Opinião pública e escravidão. Imprensa e política no Império do Brasil durante a vigência do tráfico negreiro transatlântico (1820-1853)
Alain El Youssef
Mestrando em História pela Universidade de São Paulo - e-mail: alayoussef@yahoo.com.br
Alain El Youssef
Mestrando em História pela Universidade de São Paulo - e-mail: alayoussef@yahoo.com.br
A pesquisa de iniciação científica (IC), desenvolvida com apoio da Fapesp ao longo de dois anos (maio de 2005 a abril de 2007), sob o título de "Opinião pública e escravidão: os periódicos do Império do Brasil na década de 1830 (Jornal do Comércio, Aurora Fluminense, O Justiceiro e O Sete d' Abril)", partiu da constatação de que nenhuma das vertentes historiográficas que trabalharam com o tráfico e a escravidão do Império do Brasil havia se debruçado de forma sistemática sobre a imprensa da época.1 A começar pelos autores que fizeram parte da denominada "Escola de São Paulo". Como sua preocupação residiu em inserir a questão do cativeiro num quadro econômico mais amplo de transição da escravidão para o capitalismo, pouca atenção deram a essa documentação. Dentro de seu esquema explicativo, os debates ocorridos na imprensa não possuíam papel central, já que eram considerados epifenômenos de uma estrutura histórica marcada pela emergência de forças capitalistas que acabariam com a instituição do cativeiro. Este é o caso de Emília Viotti da Costa em seu clássico Da senzala à colônia. Em uma passagem do livro, a autora afirma que, dentro de determinadas condições sócio-econômicas, "a marcha da opinião pública nas várias províncias" foi um dos fatores que contribuiu para o encaminhamento do processo de transição da escravidão para o trabalho livre, no mesmo momento em que "os argumentos antiescravistas começaram a aparecer com certa insistência".2
A segunda vertente que tratou do tema abordou-o sob o ponto de vista da pressão inglesa sobre o tráfico de escravos brasileiro. Dentre estes estudos, destaca-se o de Leslie Bethell, no qual o autor enfatiza a ação política do governo inglês na sua tentativa de acabar com o tráfico de escravos brasileiro. Com isso, a atuação do governo brasileiro é relegada a segundo plano, sendo analisada somente como resposta às ações inglesas. Por essa razão, apesar do autor ter reconhecido que o tráfico negreiro foi discutido pela imprensa brasileira, não se encontra no livro uma análise destes debates no contexto da pressão inglesa já que este não era seu objetivo. De toda forma, o uso dos periódicos foi feito de forma pontual, restringindo-se a relatar sua existência e posição política ou, no máximo, para destacar sua ligação com a movimentação política da época.3
Um enquadramento alternativo surgiu, ainda no fim da década de 1970, com os trabalhos que relacionaram o tráfico e a escravidão ao processo político do Império brasileiro. Um excelente exemplo desta vertente, ainda que tardio, é O infame comércio, de Jaime Rodrigues, livro no qual o autor tentou compreender por que o fim do tráfico ocorreu depois de 1850 e não depois de 1831. Para isso, Rodrigues confere importância às discussões internas sobre o tráfico, mais especificamente aos debates parlamentares na Câmara e no Senado brasileiros. Todavia, como essa não era sua proposta, o autor não cruzou Atas Parlamentares e imprensa, limitando-se à análise das primeiras fontes mencionadas, mesmo afirmando que "a imprensa [...] se apresentava como local onde as divergências afloravam".4
A última vertente, cujo foco direcionou-se para a ação dos escravos como sujeitos históricos, surgiu ainda na década de 1980 e vem ganhando extraordinário vulto ultimamente. Sua preocupação residiu, desde o início, em resgatar o escravo como agente de sua própria história, passando a considerá-lo como um dos atores responsáveis pelo fim do tráfico e, principalmente, pela queda do sistema escravista no Brasil. Interessados nas repercussões das ações de rebeldia dos cativos, os historiadores dessa vertente, como no caso de Flavio Gomes e João José Reis, fizeram uso pontual de jornais para mostrar como as revoltas escravas atingiram a macro-política do Império, sendo decisivas para pôr fim ao tráfico de africanos. Com isso, não se preocuparam em discutir a natureza dessa fonte ou tomá-la num período mais dilatado de tempo. Ademais, não questionaram a quais grupos pertenciam os jornais analisados e se eles poderiam ou não estar interessados na repercussão dos eventos citados.5
Essa lacuna historiográfica detectada entre os historiadores da escravidão oitocentista ganhou mais relevância com a leitura de trabalhos que já fizeram uso da imprensa de forma sistemática. Por essa bibliografia foi possível ter indícios de que a imprensa constitui uma fonte privilegiada para o estudo da história política brasileira do século XIX, pois expõe momentos de crise em que assuntos relevantes, como o tráfico e a escravidão, foram discutidos na arena pública. Não à toa, Nelson Werneck Sodré, após ter se debruçado longamente sobre este tipo de documento, afirmou que "a vida política quase se resumia na imprensa", o que significa que os periódicos formavam o palco no qual eram discutidos os assuntos que nortearam a vida política da época.6 No mesmo sentido, João Pedro Marques escreveu que, em sua obra, "a imprensa foi, simultaneamente, uma fonte para o estudo das idéias e para a explicitação das práticas e processos políticos que levaram à abolição do tráfico de escravos".7
Isso se tornou ainda mais significativo quando a pesquisa passou a pontuar-se sobre a transformação que a imprensa representou para a estrutura política da América portuguesa nos anos que antecedem sua independência. Segundo Marco Morel, foi nesse "momento crucial" que começou a se afirmar, no Brasil, a noção de opinião pública no sentido moderno, com os periódicos aparecendo na cena pública "como instrumento de legitimidade política, distinguindo-se da soberania absolutista monárquica".8 A imprensa, portanto, era tida pelos atores históricos do século XIX como uma extensão da política praticada no parlamento, pois, sendo extremamente partidária, servia para divulgar propostas e criar laços em torno de projetos dos grupos políticos existentes.
