, Gaô, Tombuctu e outros caravançarais do Sael, em Quiloa, Mombaça, Angoche, Zanzibar e iguais feitorias do Índico e, desde a abertura do Atlântico, nos entrepostos e fortins de Bissau, El Mina, Ajudá, Luanda, Benguela e tantos mais. Até meados do século XIX, o europeu só avançava alguns passos para fora de seus muros e paliçadas em algumas poucas áreas e, na maior parte dos casos, com o consentimento e o apoio dos africanos, ou sob sua vigilância.
Isso não impediu que se fossem estabelecendo, desde o século XVII, mas sobretudo a partir do XVIII, fortes vínculos entre certos pontos do litoral africano e as costas atlânticas das Américas, como conseqüência do tráfico de escravos. O comércio de braços humanos não aproximou apenas as praias que ficavam frente a frente, mas estendeu sertão adentro o seu alinhavado, uma vez que muitos dos escravos trazidos para o Brasil e que foram trabalhar em Minas ou Goiás vieram de regiões do interior do continente africano, das savanas e das bordas dos desertos. Não eram, portanto, falsos, como pareceram a tantos leitores e críticos, os versos em que Castro Alves se referia a escravos como vindos de regiões áridas. O poeta, que tinha familiares envolvidos no tráfico, sabia do que falava, quando em O Navio Negreiro, descreveu os cativos a dançarem no convés como "os filhos do deserto / onde a terra esposa a luz, / onde voa em campo aberto / a tribo dos homens nus ..." Ou quando, em A Canção Ao Africano, disse, da terra deste, que ''o sol faz lá tudo em fogo, / faz em brasa toda a areia''.
Ainda que os contatos diretos entre europeus, americanos e africanos não passassem, na África, muito além da linha em que findavam as praias, as notícias esgarçavam-se pelo interior e certas novidades, e só certas novidades, expandiam-se rapidamente. Assim, a África recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil e Cuba faziam seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa.
As trocas deram-se nas duas direções, e a cada um dos lados do Atlântico não era de todo desconhecido e indiferente o que se passava no outro. A independência do Brasil, por exemplo, não ficou despercebida na África — e o prova terem sido dois africanos os primeiros reis a reconhecê-la, o Obá Ósemwede, do Benim, e o Ologum Ajan, de Eko, Onim ou Lagos. Em Angola, os acontecimentos de 1822 tiveram enorme impacto, chegando a gerar uma corrente favorável à separação de Portugal e à união ao Brasil.
No território brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos por seus desafetos como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir as estruturas políticas e religiosas das terras de onde haviam partido. Isso terse-ia verificado — para citar o caso mais conhecido — com Nan Agotiné, a mãe do rei Guezô, do Danxomé, Dangomé, Daomei ou Daomé. Passada às mãos dos traficantes pelo rei Adandozã, ele teria refeito os seus altares e a sua Corte na Casa das Minas (ou Querebetam de Zomadonu), em São Luís do Maranhão (1). Outros sonharam voltar à África e reconquistar as posições perdidas, não se excluindo que hajam conspirado para isso. Não faltaria quem lhes levasse as mensagens a adeptos e descontentes na terra natal, pois a tripulação dos navios negreiros era em grande parte africana. Um desses príncipes quase logrou tornar real o sonho. Chamava-se Fruku, no Danxomé, e foi vendido ao Brasil pelo rei Tegbesu, provavelmente para permitir que Kpengla ascendesse ao trono. Viveu no Brasil vinte e quatro anos e voltou à Costa dos Escravos com o nome de Dom Jerônimo. E como Dom Jerônimo, o brasileiro, o príncipe Fruku disputou o trono do Danxomé, após a morte de Kpengla, em 1789, e só por pouco o perdeu para Agonglo (2).
Repito: muito do que se passava na África Atlântica repercutia no Brasil, e vice-versa. Os contatos através do oceano eram constantes: os cativos que chegavam traziam notícias de suas nações, e os marinheiros, os mercadores e os ex-escravos de retorno levavam as novas do Brasil e dos africanos que aqui viviam para uma África que era ainda, no início do século XIX, um continente sem senhores externos.
De colônias havia somente o Cabo da Boa Esperança e as possessões portuguesas. Não tinham elas, porém, as dimensões territoriais com que figurariam depois nos mapas. Cada uma era apenas uma coleção de pequenas cidades, vilas, vilarejos e entrepostos comerciais, com restrito acesso às terras que a circundavam e ainda menor controle efetivo sobre elas. Os numerosos estabelecimentos europeus encravados em outros pontos da Costa pagavam aluguel ou direitos de comércio aos reis, régulos ou chefes locais. Feitorias mercantis, quase todas dedicadas primordialmente ao tráfico negreiro, como Saint-Louis, Goréa, Cachéu, Bissau, El Mina e Cape Coast, suas populações continham pequena quantidade de mulatos. Esses eram mais numerosos nas comunidades fundadas por ex-escravos retornados do Brasil, Cuba e Venezuela, como Atouetá e Porto Seguro, e nos bairros brasileiros de Acra, Agoué, Ajuda, Porto Novo, Badagri e Lagos. Havia ainda o caso especial de Freetown, na Serra Leoa, onde os ingleses colocaram, como colonos, no reino temne de Koya, ex-escravos que combateram ao lado deles na guerra pela Independência dos Estados Unidos. O exemplo seria seguido, mais tarde, em Bathurst, Monrovia e Libreville. Esses refúgios para ex-escravos transformaram-se em embriões de colônias — a da Serra Leoa já em 1808 — e de uma república nos moldes americanos, a da Libéria.
A presença européia na África era, portanto, muito limitada. Discreta. Não se comparava à do Islame, que desde o século IX, atravessara o deserto e se fora lentamente derramando pelo Sael e a savana. Nos começos do século XI, os reis de Gaô e do Tacrur já eram muçulmanos e, na segunda metade do XIII, um mansa, ou soberano do Mali fazia a peregrinação a Meca. No Duzentos, Tombuctu e Jenné tornaram-se importantes centros de saber islâmico, seus passos sendo seguidos, mais tarde, pelos burgos amuralhados dos hauçás. No início do século XIX, das savanas no Senegal ao planalto do Adamaua, as instituições políticas aspiravam a ajustar-se ao modelo muçulmano, e ás elites liam o árabe e estudavam o Alcorão, ainda quando as massas continuassem fiéis às crenças tradicionais. Em muitos lugares, muito antes do primeiro pregador muçulmano, chegavam do Egito, da Líbia, do Magrebe ou do Sael islamizado o turbante, a sela com estribo, certos modos de vida e até mesmo um volume do Alcorão, com o prestígio de objeto mágico.
Também a abertura dos litorais atlânticos teria efeitos muito mais profundos sobre a África do que faria prever a diminuta presença humana européia nas franjas do continente. Pela difusão das plantas americanas, como a mandioca e o milho, que alteraram substancialmente a dieta de numerosas populações. Pela introdução das armas de fogo. Pelo surgimento de nova e crescente demanda de escravos, mais dinâmica do que as do Magrebe, do Oriente Médio e do índico. E pela atlantização de boa parte do comercio à distancia, com perda para as rotas caravaneiras do Sael e do deserto e para as estruturas políticas que delas dependiam.
Os mercados transatlânticos tornaram-se mais importantes do que os antigos mercados transarianos. A vinculação floresta-savana-Sael-deserto, através da qual desaguavam o ouro, a cola e o escravo, passou a ter de competir com a ligação savana-floresta-praia. Acentuaram-se, conseqüentemente, os liames entre os vários pontos do litoral atlântico e tornaram-se mais intensas as atividades ao longo da costa, as viagens de praia a praia que fizeram famosos os crus da Libéria, com suas longas pirogas. Elas deram renome não só a eles, mas também a tantos outros, como os ijós do delta do Niger, cujas almadias assim descreveu, no Esmeraldo de Situ Orbis (3), mal entrado no século XVI, Duarte Pacheco Pereira: "Todas feitas de um pau (...), algumas delas há tamanhas que levarão oitenta homens, e estas vêm de cima deste rio (o Real), de cem léguas e mais, e trazem muitos inhames (...) e muitos escravos e vacas e cabras e carneiros''.
Tal qual sucedera, vários séculos antes, com a chegada do cavalo como animal de guerra às estepes ressequidas e às savanas da África Ocidental, as armas de fogo alteraram as táticas de guerra e as relações de força interafricanas. Cresceu o poder centralizador dos reis, que monopolizavam o comércio externo e, portanto, o acesso aos mosquetes e à pólvora. Novos estados surgiram de chefias que controlavam os caminhos para o mar e outros se consolidaram e expandiram, muitas vezes sobre a base de um intenso sentimento nacional.
