Mona Lisa
Quem vê seu discreto sorriso certamente não sabe pelo que passou a pobrezinha, nesses últimos 500 anos: atormentada, atacada, roubada e até seqüestrada por um ditador. Depois de tudo isso, só nos resta perguntar:
por Sérgio Miranda
Todos os anos o Museu do Louvre, em Paris, recebe cerca de 5,5 milhões de visitantes. Cada um deles espera encontrar muitas surpresas em um museu tão grandioso. Mas todos têm a mesma certeza: é ali que está La Joconde (em francês, como está escrito na etiqueta fixada na parede) ou a Mona Lisa, uma pequena tela de 77 x 53 centímetros, pintada por Leonardo da Vinci há exatos 500 anos. Resguardada atrás de um vidro de segurança e afastada do público por um cordão de isolamento, a obra, que já causava admiração e espanto quando seu autor era vivo, é a mais conhecida obra de arte do mundo.
A razão desse sucesso, em grande parte, deve-se à personalidade genial de Leonardo da Vinci que, ao contrário da maioria dos artistas ao longo da história, obteve o reconhecimento de sua genialidade ainda em vida. O retrato de uma mulher sentada, de vestes simples e de sorriso enigmático, foi logo reverenciado como mais um trabalho do mestre florentino e sua qualidade técnica é inquestionável. A obra já nasceu admirada pelo público, na época formado sobretudo pelos abastados cidadãos de Florença, Milão, Roma e Paris.
Leonardo pintou o retrato entre 1503 e 1506. Era uma época em que os artistas nem sempre assinavam seus quadros e, na maioria das vezes, deixavam para seus assistentes a tarefa de terminar a pintura. Sobre a Mona Lisa, porém, jamais se suscitou qualquer dúvida quanto a sua autoria. Apesar de não apresentar a assinatura do artista, é exemplar na técnica criada por Da Vinci – o sfumato, que elimina linhas de contornos e molda as figuras apenas com luz e sombras.
Outro grande artista da época, Rafael de Urbino, foi testemunha ocular do nascimento de Mona Lisa. Ele esteve em Florença entre 1504 e 1506. Então pouco mais que um aprendiz, o jovem Rafael produziu um desenho e um retrato inspirados na obra de Da Vinci. A mesma atitude, a mesma posição das mãos, até as duas colunas ao lado da composição (que hoje não se vêem mais no quadro, depois das seguidas emoldurações). Não há dúvida de que ele viu a obra de Da Vinci ainda em execução e tentou imitar (ou homenagear) o mestre.
Mas a certidão oficial de nascimento são as anotações de Giorgio Vasari. Escritor e pintor quinhentista, ele foi autor de duas biografias de Da Vinci (1550 e 1568). É ele que nos dá a primeira pista de quem é a moça retratada na tela e, de certa forma, tornou-se seu padrinho, já que é o responsável pelo seu batismo. Segundo Vasari foi Lisa del Giocondo que posou para Da Vinci, daí o nome do quadro: La Gioconda (La Joconde, para os franceses) e Mona Lisa (uma derivação de Madonna Lisa, em italiano). Embora haja outras versões para a identidade da retratada, o nome ficou esse mesmo. (Leia o quadro na página 52.)
Mas o próprio pai jamais falou ou se referiu à sua criação. Da Vinci registrou centenas, milhares de notas sobre seus trabalhos. Seus cadernos contendo idéias, esboços, rascunhos e até um tratado sobre a pintura são amplamente conhecidos e, até hoje, servem de fonte de pesquisa para artistas, cientistas e historiadores. No meio de toda essa papelada, ele não mencionou uma só vez sua obra mais famosa.
Mas ele devia gostar da obra. Tanto que não se desfez dela. Da Vinci jamais entregou o quadro a quem quer que fosse. Nem à retratada ou a quem a encomendou (e pagou?). No livro Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci, o crítico de arte italiano Angelo Guido defende a idéia de que a predileção do artista pela tela fosse estética. Segundo ele, Leonardo sabia ter alcançado com a Mona Lisa algo além das perfeições matemáticas que aplicava em seus trabalhos e talvez por isso tenha guardado a tela consigo e levado-a aonde foi.
Da Vinci viveu numa época em que os artistas peregrinavam pelas cortes européias para atender encomendas ou oferecer seus serviços. Já famoso e consagrado, em 1517 ele foi convidado à disputadíssima corte do rei Francisco I. Foi assim que Mona Lisa chegou a Paris. Mas Da Vinci não usufruiria por muito tempo da fama e da glória. Ele morreu apenas dois anos depois, no dia 2 de maio de 1519.