Na África, sempre houve nações, como as definiu Renan: povos unidos pelo sentimento de origem, e língua, história, crenças, desejo de viver em comum e igual vontade de destino. E sempre houve noções que se cristalizaram em estados. Basta lembrar Gana, construída pelos soninquês, e o Mali, com seu núcleo mandinga. Mas o preconceito teima em chamar tribos às nações africanas, sem ter em conta a realidade de que não podem ser tribos grupos humanos de mais de 60 milhões de pessoas, como os hauçás, ou superiores ou semelhantes em número às populações da Bélgica, do Chile e da Suécia, quando não, da Argentina e da Espanha. O conceito de nação podia, aliás, ser ainda mais profundo, na África, do que o enunciado por Renan. Assim no Danxomé. Mais que um estado-nação, o Danxomé era uma realidade espiritual: a soma dos tons mortos, desde o início dos séculos, com os vivos e com os que ainda haviam de nascer. A nação desdobrava-se no tempo sob disfarce de eternidade: dela e de sua representação como estado não se excluíam ancestrais e vindouros.
O sentimento nacionalista expande-se e se adensa na África do século XIX. Torna-se mais intenso em estados muito antigos, que podiam ter vários séculos de existência, como Ifé, Benim, Oió, Bornu, Uagadugu, Kano, Katsina, o do monomotapa e o do Angola a Kiluanje. Afirma-se em novos reinos, que tomaram forma e força sob o estímulo do tráfico de escravos. Como o Achanti, que se encorpara com a produção e o comércio do ouro e da noz de cola, antes de se assentar na venda da escravaria. Como Danxomé, negreiro quase que desde o seu início. Como Jalofo, Fante e Warri, que tendo surgido ou ganhado vigor do tráfico humano, continuaram a crescer, depois, com o mercadejo de dendê, marfim, cera e borracha.
Do nacionalismo surge uma nova idéia de estado. O poder em expansão não busca mais apenas submeter outros agrupamentos humanos, que lhe pagariam tributo e lhe engrossariam os exércitos, respeitando e preservando, porém, tal como sucedera nos impérios de Gana, Mali, Canem-Bornu e Songai, as estruturas sociais e os modos de vida dos derrotados. O modelo do Mali – no qual a nação mandinga se impunha sobre as demais, sem exigir dessas que abandonassem língua, religião, costumes e os próprios reis, que geralmente continuavam no mando, ainda que vassalos do mansa – passa a sofrer a competição de um outro em que, tal qual sucedera na França e viria a acontecer na Alemanha e na Itália, se tentaria aglutinar os povos dominados ao dominante, dissolvê-los e aculturá-los, para uniformizar o estado. Um estado, uma nação – este o desiderate dos zulus e dos angúnis; esta a política das estruturas de poder resultantes das guerras santas islâmicas dos fulas de Osmã den Fodio, de Seku Ahmadu e de El Haji Ornar, nas quais, para se ter as vantagens da cidadania, se tinha de ser muçulmano. Mas não apenas novos estados, como esses, aspiravam à uniformidade. Reinos antigos também ambicionaram tornar-se teocracias. E desejo semelhante de um império em que todos rezassem prostrados no rumo de Meca jamais abandonou Samori Turê.
As guerras santas na África derivaram do renascimento, na segunda metade do século XVIII, de um Islame fervoroso e militante, de que dão exemplo os vaabitas, na Arábia, e o reflorir, no Egito e no Magrebe, do sufismo e da ordem mística e militar da Cadirija. Esta última tinha presença e influência no Sudão Ocidental, desde o fim do Quatrocentos, quando Al-Maghili andara a pregar em Bornu e na Hauçalândia, acenando com a vinda de um mahdi que imporia ao Bilad al-Sudan, o pais dos negros, o verdadeiro Islame, purificando-o de todo sincretismo e destruindo de vez as religiões pagas que com ele conviviam, como o culto dos boris entre os hauçás.
A jihad mais famosa, e a que mais interessa aos brasileiros, foi a de Osmã den Fodio, um xeque, poeta, teólogo e pensador fulo (fulani ou peul), sufista e cadirija. Nasceu ele no reino de Gobir, no norte da atual Nigéria, e criou-se num ambiente intelectualmente requintado e pleno de controvérsias, o da elite fula, minoria étnica embutida na maioria hauçá e a dever incômoda obediência a um sarqui ou rei nominalmente muçulmano, mas não estrito o bastante para ser considerado um verdadeiro crente. Para Osmã e seus amigos fulos, era escandaloso que os fiéis fossem governados por ímpios e que se reduzissem islamitas à escravidão. Instou com o soberano de Gobir para que não mais fizesse concessões ao sincretismo prevalecente na Hauçalândia, para que fizesse calar os tambores, transformando-os em manjedouras, e para que abandonasse os ritos de fertilidade da terra, que conflitavam com o Islame. Diante da recusa deste, que não podia furtar-se às práticas religiosas tradicionais em que se fundava a sua legitimidade e o seu poder, Osmã den Fodio cumpriu a sua hégira em Gudu, onde se fez imame de um pequeno estado teocrático. Em 1804, após receber, numa visão, a espada da fé do próprio fundador da ordem de Cadirija, Abdel-Cadir, que tinha a seu lado o Profeta Maomé, proclamou a guerra santa contra o sarqui de Gobir e os outros reis hauçás. Seus textos de pregação e propaganda, em árabe, fulfulde e hauçá, ganharam rapidamente as cidades e atraíram para os seus exércitos os letrados e mercadores urbanos, aos quais se acrescentaram fulas que não eram sequer moslins, pastores animistas que viviam nos arredores das comunidades amuralhadas hauçás e conflitavam com estas pelo uso da terra. A campanha tomou, assim, a feição de uma guerra que, sendo religiosa, sendo muçulmana, era também nacional, era também fulani. Em 1812, vitória após vitória, Osmã den Fodio tornou-se califa de um grande império, o de Socotô, controlado por uma aristocracia fula, que rapidamente se hauçaizou. Esse império não viria a cobrir apenas a maior parte dos territórios hauçás, mas também o norte do Iorubo, fazendo fula o que, como Ilorin, fora oió. Só os campos cobertos, os cerrados e as matas, adversários naturais da cavalaria, pararam a arremetida muçulmana. Os fulas haviam montado a cavalo, a seguir o exemplo dos hauçás, que, convertidos ao zelo de seus novos senhores, passaram a formar o grosso de suas tropas, e, a cavalo, foram vencidos em Oshogbo, em 1840, pelos exércitos de Ibadan. A revolução islâmica de Osmã den Fodio iria, porém, iludir a floresta, passar por entre o lorubo dos orixás e prolongar-se no Brasil, com as chamadas guerras dos males, na Bahia.
Nina Rodrigues (4) percebeu com clareza que,''para apreender a verdadeira significação histórica'' dessas revoltas, era''mister remontar às transformações político-sociais que a esse tempo se operavam no coração da África''. Vinculou-as à jihad de Osmã den Fodio — a meu ver, com razão. Os poucos fulas e os muitos hauçás e iorubas recém-convertidos ao Islame, que as guerras fizeram prisioneiros e embarcaram como escravos para o Brasil, aqui prosseguiram a catequese e o sonho do califado. A essas insurreições, fossem predominantemente hauçás, como as de 1807, 1808 e 1814, iorubanas, como a de 1830, ou plurinacionais, como a maior de todas, a de 1835, em que os nagôs eram o grupo mais numeroso, entre hauçás, nupês, jejes, minas, bornus e baribas, o povo baiano deu o nome justo, porque percebeu o seu caráter político-religioso. Chamou-lhes guerras dos males, isto é, dos islamitas, pois imalê quer dizer moslim em iorubano.
Os próprios documentos por elas deixados, as rezas, as transcrições de suras e os amuletos apreendidos pela polícia, estavam escritos em árabe. Na maioria dos casos, em árabe correto e bem-ortografado, na variante do cursivo magrebino corrente entre os fulas de Osmã den Fodio e de rigor em todo o Sudão Ocidental (5), a mesma grafia dos numerosos grigris que Nina Rodrigues (6) pôde ainda recolher entre negros islamitas baianos, no fim do século. Um dos textos colecionados pelo autor de Os Africanos no Brasil, embora em caracteres árabes, não pôde ser traduzido. Nina Rodrigues (7) sugeriu que estivesse em idioma hauçá. Quem sabe se alguns daqueles escritos, em que se davam instruções para a rebelião de 1835, não estariam em ajami, isto é, no alfabeto árabe a servir de veículo ao hauçá e ao fulfulde, ou idioma dos fulas? O amuleto de que Nina Rodrigues não logrou leitura talvez fosse uma prece. Não transcreveria, porém, um versículo do Alcorão, por ser isso contrário ao que pregava Osmã den Fodio. Este escreveu em hauçá sermões em verso. E houve um certo momento em que começou a verter para aquele idioma o Alcorão. Não deu, porém, prosseguimento à tarefa, persuadido de que não lhe cabia traduzir as palavras ditas por Deus a Maomé, e de que o livro santo deveria ser mantido na língua em que Alá o ditou.
Consta que as ordens para a rebelião baiana de 1835 foram dadas por um imame, limamo ou limanu, de nome Mala Abubacar, que teria sido enviado de volta à África (8). Da revolta participaram outros alufás, marabus ou mallans, entre os quais um tapa ou nupê, um hauçá e, dono de enorme prestígio, um nagô. Como os libertos formavam grande parte dos revoltosos — 126 daqueles contra os quais se apresentaram acusação eram negros emancipados, enquanto que 160, escravos (9) —, muitos deles devem ter voluntariamente regressado à costa africana, enquanto outros se beneficiaram da medida governamental que comutou em banimento para a África a pena dos condenados à prisão. Estaria entre esses últimos, protegido pelo silêncio dos correligionários, o imame Mala Abubacar? Teria sido ele o primeiro chefe religioso dos maometanos brasileiros em Lagos?
Os escravos e libertos que promoveram as chamadas guerras dos males encontravam-se, na Bahia, na mesma situação — intolerável para um islamita zeloso e pio — de Osmã den Fodio e seus companheiros em Gobir: sob o jugo de infiéis. Os que eram livres tinham o governo do Império do Brasil por ilegítimo, uma vez que não se fundava na crença e no direito islâmicos; os cativos não podiam aceitar de forma alguma sua condição, em tudo contrária à lei divina, pois, para o Islame, só o incréu pode ser escravizado (10).
Antes da chegada dos libertos brasileiros e dos sarôs (ex-escravos redimidos pelos ingleses e postos como colonos na Serra Leoa), já havia grupos de islamitas em Lagos, Badagri e outros pontos do sul do lorubo. Se entre esses se contavam alguns nagôs, a maioria era formada por gente estrangeira, por uns poucos mercadores e muitos escravos hauçás, nupês e bornus. Sobretudo após a revolta de Ilorin contra Oió, na passagem do século, e sua posterior incorporação ao império fulahauçá de Socotô, cuja expansão para o sul aterrorizava os iorubas, esses diminutos grupos de moslins viram-se, no sul da atual Nigéria, discriminados, expulsos ou perseguidos, rezando e cumprindo, quase sempre em segredo, as suas obrigações religiosas. A chegada de muçulmanos da Bahia, do Recife, de Fourah Bay e de Foulah Town aumentou-lhes o número — e o número dos que eram, embora imigrantes, muçulmanos iorubas — e emprestou a Islame até então menosprezado o lustro de dois grupos, os sarôs e os agudás (ou brasileiros), que se faziam cada vez mais prósperos, porque tinham intimidade com ofícios e profissões, adquiridas no Brasil ou na Serra Leoa, crescentemente necessárias às cidades litorâneas, onde a influência européia se ia impondo (11). Eles praticavam abertamente a sua crença e construíram as .mais antigas mesquitas de Lagos. A própria Mesquita Central, até há bem pouco de pé, foi iniciada por um mestre-de-obras brasileiro, João Baptista da Costa, e concluída por seu discípulo sarô Sanusi Aka.
Se o primeiro imame-em-chefe de Lagos, Idris Salu Gana, foi um hauçá, possivelmente vindo do norte, e se os muçulmanos africanos viam com certa desconfiança os que se tinham convertido do outro lado do Atlântico (12), cedo os brasileiros passaram a figurar entre os principais dignitários islamitas. E continuam, até hoje, a contar entre eles. Em 1983, quando deixei Lagos, o imame-em-chefe da cidade, El Haji Liadi Ibrahim, era descendente, pela linha materna, de brasileiros, e disto se orgulhava.
Os muçulmanos não predominaram, contudo, entre os brasileiros e os abrasileirados que se estabeleceram na costa atlântica da África. A maioria era de cristãos ou cristianizados, estes últimos a praticarem a um só tempo, ou paralelamente, a religião dos orixás e aquela a que se converteram na outra margem do oceano. Brancos e mulatos, uns poucos, e vários deles negros, nascidos na África ou no Brasil, tornaram-se, do mesmo modo que os imalês traficantes de escravos. Alguns deles fizeram-se famosos, como Francisco Félix de Sousa — o Chachá de Ajuda —, Pedro Kodjo, Domingos José Martins — o todo poderoso de Cotonou — e Joaquim Manuel de Carvalho, que embarcava em Porto Novo. O comércio dividiu certas famílias: um irmão em Lagos e outro em Salvador, um primo em Anécho e outro no Recife, a trocarem escravos, azeite de dendê, noz de cola, sabão e pano da Costa por tabaco, cachaça, ouro e tudo o que se usava na rua, na sala, no quarto e na cozinha. Negociantes em grande de gente e coisas, lojistas e vendedores de esquina, plantadores de algodão, tabaco, cacau e café, mestres-de-obra e pedreiros, modistas e alfaiates, padeiros e doceiras, marceneiros, músicos e professores, fundaram cidades como Atouetá e Porto Seguro e se uniram em bairros próprios em Acra, Lomé, Agoué, Anécho, Ajuda, Porto Novo, Badagri e Lagos, onde construíram, para si mesmos ou para outros grupos, igrejas, mesquitas, palácios, edifícios, sobrados e arruamentos de casas térreas e de parede e meia, com uma, duas, quatro ou mais janelas. Tudo num estilo arquitetônico derivado das formas barrocas, rococós e neoclássicas aprendidas no Brasil. Criaram, assim, em pequenino e por iniciativa própria, as suas Serras Leoas e as suas Libérias.
Esse é um enredo. O outro é o da luta contra o tráfico humano, que serviu de roupagem limpa à política britânica de controle do Atlântico e das rotas para a índia. A história tem suas ironias. O movimento generoso e humanitário para destruir a ignomínia do comércio de negros confundiu-se com o que iria transformar, num espaço curto de tempo, quase toda a África em colônia européia. Sob pretexto do combate ao mercadejo de escravos, ingleses e franceses ocuparam cidades e portos africanos, humilharam e depuseram chefes, sobas e reis, depois de debilitá-los, vedando-lhes a compra de armas e pólvora, impedindo a cobrança de taxas de passagem pelas terras sob sua soberania e destruindo o monopólio comercial em que muitos deles fundavam o seu poder.Alberto da Costa e Silva
O início do século XIX caracteriza-se por um aguçamento dos nacionalismos. E não só na Europa, mas também nas duas margens mais ao sul do Atlântico. Na América, as colônias espanholas e portuguesa independentizam-se; na África, os grandes agrupamentos étnicos se consolidam.
O Oitocentos é também o século em que o Reino Unido procura fazer do Atlântico um mar inglês; o século em que se destrói o tráfico triangular entre a Europa, a América e a África e em que se desfazem as ligações bilaterais entre os dois últimos continentes; o século em que as sociedades africanas, até então fora das grandes rotas do caravaneiro e do navegador, começam a integrar-se, ainda que de modo imperfeito, nas estruturas políticas mundiais.
Na realidade, a África só abria para o exterior um pouco da casca. Assim fora desde sempre. O estrangeiro se parava no Sudd, ao sul da Núbia, em Ualata, Gana, Gaô, Tombuctu e outros caravançarais do Sael, em Quiloa, Mombaça, Angoche, Zanzibar e iguais feitorias do Índico e, desde a abertura do Atlântico, nos entrepostos e fortins de Bissau, El Mina, Ajudá, Luanda, Benguela e tantos mais. Até meados do século XIX, o europeu só avançava alguns passos para fora de seus muros e paliçadas em algumas poucas áreas e, na maior parte dos casos, com o consentimento e o apoio dos africanos, ou sob sua vigilância.
Isso não impediu que se fossem estabelecendo, desde o século XVII, mas sobretudo a partir do XVIII, fortes vínculos entre certos pontos do litoral africano e as costas atlânticas das Américas, como conseqüência do tráfico de escravos. O comércio de braços humanos não aproximou apenas as praias que ficavam frente a frente, mas estendeu sertão adentro o seu alinhavado, uma vez que muitos dos escravos trazidos para o Brasil e que foram trabalhar em Minas ou Goiás vieram de regiões do interior do continente africano, das savanas e das bordas dos desertos. Não eram, portanto, falsos, como pareceram a tantos leitores e críticos, os versos em que Castro Alves se referia a escravos como vindos de regiões áridas. O poeta, que tinha familiares envolvidos no tráfico, sabia do que falava, quando em O Navio Negreiro, descreveu os cativos a dançarem no convés como "os filhos do deserto / onde a terra esposa a luz, / onde voa em campo aberto / a tribo dos homens nus ..." Ou quando, em A Canção Ao Africano, disse, da terra deste, que ''o sol faz lá tudo em fogo, / faz em brasa toda a areia''.
Ainda que os contatos diretos entre europeus, americanos e africanos não passassem, na África, muito além da linha em que findavam as praias, as notícias esgarçavam-se pelo interior e certas novidades, e só certas novidades, expandiam-se rapidamente. Assim, a África recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil e Cuba faziam seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa.