Quase que imediatamente, seus herdeiros venderam o quadro ao próprio rei Francisco por 12 mil francos e Mona Lisa foi morar no castelo em Amboise, residência oficial do monarca. Logo depois ela seguiu para o Gabinete dos Quadros do castelo de Fontainebleau, criado especialmente para abrigar a coleção de obras de arte da casa real francesa. Em 1693, a tela passou a pertencer ao acervo pessoal de Luís XIV e, em 1709, Mona Lisa se muda com a corte para o Palácio de Versalhes.
A revolução francesa e suas idéias liberais puseram o mundo de cabeça para baixo. Políticos do antigo regime foram mortos e seus símbolos, destruídos sob a onda de liberdade, igualdade e fraternidade. Durante cerca de 250 anos, o quadro só fora visto pela nobreza francesa. Agora ele teria de servir ao povo. Em 1793 – apenas quatro anos após os primeiros gritos da revolução – um antigo castelo, o Louvre, que foi sede do governo no tempo de Henrique II e Catarina de Médici, foi transformado em museu e aberto ao público.
Aos poucos as coleções espalhadas pelos castelos franceses foram reunidas. No entanto, antes de chegar ao Louvre, Mona Lisa sentiria a mão forte de Napoleão Bonaparte. Em 1800, o general em ascensão rumo ao poder absoluto tomou para si o quadro e mandou pendurá-lo em seus aposentos pessoais no Palácio das Tuileries. Napoleão se tornou imperador, travou batalhas, ganhou muitas, perdeu algumas, foi amado e odiado e nesse tempo todo Mona Lisa permaneceu à sua cabeceira, como a lhe embalar os sonhos de poder.
Apenas com a queda de Napoleão, em 1815, Mona Lisa seguiu para seu definitivo lar, no Louvre. Em meio a alguns dos maiores tesouros artísticos de todos os tempos, ela parecia, enfim, ter encontrado a segurança e a tranqüilidade que uma velha senhora, afinal, merecia. E assim foi, por quase 100 anos. Até que no século 20 uma outra onda de mudanças estourasse. Em vez de conturbações políticas, essa trouxe uma revolução no mundo das artes. Mona Lisa e o Louvre se tornaram símbolos da arte e do estilo que se queria superar. “Brûler le Louvre” (“queimar o Louvre”) se tornou um lema da geração de novos artistas, entre eles o pintor Pablo Picasso e o poeta Appolinaire. Picasso dizia que seria preciso incendiar o velho museu para que dele nascesse uma instituição mais moderna, que atendesse aos anseios dos artistas da época.
Em 21 de outubro de 1911, algo pior que um incêndio aconteceu. Mona Lisa foi roubada. Picasso e Appolinaire chegaram a figurar entre os suspeitos e foram interrogados. Até hoje permanecem as suspeitas de que soubessem de alguma coisa, mas nada se provou contra eles. Dois anos depois, a polícia prendeu o pintor italiano Vincenzo Peruggia quando este tentou vender o quadro para o governo italiano por 95 mil dólares. Em todo esse tempo, Mona Lisa esteve trancada em um baú, escondido no pequeno apartamento de Vincenzo (que, aliás, conhecia Picasso e morava a poucas quadras dele, em Paris). Durante o julgamento, Vincenzo disse ter sido motivado por patriotismo: queria devolver Mona Lisa à Itália. Acabou recebendo uma pena de prisão de um ano e 15 dias e o quadro foi devolvido a Paris, onde foi recebido com honras de chefe de Estado
Mona Lisa começava sua fase de superstar. Ela ficou tão em evidência e passou a ser tão assediada que, em 1956, acabou vítima de pelo menos dois atentados. No primeiro, um visitante jamais identificado lançou ácido sobre a tela e a parte inferior da pintura, danificada, precisou ser restaurada. Às 16h15 do dia 30 de dezembro, o estudante boliviano Ugo Unzaga Villegas jogou uma pedra na tela. O impacto descascou a pintura perto do cotovelo esquerdo de Mona Lisa. Ele foi preso e encaminhado pelas autoridades francesas para tratamento psiquiátrico. A obra foi restaurada.
Apesar dos ataques, o Louvre decidiu atender a um outro tipo de assédio. Museus do mundo todo queriam expor a obra e, em 1963, Mona Lisa deixou pela primeira vez a Europa e seguiu para os Estados Unidos. Para a viagem, foi feito um seguro, o que exigiu que, de forma inédita, o quadro fosse avaliado: se algo acontecesse a ele, o preço a ser pago pelo seguro seria de 100 milhões de dólares. Mas ela voltou sã e salva de sua temporada na América. Tanto que, em 1974, ela deixou novamente a França, dessa vez para um tour pelo Japão. A visita fez tamanho sucesso que até hoje é retribuída por um número enorme de turistas japoneses.