As trocas deram-se nas duas direções, e a cada um dos lados do Atlântico não era de todo desconhecido e indiferente o que se passava no outro. A independência do Brasil, por exemplo, não ficou despercebida na África — e o prova terem sido dois africanos os primeiros reis a reconhecê-la, o Obá Ósemwede, do Benim, e o Ologum Ajan, de Eko, Onim ou Lagos. Em Angola, os acontecimentos de 1822 tiveram enorme impacto, chegando a gerar uma corrente favorável à separação de Portugal e à união ao Brasil.
No território brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos por seus desafetos como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir as estruturas políticas e religiosas das terras de onde haviam partido. Isso terse-ia verificado — para citar o caso mais conhecido — com Nan Agotiné, a mãe do rei Guezô, do Danxomé, Dangomé, Daomei ou Daomé. Passada às mãos dos traficantes pelo rei Adandozã, ele teria refeito os seus altares e a sua Corte na Casa das Minas (ou Querebetam de Zomadonu), em São Luís do Maranhão (1). Outros sonharam voltar à África e reconquistar as posições perdidas, não se excluindo que hajam conspirado para isso. Não faltaria quem lhes levasse as mensagens a adeptos e descontentes na terra natal, pois a tripulação dos navios negreiros era em grande parte africana. Um desses príncipes quase logrou tornar real o sonho. Chamava-se Fruku, no Danxomé, e foi vendido ao Brasil pelo rei Tegbesu, provavelmente para permitir que Kpengla ascendesse ao trono. Viveu no Brasil vinte e quatro anos e voltou à Costa dos Escravos com o nome de Dom Jerônimo. E como Dom Jerônimo, o brasileiro, o príncipe Fruku disputou o trono do Danxomé, após a morte de Kpengla, em 1789, e só por pouco o perdeu para Agonglo (2).
Repito: muito do que se passava na África Atlântica repercutia no Brasil, e vice-versa. Os contatos através do oceano eram constantes: os cativos que chegavam traziam notícias de suas nações, e os marinheiros, os mercadores e os ex-escravos de retorno levavam as novas do Brasil e dos africanos que aqui viviam para uma África que era ainda, no início do século XIX, um continente sem senhores externos.
De colônias havia somente o Cabo da Boa Esperança e as possessões portuguesas. Não tinham elas, porém, as dimensões territoriais com que figurariam depois nos mapas. Cada uma era apenas uma coleção de pequenas cidades, vilas, vilarejos e entrepostos comerciais, com restrito acesso às terras que a circundavam e ainda menor controle efetivo sobre elas. Os numerosos estabelecimentos europeus encravados em outros pontos da Costa pagavam aluguel ou direitos de comércio aos reis, régulos ou chefes locais. Feitorias mercantis, quase todas dedicadas primordialmente ao tráfico negreiro, como Saint-Louis, Goréa, Cachéu, Bissau, El Mina e Cape Coast, suas populações continham pequena quantidade de mulatos. Esses eram mais numerosos nas comunidades fundadas por ex-escravos retornados do Brasil, Cuba e Venezuela, como Atouetá e Porto Seguro, e nos bairros brasileiros de Acra, Agoué, Ajuda, Porto Novo, Badagri e Lagos. Havia ainda o caso especial de Freetown, na Serra Leoa, onde os ingleses colocaram, como colonos, no reino temne de Koya, ex-escravos que combateram ao lado deles na guerra pela Independência dos Estados Unidos. O exemplo seria seguido, mais tarde, em Bathurst, Monrovia e Libreville. Esses refúgios para ex-escravos transformaram-se em embriões de colônias — a da Serra Leoa já em 1808 — e de uma república nos moldes americanos, a da Libéria.
A presença européia na África era, portanto, muito limitada. Discreta. Não se comparava à do Islame, que desde o século IX, atravessara o deserto e se fora lentamente derramando pelo Sael e a savana. Nos começos do século XI, os reis de Gaô e do Tacrur já eram muçulmanos e, na segunda metade do XIII, um mansa, ou soberano do Mali fazia a peregrinação a Meca. No Duzentos, Tombuctu e Jenné tornaram-se importantes centros de saber islâmico, seus passos sendo seguidos, mais tarde, pelos burgos amuralhados dos hauçás. No início do século XIX, das savanas no Senegal ao planalto do Adamaua, as instituições políticas aspiravam a ajustar-se ao modelo muçulmano, e ás elites liam o árabe e estudavam o Alcorão, ainda quando as massas continuassem fiéis às crenças tradicionais. Em muitos lugares, muito antes do primeiro pregador muçulmano, chegavam do Egito, da Líbia, do Magrebe ou do Sael islamizado o turbante, a sela com estribo, certos modos de vida e até mesmo um volume do Alcorão, com o prestígio de objeto mágico.
Também a abertura dos litorais atlânticos teria efeitos muito mais profundos sobre a África do que faria prever a diminuta presença humana européia nas franjas do continente. Pela difusão das plantas americanas, como a mandioca e o milho, que alteraram substancialmente a dieta de numerosas populações. Pela introdução das armas de fogo. Pelo surgimento de nova e crescente demanda de escravos, mais dinâmica do que as do Magrebe, do Oriente Médio e do índico. E pela atlantização de boa parte do comercio à distancia, com perda para as rotas caravaneiras do Sael e do deserto e para as estruturas políticas que delas dependiam.
Os mercados transatlânticos tornaram-se mais importantes do que os antigos mercados transarianos. A vinculação floresta-savana-Sael-deserto, através da qual desaguavam o ouro, a cola e o escravo, passou a ter de competir com a ligação savana-floresta-praia. Acentuaram-se, conseqüentemente, os liames entre os vários pontos do litoral atlântico e tornaram-se mais intensas as atividades ao longo da costa, as viagens de praia a praia que fizeram famosos os crus da Libéria, com suas longas pirogas. Elas deram renome não só a eles, mas também a tantos outros, como os ijós do delta do Niger, cujas almadias assim descreveu, no Esmeraldo de Situ Orbis (3), mal entrado no século XVI, Duarte Pacheco Pereira: "Todas feitas de um pau (...), algumas delas há tamanhas que levarão oitenta homens, e estas vêm de cima deste rio (o Real), de cem léguas e mais, e trazem muitos inhames (...) e muitos escravos e vacas e cabras e carneiros''.
Tal qual sucedera, vários séculos antes, com a chegada do cavalo como animal de guerra às estepes ressequidas e às savanas da África Ocidental, as armas de fogo alteraram as táticas de guerra e as relações de força interafricanas. Cresceu o poder centralizador dos reis, que monopolizavam o comércio externo e, portanto, o acesso aos mosquetes e à pólvora. Novos estados surgiram de chefias que controlavam os caminhos para o mar e outros se consolidaram e expandiram, muitas vezes sobre a base de um intenso sentimento nacional.
Na África, sempre houve nações, como as definiu Renan: povos unidos pelo sentimento de origem, e língua, história, crenças, desejo de viver em comum e igual vontade de destino. E sempre houve noções que se cristalizaram em estados. Basta lembrar Gana, construída pelos soninquês, e o Mali, com seu núcleo mandinga. Mas o preconceito teima em chamar tribos às nações africanas, sem ter em conta a realidade de que não podem ser tribos grupos humanos de mais de 60 milhões de pessoas, como os hauçás, ou superiores ou semelhantes em número às populações da Bélgica, do Chile e da Suécia, quando não, da Argentina e da Espanha. O conceito de nação podia, aliás, ser ainda mais profundo, na África, do que o enunciado por Renan. Assim no Danxomé. Mais que um estado-nação, o Danxomé era uma realidade espiritual: a soma dos tons mortos, desde o início dos séculos, com os vivos e com os que ainda haviam de nascer. A nação desdobrava-se no tempo sob disfarce de eternidade: dela e de sua representação como estado não se excluíam ancestrais e vindouros.
O sentimento nacionalista expande-se e se adensa na África do século XIX. Torna-se mais intenso em estados muito antigos, que podiam ter vários séculos de existência, como Ifé, Benim, Oió, Bornu, Uagadugu, Kano, Katsina, o do monomotapa e o do Angola a Kiluanje. Afirma-se em novos reinos, que tomaram forma e força sob o estímulo do tráfico de escravos. Como o Achanti, que se encorpara com a produção e o comércio do ouro e da noz de cola, antes de se assentar na venda da escravaria. Como Danxomé, negreiro quase que desde o seu início. Como Jalofo, Fante e Warri, que tendo surgido ou ganhado vigor do tráfico humano, continuaram a crescer, depois, com o mercadejo de dendê, marfim, cera e borracha.
Do nacionalismo surge uma nova idéia de estado. O poder em expansão não busca mais apenas submeter outros agrupamentos humanos, que lhe pagariam tributo e lhe engrossariam os exércitos, respeitando e preservando, porém, tal como sucedera nos impérios de Gana, Mali, Canem-Bornu e Songai, as estruturas sociais e os modos de vida dos derrotados. O modelo do Mali – no qual a nação mandinga se impunha sobre as demais, sem exigir dessas que abandonassem língua, religião, costumes e os próprios reis, que geralmente continuavam no mando, ainda que vassalos do mansa – passa a sofrer a competição de um outro em que, tal qual sucedera na França e viria a acontecer na Alemanha e na Itália, se tentaria aglutinar os povos dominados ao dominante, dissolvê-los e aculturá-los, para uniformizar o estado. Um estado, uma nação – este o desiderate dos zulus e dos angúnis; esta a política das estruturas de poder resultantes das guerras santas islâmicas dos fulas de Osmã den Fodio, de Seku Ahmadu e de El Haji Ornar, nas quais, para se ter as vantagens da cidadania, se tinha de ser muçulmano. Mas não apenas novos estados, como esses, aspiravam à uniformidade. Reinos antigos também ambicionaram tornar-se teocracias. E desejo semelhante de um império em que todos rezassem prostrados no rumo de Meca jamais abandonou Samori Turê.
As guerras santas na África derivaram do renascimento, na segunda metade do século XVIII, de um Islame fervoroso e militante, de que dão exemplo os vaabitas, na Arábia, e o reflorir, no Egito e no Magrebe, do sufismo e da ordem mística e militar da Cadirija. Esta última tinha presença e influência no Sudão Ocidental, desde o fim do Quatrocentos, quando Al-Maghili andara a pregar em Bornu e na Hauçalândia, acenando com a vinda de um mahdi que imporia ao Bilad al-Sudan, o pais dos negros, o verdadeiro Islame, purificando-o de todo sincretismo e destruindo de vez as religiões pagas que com ele conviviam, como o culto dos boris entre os hauçás.
A jihad mais famosa, e a que mais interessa aos brasileiros, foi a de Osmã den Fodio, um xeque, poeta, teólogo e pensador fulo (fulani ou peul), sufista e cadirija. Nasceu ele no reino de Gobir, no norte da atual Nigéria, e criou-se num ambiente intelectualmente requintado e pleno de controvérsias, o da elite fula, minoria étnica embutida na maioria hauçá e a dever incômoda obediência a um sarqui ou rei nominalmente muçulmano, mas não estrito o bastante para ser considerado um verdadeiro crente. Para Osmã e seus amigos fulos, era escandaloso que os fiéis fossem governados por ímpios e que se reduzissem islamitas à escravidão. Instou com o soberano de Gobir para que não mais fizesse concessões ao sincretismo prevalecente na Hauçalândia, para que fizesse calar os tambores, transformando-os em manjedouras, e para que abandonasse os ritos de fertilidade da terra, que conflitavam com o Islame. Diante da recusa deste, que não podia furtar-se às práticas religiosas tradicionais em que se fundava a sua legitimidade e o seu poder, Osmã den Fodio cumpriu a sua hégira em Gudu, onde se fez imame de um pequeno estado teocrático. Em 1804, após receber, numa visão, a espada da fé do próprio fundador da ordem de Cadirija, Abdel-Cadir, que tinha a seu lado o Profeta Maomé, proclamou a guerra santa contra o sarqui de Gobir e os outros reis hauçás. Seus textos de pregação e propaganda, em árabe, fulfulde e hauçá, ganharam rapidamente as cidades e atraíram para os seus exércitos os letrados e mercadores urbanos, aos quais se acrescentaram fulas que não eram sequer moslins, pastores animistas que viviam nos arredores das comunidades amuralhadas hauçás e conflitavam com estas pelo uso da terra. A campanha tomou, assim, a feição de uma guerra que, sendo religiosa, sendo muçulmana, era também nacional, era também fulani. Em 1812, vitória após vitória, Osmã den Fodio tornou-se califa de um grande império, o de Socotô, controlado por uma aristocracia fula, que rapidamente se hauçaizou. Esse império não viria a cobrir apenas a maior parte dos territórios hauçás, mas também o norte do Iorubo, fazendo fula o que, como Ilorin, fora oió. Só os campos cobertos, os cerrados e as matas, adversários naturais da cavalaria, pararam a arremetida muçulmana. Os fulas haviam montado a cavalo, a seguir o exemplo dos hauçás, que, convertidos ao zelo de seus novos senhores, passaram a formar o grosso de suas tropas, e, a cavalo, foram vencidos em Oshogbo, em 1840, pelos exércitos de Ibadan. A revolução islâmica de Osmã den Fodio iria, porém, iludir a floresta, passar por entre o lorubo dos orixás e prolongar-se no Brasil, com as chamadas guerras dos males, na Bahia.
Nina Rodrigues (4) percebeu com clareza que,''para apreender a verdadeira significação histórica'' dessas revoltas, era''mister remontar às transformações político-sociais que a esse tempo se operavam no coração da África''. Vinculou-as à jihad de Osmã den Fodio — a meu ver, com razão. Os poucos fulas e os muitos hauçás e iorubas recém-convertidos ao Islame, que as guerras fizeram prisioneiros e embarcaram como escravos para o Brasil, aqui prosseguiram a catequese e o sonho do califado. A essas insurreições, fossem predominantemente hauçás, como as de 1807, 1808 e 1814, iorubanas, como a de 1830, ou plurinacionais, como a maior de todas, a de 1835, em que os nagôs eram o grupo mais numeroso, entre hauçás, nupês, jejes, minas, bornus e baribas, o povo baiano deu o nome justo, porque percebeu o seu caráter político-religioso. Chamou-lhes guerras dos males, isto é, dos islamitas, pois imalê quer dizer moslim em iorubano.
Os próprios documentos por elas deixados, as rezas, as transcrições de suras e os amuletos apreendidos pela polícia, estavam escritos em árabe. Na maioria dos casos, em árabe correto e bem-ortografado, na variante do cursivo magrebino corrente entre os fulas de Osmã den Fodio e de rigor em todo o Sudão Ocidental (5), a mesma grafia dos numerosos grigris que Nina Rodrigues (6) pôde ainda recolher entre negros islamitas baianos, no fim do século. Um dos textos colecionados pelo autor de Os Africanos no Brasil, embora em caracteres árabes, não pôde ser traduzido. Nina Rodrigues (7) sugeriu que estivesse em idioma hauçá. Quem sabe se alguns daqueles escritos, em que se davam instruções para a rebelião de 1835, não estariam em ajami, isto é, no alfabeto árabe a servir de veículo ao hauçá e ao fulfulde, ou idioma dos fulas? O amuleto de que Nina Rodrigues não logrou leitura talvez fosse uma prece. Não transcreveria, porém, um versículo do Alcorão, por ser isso contrário ao que pregava Osmã den Fodio. Este escreveu em hauçá sermões em verso. E houve um certo momento em que começou a verter para aquele idioma o Alcorão. Não deu, porém, prosseguimento à tarefa, persuadido de que não lhe cabia traduzir as palavras ditas por Deus a Maomé, e de que o livro santo deveria ser mantido na língua em que Alá o ditou.
Consta que as ordens para a rebelião baiana de 1835 foram dadas por um imame, limamo ou limanu, de nome Mala Abubacar, que teria sido enviado de volta à África (8). Da revolta participaram outros alufás, marabus ou mallans, entre os quais um tapa ou nupê, um hauçá e, dono de enorme prestígio, um nagô. Como os libertos formavam grande parte dos revoltosos — 126 daqueles contra os quais se apresentaram acusação eram negros emancipados, enquanto que 160, escravos (9) —, muitos deles devem ter voluntariamente regressado à costa africana, enquanto outros se beneficiaram da medida governamental que comutou em banimento para a África a pena dos condenados à prisão. Estaria entre esses últimos, protegido pelo silêncio dos correligionários, o imame Mala Abubacar? Teria sido ele o primeiro chefe religioso dos maometanos brasileiros em Lagos?
Os escravos e libertos que promoveram as chamadas guerras dos males encontravam-se, na Bahia, na mesma situação — intolerável para um islamita zeloso e pio — de Osmã den Fodio e seus companheiros em Gobir: sob o jugo de infiéis. Os que eram livres tinham o governo do Império do Brasil por ilegítimo, uma vez que não se fundava na crença e no direito islâmicos; os cativos não podiam aceitar de forma alguma sua condição, em tudo contrária à lei divina, pois, para o Islame, só o incréu pode ser escravizado (10).