A tela de Da Vinci virou ícone da cultura pop. Se Picasso odiava a Mona Lisa, grandes artistas do século 20, como Andy Warhol e Duchamp, a utilizaram para criticar a sociedade de consumo e também ajudaram a eternizá-la: Mona Lisa tem sido uma das imagens mais disseminadas ao longo desses cinco séculos e, hoje, é um dos rostos mais reconhecidos em todo o mundo. E, como se ela soubesse disso, parece satisfeita, nos espiando por trás de seu sorrisinho enigmático e malicioso.
Quem foi Mona Lisa?
Lisa del Giocondo, embora empreste seu nome ao quadro, não é a única que concorre ao posto da mulher que está no retrato mais conhecido do mundo. A biografia de Da Vinci escrita por Giorgio Vasari conta que foi o marido de Lisa, Francesco del Giocondo, quem encomendou seu retrato ao artista. Depois de quatro anos, como Da Vinci não terminava a tela, Francesco proibiu a esposa de continuar posando e não pagou ao artista. No entanto, a primeira menção ao quadro é anterior ao texto de Vasari. Em 1517, Antonio de Beatis relatou a visita do cardeal Luiz de Aragon a Da Vinci, em Paris: “Ele mostrou a sua excelência três quadros, um dos quais era de uma certa mulher florentina, pintada por encomenda do falecido Giuliano de Medicis”. Das três obras, só uma era um retrato: Mona Lisa. Foi essa descrição de Beatis que abriu uma série de hipóteses para a identidade da jovem retratada. Pois, se Beatis tem razão, é pouco provável que Lisa del Giocondo seja a mulher do retrato.
Em 1503, quando Leonardo começou o quadro, Giuliano, filho da família mais poderosa de Florença, estava exilado em Roma desde 1494 e só voltou à cidade em 1512. É mais provável que Da Vinci, na visita do cardeal, tenha usado o nome de Giuliano – morto em 1517 – para justificar a posse da obra ou apenas para dar mais prestígio ao quadro. Mas o estrago foi feito. Até hoje, escritores, historiadores e curiosos se apegam à afirmação de Beatis para formular teorias alternativas sobre quem seria a Mona Lisa. O fato de Leonardo não ter entregue a obra também é um prato cheio para interpretações. Especula-se que a modelo seria uma amante do próprio artista. Por volta de 1493, Da Vinci estava em Milão, onde conheceu e pintou Cecilia Galerani. O artista, então com 32 anos, encantou-se com a jovem de 17 anos e com ela viveu, se não um caso amoroso, uma afeição que pode ser vista na série de cartas que trocou com ela.
Nessa linha ainda figuram Isabella D’Este, cunhada de Ludovico Sforza (o todo-poderoso local). Em 1500, Da Vinci fez um perfil de Isabella que é muito parecido com a Mona Lisa. Em 1987, a artista gráfica Lillian Schwartz criou sua própria Mona Lisa sobrepondo as imagens do desenho sobre a tinta da tela – identificado em exames de raios X – e o célebre auto-retrato de Da Vinci, chegando à mais imaginativa explicação sobre a identidade da moça. Ela concluiu que a tela é um retrato do artista. Embora haja semelhanças, elas podem ser explicadas: Da Vinci utilizava em suas obras proporções matemáticas constantes. Por isso quase todas se “encaixam”.
Saiba mais
SITE
http://www.louvre.fr
Obrigatório para quem gosta de arte, o site traz um ótimo conteúdo sobre a Mona Lisa (“Les Visages de la Joconde”).
LIVROS
Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci, Angelo Guido, Sulina, 1969
Artista e crítico de arte italiano radicado no Brasil, o autor discute várias obras de Da Vinci. O capítulo dedicado a Mona Lisa é recheado de fatos históricos sobre os mistérios que envolvem a obra.
Les Classiques de l’Art, Flammarion, Paris, 1968
Difícil de encontrar, mas vale a pena procurar em bibliotecas. O volume dedicado a Da Vinci apresenta a mais detalhada analise da Mona Lisa e diversas interpretações da obra.
Leonardo da Vinci, Kenneth Clark, Ediouro, 2003
Relançamento da coleção “Vidas Ilustradas”, traz a biografia completa do artista. O original é de 1939.
O que faz de um Da Vinci um Da Vinci?, Richard Mühlberger, Cosac & Naify, 1994
Livro introdutório da série criada pelo Metropolitan Museum de Nova York. Ricamente ilustrado, analisa, comenta e conta a história de Mona Lisa e de mais 11 obras de Da Vinci.
Revista Aventuras na História
Um comentário:
Olá Eduardo Parabén!
O HISTOÓRIA VIVA estácada vez melhor .
Gostri muito desse post sobre a Mona Lisa.
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