Antes da chegada dos libertos brasileiros e dos sarôs (ex-escravos redimidos pelos ingleses e postos como colonos na Serra Leoa), já havia grupos de islamitas em Lagos, Badagri e outros pontos do sul do lorubo. Se entre esses se contavam alguns nagôs, a maioria era formada por gente estrangeira, por uns poucos mercadores e muitos escravos hauçás, nupês e bornus. Sobretudo após a revolta de Ilorin contra Oió, na passagem do século, e sua posterior incorporação ao império fulahauçá de Socotô, cuja expansão para o sul aterrorizava os iorubas, esses diminutos grupos de moslins viram-se, no sul da atual Nigéria, discriminados, expulsos ou perseguidos, rezando e cumprindo, quase sempre em segredo, as suas obrigações religiosas. A chegada de muçulmanos da Bahia, do Recife, de Fourah Bay e de Foulah Town aumentou-lhes o número — e o número dos que eram, embora imigrantes, muçulmanos iorubas — e emprestou a Islame até então menosprezado o lustro de dois grupos, os sarôs e os agudás (ou brasileiros), que se faziam cada vez mais prósperos, porque tinham intimidade com ofícios e profissões, adquiridas no Brasil ou na Serra Leoa, crescentemente necessárias às cidades litorâneas, onde a influência européia se ia impondo (11). Eles praticavam abertamente a sua crença e construíram as .mais antigas mesquitas de Lagos. A própria Mesquita Central, até há bem pouco de pé, foi iniciada por um mestre-de-obras brasileiro, João Baptista da Costa, e concluída por seu discípulo sarô Sanusi Aka.
Se o primeiro imame-em-chefe de Lagos, Idris Salu Gana, foi um hauçá, possivelmente vindo do norte, e se os muçulmanos africanos viam com certa desconfiança os que se tinham convertido do outro lado do Atlântico (12), cedo os brasileiros passaram a figurar entre os principais dignitários islamitas. E continuam, até hoje, a contar entre eles. Em 1983, quando deixei Lagos, o imame-em-chefe da cidade, El Haji Liadi Ibrahim, era descendente, pela linha materna, de brasileiros, e disto se orgulhava.
Os muçulmanos não predominaram, contudo, entre os brasileiros e os abrasileirados que se estabeleceram na costa atlântica da África. A maioria era de cristãos ou cristianizados, estes últimos a praticarem a um só tempo, ou paralelamente, a religião dos orixás e aquela a que se converteram na outra margem do oceano. Brancos e mulatos, uns poucos, e vários deles negros, nascidos na África ou no Brasil, tornaram-se, do mesmo modo que os imalês traficantes de escravos. Alguns deles fizeram-se famosos, como Francisco Félix de Sousa — o Chachá de Ajuda —, Pedro Kodjo, Domingos José Martins — o todo poderoso de Cotonou — e Joaquim Manuel de Carvalho, que embarcava em Porto Novo. O comércio dividiu certas famílias: um irmão em Lagos e outro em Salvador, um primo em Anécho e outro no Recife, a trocarem escravos, azeite de dendê, noz de cola, sabão e pano da Costa por tabaco, cachaça, ouro e tudo o que se usava na rua, na sala, no quarto e na cozinha. Negociantes em grande de gente e coisas, lojistas e vendedores de esquina, plantadores de algodão, tabaco, cacau e café, mestres-de-obra e pedreiros, modistas e alfaiates, padeiros e doceiras, marceneiros, músicos e professores, fundaram cidades como Atouetá e Porto Seguro e se uniram em bairros próprios em Acra, Lomé, Agoué, Anécho, Ajuda, Porto Novo, Badagri e Lagos, onde construíram, para si mesmos ou para outros grupos, igrejas, mesquitas, palácios, edifícios, sobrados e arruamentos de casas térreas e de parede e meia, com uma, duas, quatro ou mais janelas. Tudo num estilo arquitetônico derivado das formas barrocas, rococós e neoclássicas aprendidas no Brasil. Criaram, assim, em pequenino e por iniciativa própria, as suas Serras Leoas e as suas Libérias.
A partida para Cuba, em 1865, do último barco de escravos não terminaria, no entanto, com o tráfico de braços humanos. Este continuará, até bem depois da Primeira Guerra Mundial, numa direção que já percorria muitos séculos antes do descobrimento da América: através do Saara, do Indico e do mar Vermelho, para o mundo islâmico. Mais importante ainda: crescem a escravaria na África e o comércio inter-regional de cativos. A fim de atender à demanda européia e por estímulo daquelas mesmas nações que haviam combatido o tráfico transoceânico de escravos, expande-se na África uma agricultura de exportação — de óleo de palma ou azeite de dendê, de amendoim, de cravo, de pimenta, de café, de algodão, de cacau, de sisal — e desenvolvem-se grandes plantagens do tipo americano, até então só conhecidas em algumas poucas regiões, como a Hauçalândia e Canem-Bornu. Milhares de cativos iorubanos passam a trabalhar nas plantações de dendê do Danxomé. Para as de cravo, em Zanzibar, preiam-se e compram-se escravos no continente. E escravo quem percorre a pé imensas distâncias, a carregar à cabeça as presas de elefante e os fardos de goma, cera, almíscar e outros produtos que os europeus desejam em quantidades crescentes. Faz-se guerra para vender à distância, dentro do continente, a mão-de-obra que pedem as lavouras e as caravanas.
Não se muda apenas a direção do tráfico negreiro. As grandes rotas mercantis africanas desviam-se das Américas. Vão rareando, no fim do século XIX, os barcos que, partindo da África, demandam Havana, Cartagena de índias, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Montevidéu, bem como os que, saindo de portos caraibanos e sul-americanos, viajam para Dacar, Porto Novo, Lagos, Malembo, Cabinda, Luanda ou Benguela. A Europa apossa-se praticamente das trocas com a África: os que haviam, em nome da liberdade de comércio, combatido o monopólio dos reis africanos fazem-se, vencida a luta, monopolistas.
Alterado o rumo do comércio, trocam-se naturalmente os seus parceiros africanos e se modificam as relações de poder. Alguns estados regridem: o Lunda e o Loango, por exemplo. Outros se transformam: o Danxomé passa a assentar-se sobre a exportação de dendê e os ovim-bundos de Bié trocam o marfim negro pelo marfim branco e pelo cobre do Chaba. Há aqueles que se tornam mais fortes, como Bonny, Opobo e Huila. Os quiocos, em menos de cinqüenta anos, convertem-se num poder comercial e militar em Angola: com cera, marfim e borracha obtêm os recursos para comprar armas de fogo e as mulheres com que aumentarão os seus números. Outros, que opuseram maior resistência aos europeus, acabarão por ser destruídos ou politicamente castrados.
Há uma data que assinala, da perspectiva brasileira, o início da colonização da África pelas grandes potências européias: 1851. E o ano em que os ingleses, para pôr fim ao comércio negreiro, bloqueiam a cidade de Lagos. O primeiro tiro de canhão dado contra eles parte de um grupo sob a chefia de um brasileiro, um certo Lima (13). Ele, como seus vizinhos da Bamgbose Street, da Kakawa Street, da Campos Square, da Tokumboh, da Martins e da Igbosere Streets, compreenderam de imediato que a chegada dos britânicos significava o fim das trocas com o Brasil e, conseqüentemente, do predomínio comercial que tinham tido na cidade.
A partir de 1851, vai acentuar-se o que o Reino Unido pretendia ser: um controle informal da África. Londres desejava assumir uma posição de primazia mercantil no continente sem gastar em combate vidas humanas, sem despender dinheiro além da linha das praias, sem assumir responsabilidades coloniais. O seu poder naval garantiria por si só a preponderância econômica nos litorais, nos rios e nos portos. Em breve, porém, a pressão ambiciosa dos interesses de seus comerciantes, o zelo de seus cônsules, os brios dos comandantes de sua marinha e a contestação à sua presença nas costas da África por outros países europeus, sobretudo a França, fariam com que o governo britânico assumisse encargos que buscara inutilmente evitar.
Em 1870, eram imensos os espaços vazios no conhecimento que a Europa tinha da África. Por sua vez, a maior parte das comunidades africanas ignorava existir o homem branco, ainda que utilizasse produtos por ele manufaturados. A presença européia no continente, até a véspera de 1900, só se fazia sentir a uma escassa minoria e, mesmo mais tarde, numerosíssimos eram os que jamais haviam visto um português, um inglês, um francês ou um alemão, ou faziam idéia de que suas terras estivessem sob domínio de um povo de além-mar. Os britânicos, com os quais competiam outros europeus, assumiam rapidamente o domínio do Atlântico. Nele já haviam ocupado Santa Helena, Ano Bom, as Malvinas, Fernando Pó e outras ilhas, entre as quais a nossa de Trindade, da qual só se retiram graças à intervenção da coroa portuguesa. Se não se apossaram de Cabo Verde, foi porque se iludiram com um projeto de fazer de Portugal um preposto do Reino Unido na África.
Todo avanço em política acaba por adquirir dinâmica própria. Ao pretender controlar informalmente a África, através da esquadra e de cônsules que protegeriam o comércio e as pessoas e os lucros dos negociantes britânicos, o Reino Unido encaminhou-se, quase sem possibilidade de recuo, para um império africano, de início não desejado. E algo semelhante sucederia com a França, que tinha talvez ainda maior apetite pelo controle de portos e feitorias.
Por volta de 1870, só estavam em mãos européias a Argélia, o Senegal, Cabo Verde, as possessões portuguesas na Guiné, em Angola e em Moçambique, São Tomé e Príncipe, Lagos e seus arredores, o Cabo da Boa Esperança, os demais territórios ingleses e boers na África do Sul e alguns fortes, entrepostos e outros pontos da Costa e da Contra-Costa. Muitos desses estabelecimentos eram vistos pelos africanos como áreas por eles cedidas em aluguel ou empréstimo, tal como haviam procedido no passado com outras gentes — os diulas ou uangaras, os hauçás, os aros — que entre eles se tinham instalado com fins comerciais. Ingleses e franceses pensavam de modo diferente: tinham esses territórios, por menores que fossem, como protetorados ou sob sua direta soberania. O choque entre as duas concepções era inevitável.
Agravou-o e precipitou-o o terem assumido os britânicos, e atrás deles os outros europeus, o que se chamou de missão civilizadora, e, mais tarde, de fardo Ao homem branco, máscaras de um darwinismo sociológico, que se traduzia, nas relações humanas, em racismo e arrogância cultural. Não havia a menor compreensão pela diferença de modos de vida: tudo o que se afastava dos padrões europeus era uma demonstração de selvageria e barbárie. Os cônsules e administradores de enclaves europeus na África queriam que se transformassem, pela adoção dos modelos prevalecentes na Europa, as estruturas políticas e os costumes sociais das comunidades que os consideravam como hóspedes. Queriam que as diferenças se reduzissem a uma uniformidade imposta de fora, e a imposição desse querer, freqüentemente através de ações armadas, não podia deixar de desembocar no império.
A percepção européia da África era a de um continente vazio, já que quase não tinha brancos, um continente vazio a pedir povoamento e inversões. E, na Europa, sobejavam gente e dinheiro. A África aparecia aos europeus como um El Dorado, com o ouro de Buré, de Lobi, do país achanti e de Sofala, com manadas infindáveis de elefantes e uma infindável produção de marfim, com cobre, ferro e estanho, com alúmen, almíscar, cera, borracha e óleos vegetais, e com extensas terras por cultivar. O Reino Unido, onde se principiara a segunda Revolução Industrial, via multidões de compradores nos africanos, ignorando que esses tinham hábitos de consumo de todo distintos dos europeus. A costurar essa visão prometedora, corria o sonho oitocentista do progresso ilimitado. Dele foram exemplos o famoso projeto, até hoje no papel, da ferrovia transariana e o plano, de todo mirabolante — a beirar as fantasias do Professor Kaximbown, criado por Yantok nas páginas d' O Tico-Tico —, do engenheiro francês Amédée Sébillot, de uma estrada de ferro, combinada com navegação marítima, que ligaria, em apenas duas semanas, Londres ao Rio de Janeiro, através de Agadés, Argel e Ajuda, e, por outro ramo, a capital inglesa Bombaim, via Obock, e a Johannesburg, atravessando o Chade (14).
Do desejo de controle mercantil à ambição do completo domínio colonial, a passagem foi rápida. Em pouco tempo, o Reino Unido de tal modo se considerava o melhor pretendente da África, que chegou a recusar os títulos históricos de Portugal sobre vários territórios que esse tinha por seus em seus mapas, mas onde muitas vezes não possuía tropas permanentes nem colonos. Os britânicos opuseram-se até mesmo à posse portuguesa das duas margens do estuário do Zaire, embora estivessem, bem ou mal, ocupadas, e só a aceitaram tarde demais, depois que os franceses, em 1882, se apoderaram, com Brazza, do atual Congo. Foi então a vez de a França e a Alemanha impugnarem os direitos lusitanos.
O Reino Unido perseguira, durante algum tempo, a quimera de controlar os territórios que se estendiam das praias de Angola às de Moçambique, através de um Portugal que fosse seu sócio menor ou preposto, como o Egito o era em relação ao Sudão. Em 1877, o Embaixador britânico em Lisboa, Sir Robert Morier, sugeriu formalmente ao Foreign Office que se acrescentasse Portugal aos dois estados clientes do Reino Unido na África: o Egito e Zanzibar (15). A proposta deve ter andado de mesa em mesa e talvez tenha parecido supérflua a funcionários que mediam a desproporcionada diferença entre o poder naval e militar britânico e o enlanguescido estado da presença portuguesa na África. O Reino Unido apresentava-se a eles como o herdeiro natural de um império empobrecido, que a história por si só não podia mais justificar.
Entretanto, renascera o interesse português pela África. E tanto Portugal quanto França, Alemanha e Itália multiplicaram as respostas às pretensões britânicas de supremacia ao continente africano. Os portugueses — e disso dá testemunho a travessia do continente por Capelo, Ivens e Serpa Pinto — procuraram consolidar o domínio das terras que separavam Luanda de Lourenço Marques. Não contavam com a resposta arrogante de seus aliados de tantos séculos, o ultimatum de 1890, que obrigou Lisboa a abandonar ao Reino Unido as terras que comporiam mais tarde o Maláui, a Zâmbia e o Zimbabué.
A humilhação portuguesa fluiu naturalmente da interpretação em favor do lobo das resoluções da Conferência de Berlim, reunida entre novembro de 1884 e fevereiro do ano seguinte. Dentre essas resoluções, ressaltava a de que o direito de um país europeu a terras africanas decorria primordialmente de seus títulos de ocupação efetiva e dos tratados assinados com os nativos. A Conferência resultará, aliás, de uma descontrolada e febril busca de acordos de protetorados com reis, régulos e até chefetes de aldeia e da proliferação de ações militares para impo-los. A França, a partir da Argélia e do Senegal, procurava pelo interior, pelo Sael e pelas savanas sudanesas — evitando, assim, ter de enfrentar a supremacia britânica na costa e no oceano —, cercar os enclaves e as zonas sob a esfera de influência do Reino Unido (a foz do Gâmbia, a Serra Leoa, a Costa do Ouro, a Colônia de Lagos, o Protetorado dos Rios dos Óleos e a Colônia do Cabo), bem como os territórios dos Camarões e do Sudoeste Africano, sobre os quais punha as mãos a Alemanha. A Espanha era senhora do Rio do Ouro e de Fernando Pó. E o rei Leopoldo II da Bélgica tornar-se-ia dono em potencial da imensidão do Congo, após ter devaneado apoderar-se de Mato Grosso, no Brasil, para ali fundar o seu império (16).
Na penúltima década do século XIX acelerou-se a corrida pela divisão da África. De fuzil apontado ao peito, sobas africanos cediam o poder a comandantes de tropas européias. Outros assinavam tratados de proteção, na ignorância de que transferiam aos estrangeiros a soberania sobre suas terras e suas gentes: julgavam estar arrendando ou cedendo para uso provisório um pedaço grande ou pequeno de solo, como de praxe, quando um estrangeiro pedia o privilégio e a honra de viver e comerciar entre eles. Não deixavam de espantar-se, por isso, quando dois grupos de brancos de língua diferente disputavam entre si, e às vezes com violência, essa honra e esse privilégio, em vez de em paz compartilhá-los. De vários dos grandes reis africanos as intenções européias não passaram, porém, despercebidas.
Em 1885, Portugal, com a ajuda do então Chachá de Ajuda, Juliano de Souza, logrou firmar com o rei Glelê, do Danxomé, o tratado de Aguanzum, pelo qual se estabelecia o protetorado português sobre o litoral daomeano, dando-lhe em conseqüência direitos sobre o interior. Os franceses, que haviam renovado com o mesmo rei, o acordo de 1878, de cessão de Cotonu, reagiram prontamente, obrigando Lisboa, em 1887, a renunciar a suas pretensões. Para Glelê, porem, tanto o documento assinado com os franceses quanto o ajustado com os portugueses tinha apenas uma significação comercial: correspondia a um aluguel de terras que continuavam sob seu governo e soberania (17). Glelê, ao inteirar-se do que na realidade se passava, não hesitou: mandou prender o Chachá e lhe deu sumiço, acreditando-se que o tenha executado. Esse Juliano de Souza ressuscitara em parte, e talvez sem o saber, o projeto do primeiro Chachá, Francisco Félix de Souza, que, usando o nome do rei Guezô, a quem ajudara a pôr no trono, oferecera a D. Pedro I do Brasil o protetorado sobre o Daomé (18) ou, quando menos, o senhorio do Forte de São João Batista de Ajudá (19).
Completou a Conferência de Berlim uma outra, ainda mais sinistra e ameaçadora, do ponto de vista africano: a de Bruxelas, em 1890. Chamaram-lhe sintomaticamente Conferência Anti-Escravagista, e o texto que nela se produziu é um violento programa colonizador. Tudo dentro da melhor lógica política, pois afinal fora em nome da luta contra o tráfico negreiro e a escravidão que a Europa começara a ocupar a África. Como os europeus partiam do princípio, de todo equivocado, de que na África não havia governos, o artigo primeiro da Ata Geral da Conferência recomendava a "organização progressiva dos serviços administrativos, judiciais, religiosos e militares nos territórios sob a soberania ou o protetorado de nações civilizadas'', a instalação de fortes no interior do continente e nas margens dos rios, a construção de estradas de ferro e de rodagem e a proteção da livre navegação pelas vias fluviais, ainda que em áreas sobre as quais os europeus não tinham sequer arremedos de jurisdição. Uma das principais disposições era aquela que restringia a compra de armas de fogo pelos africanos, por serem eles instrumentos de escravização.
Imposto o domínio colonial, a consciência européia deixou de considerar urgente o fim da escravidão. Esta continuou a existir como atividade legal até 1901 no sul da Nigéria, até 1910 em Angola e no Congo, até 1922 em Tanganica, 1928 na Serra Leoa e 193.5 na Etiópia; e subsistiu de facto por muito mais tempo, até quase os nossos dias no Sudão e até ontem na Mauritânia. Novas formas de servidão viram-se, além disso, criadas pelos administradores coloniais, como o trabalho compulsório, de que deu testemunho, entre tantos outros, o André Gide das páginas indignadas de Voyage au Congo e Le Retour du Tchad.
Também a liberdade de comércio foi esquecida, tão pronto se tornou inútil como bandeira do arremesso imperial. Fez-se a partilha de mercados. Cada metrópole buscou excluir o mais que pôde os demais países dos portos por ela controlados. Fecharam-se para o Brasil, por exemplo, os desembarcadouros africanos, e o Atlântico deixou de ser uma espécie de rio larguíssimo, mas fácil de ser cruzado a partir do Recife, de Salvador ou do Rio de Janeiro.
O cerco completo da África só se dará, no entanto, nos últimos dias do século XIX ou nos primeiros do Novecentos. E será de breve duração. Se abstrairmos as áreas costeiras das possessões portuguesas, a colônia do Cabo e os territórios boers, a fase colonial da África é a mais curta de sua longa história. Subsistiu durante meio século. Um pouco mais, em alguns casos. Um pouco menos, em outros. Em algumas áreas, por exemplo, foi somente uma espécie de roupagem para inglês e francês verem, pois, havendo, por conveniência política, a metrópole européia conservado as estruturas de poder africanas, eram estas que resolviam o dia-a-dia do povo, exerciam a polícia e julgavam em primeira instância, segundo o direito costumeiro ou a sharia islâmica.
Os impérios, reinos e cidades-estado da África eram entidades políticas inexistentes para os diplomatas europeus que participaram das Conferências de Berlim e de Bruxelas. Não os tinham como interlocutores. Mas, quando seus países tiveram de ocupar os terrenos que dividiram no mapa, e seus militares de tornar efetivos tratados de protetorado que para os soberanos da África eram contratos de arrendamento ou empréstimo de terras, toparam a resistência de estados com firmes estruturas de governo e povos com forte sentimento nacional.
Venceram-nos, graças aos fuzis de cartucho e de fechadura a ferrolho, à metralhadora e aos canhões sobre rodas, contra os quais os africanos opunham a lança, a azagaia, o arco-e-flecha, as espingardas de pederneira ou de agulha e cápsula fulminante, que se carregavam pela boca, e os velhos canhões imobilizados no solo ou de difícil transporte. Venceram-nos porque souberam jogar os povos vassalos contra os senhores e os inimigos tradicionais uns contra os outros. Assim, os britânicos usaram os ibadãs contra Ijebu Ode e os fantes contra os achantis. Assim, os franceses juntaram às suas tropas as de Quêto, para dar combate ao Danxomé, e as bambaras, para fazer frente aos tucolores de Ahmadu. Venceram-nos, mas algumas vezes com grande dificuldade e após demorada luta.
Em oito guerras enfrentaram-se achantis e britânicos. Em 1896, estes últimos entraram finalmente em Kumasi e enviaram Prempeh I, o achantehene, para o exílio nas Seichelles. Quatro anos mais tarde, os achantis, sob o comando da rainha-mâe Yaa Ashatewa, ergueram-se de novo em armas, para serem de novo derrotados. Baixaram a cabeça aos ingleses por apenas pouco mais de meio século, pois em 1954 a República de Gana, da qual o país achanti faz parte, tornou-se independente.
Os franceses enfrentaram com armas e diplomacia, durante mais de 35 anos, El Haji Omar ben Said Tall, que construíra um vasto império no alto Senegal e no alto Niger, e seu filho e sucessor, o sultão Ahmadu. A derrota desses tucolores só se deu, após numerosas campanhas militares, em 1892.
O Danxomé só foi verdadeiramente dominado, com a captura de Béhanzin, em 1894. E por dezesseis anos os franceses tiveram de combater, na Guiné, na Costa do Marfim, no norte de Gana e na Libéria, o grande Samori, antes de aprisioná-lo em 1898. O império fula-hauçá de Socotô só se renderia, com a morte do sultão Atahiru Ahmed, em 1903, já em nosso século.
A imagem que fica de tudo isso é a de uma África, no século XIX, governada essencialmente por africanos, e na qual, na maior parte dos casos, os europeus não se diferenciavam dos diulas, dos hauçás, dos árabes, dos fulas e de outros grupos que se incrustavam, como mercadores ou pastores, em reinos e cidades a que pelo sangue não pertenciam. Um mapa da África em 1880 mostra que ainda ocupavam a maior parte dos espaços geográficos entidades políticas soberanas como o reino tucolor de El Haji Omar, o império móvel de Samori, os reinos de Futa Jalom, Achanti, Danxomé, Benim e Bamum, Oió e numerosas cidades-estado iorubanas, os sultanatos de Socotô, Bornu e Uadai, o califado mahdista, a Etiópia, o reino vátua do Gungunhana, para ficar em alguns exemplos, além de milhares de aldeias-estado sob o comando de régulos, chefes de linhagens e conselhos de notáveis.
Durante o período colonial, muitas dessas estruturas de poder persistiram, como se fossem vassalas, tanto naquelas partes onde se adotou o governo indireto, preconizado por Lord Lugard, quanto em outras, nas quais os administradores europeus não puderam dispensar a intermediação dos régulos tradicionais. Em alguns lugares, tendo os europeus substituído por um pau mandado o soba ou chefe legítimo, este continuou a receber clandestinamente a obediência de seus súditos e a sacrificar aos seus deuses e ancestrais. Muitas vezes, para melhor ocultá-lo, valeram-se do chefe de palha, do falso chefe, que se fez visível como se fora o verdadeiro líder, o qual continua a mandar em segredo.
É muito possível que no Brasil tenha havido chefes africanos embuçados em escravos e libertos comuns, e que tenham também existido chefes de palha,, para iludir os senhores. Até hoje não se estudaram, de uma perspectiva basicamente africana, os quilombos, os reisados, os maracatus, as irmandades católicas negras e os próprios candomblés, como persistências e adaptações de estruturas políticas da África no Brasil.
Na sua obra sobre as danças tradicionais brasileiras, Mário de Andrade (20) conta como se processava a saída de um maracatu no Recife. Descreve os rituais em torno da calunga carregada pela dama do passo, e com grande intuição, afirma que a boneca tinha um sentido político. Tinha. Na África e também, no passado, possivelmente, no Brasil. Calunga é um símbolo de poder em Angola. Pode ter continuado como tal no maracatu, um cortejo real africano. Quem sabe se o maracatu não era um modo de manter vivo no exílio um sistema de solidariedade e obediências? Quem sabe se o maracatu não era, sob o disfarce de bloco festivo, o modo que tinha um rei oculto de mostrar-se aos seus ou de afirmar a sua presença através de um chefe de palha,, que, como se estivesse na África, desfilava, entre marcha e dança, sob os grandes pára-sóis?
O que seria de estranhar-se é que assim não fosse, tão intensas foram as relações e as trocas entre as duas margens do Atlântico. O Brasil é um país extraordinariamente africanizado. E só a quem não conhece a África pode escapar o quanto há de africano nos gestos, nas maneiras de ser e de viver e no sentimento estético do brasileiro. Por sua vez, em toda a outra costa atlântica podem-se facilmente reconhecer os brasileirismos. Há comidas brasileiras na África, como há comidas africanas no Brasil. Danças, tradições, técnicas de trabalho, instrumentos de música, palavras e comportamentos sociais brasileiros insinuaram-se no dia-a-dia africano. E comum que lá se ignore que certo prato ou determinado costume veio do Brasil. Como, entre nós, esquecemos o quanto nossa vida está impregnada de África. Na rua. Na praça. Na casa. Na cidade. No campo. O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja a nossa origem. Afinal, sem a escravidão o Brasil não existiria como hoje é, não teria sequer ocupado os imensos espaços que os portugueses lhe desenharam. Com ou sem remorsos, a escravidão é o processo mais longo e mais importante de nossa história.
Notas
Revista Estudos Avançados - USP
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