O procedimento seguinte consistiu na seleção das fontes, sendo escolhidos, inicialmente, o Jornal do Comércio, O Justiceiro, O Sete d'Abril e O Catão. A consulta dos três primeiros mostrou-se bastante frutífera, ao contrário do que ocorreu com o último periódico, no qual não se encontrou absolutamente nenhum artigo que fizesse menção ao tráfico ou à escravidão. Em vista disso, resolveu-se substituir O Catão pela Aurora Fluminense, principal periódico liberal do início da década de 1830. Com essa troca, o processo político do período regencial e as conseqüências que o mesmo acarretou para o tráfico de escravos ficaram mais evidentes. Tornou-se possível, por meio da análise desses documentos, chegar à conclusão de que os debates referentes ao tráfico e à escravidão travados na imprensa brasileira estavam profundamente articulados às discussões existentes no parlamento imperial e à formação de grupos políticos no período regencial. Nesse sentido, constatou-se, na pesquisa de iniciação, que, durante o período regencial, ocorreu uma profunda transformação na opinião pública em relação ao comércio de africanos. Enquanto que, de 1831 a 1835, houve uma crítica consistente ao tráfico de escravos encabeçada pelos liberais moderados por meio do Jornal do Comércio e da Aurora Fluminense, na segunda metade da mesma década, com a formação e a ascensão do Regresso, houve uma defesa clara da reabertura do comércio negreiro, cuja bandeira era estiada pelo jornal O Sete d'Abril.
Tendo como base essa transformação na opinião pública, foi elaborado um projeto de mestrado (desenvolvido desde março de 2008, com auxílio da FAPESP) com o intuito de avançar a pesquisa em dois âmbitos: em primeiro lugar, propôs-se cobrir um número maior de periódicos referentes ao período regencial, a fim de dar maior consistência e riqueza ao trabalho já realizado; o segundo objetivo foi ampliar o recorte cronológico com a intenção de acompanhar como os debates ocorreram durante os primeiros momentos da construção do Estado nacional. Estes momentos podem ser divididos em três sub-fases distintas: 1) o Primeiro Reinado, quando a escravidão é debatida de forma mais intensa pela Assembléia Constituinte de 1823 e, anos mais tarde, quando ocorre a assinatura do Tratado Anglo-Brasileiro (1826) que proíbe o tráfico de escravos no país; 2) a Regência, período ímpar do Império brasileiro no qual, além da minoridade do imperador, há algumas redefinições políticas que possuem relação direta com a continuidade ilegal do comércio de africanos; 3) e, por fim, a década de 1840, quando os Conservadores impõe sua hegemonia, mas, por conta da intensificação das pressões inglesas, são levados a dar fim ao tráfico. Tomadas em conjunto, a análise de todas essas fases será capaz de fornecer um quadro mais amplo dos debates que ocorreram desde o momento em que o comércio de africanos passou a ser questionado até sua definitiva extinção.
A ampliação da pesquisa também exigiu a formulação de um problema para a mesma: quais as implicações do surgimento da imprensa para o debate a respeito do tráfico e da escravidão no Império do Brasil, na medida em que o mesmo foi jogado para o âmbito da esfera pública? Como se sabe, não houve movimento antiescravista no Brasil antes da década de 1870, a despeito de haver opiniões antiescravistas no Império português desde, pelo menos, o início do século XIX. As primeiras críticas à instituição foram formuladas ainda em um quadro de comunicação típico de Antigo Regime, por meio de representações e memórias dedicadas ao monarca, e, desde os primórdios da imprensa – do Correio Brasiliense até os primeiros periódicos brasileiros –, elas se fizeram presentes.9 O boom da imprensa brasileira nas décadas de 1820 e 1830, marcando a formação de uma opinião pública de tipo moderno, ocorreu no exato momento em que o problema do tráfico agudizava-se (tratados com a Inglaterra, lei de 1831, projetos de sua anulação a partir de 1835, reabertura do tráfico, bill Aberdeen e efetiva abolição do comércio de africanos). Nos artigos publicados na década de 1830, a instituição foi duramente criticada. Com base nisso, é preciso pensar porque não se constituiu um espaço de opinião pública contrário à escravidão, por meio do veículo da imprensa.
O problema é importante, pois em diversos espaços do Atlântico (Inglaterra, Estados Unidos e Espanha) a campanha contra o tráfico e a escravidão dependeu da constituição de uma esfera pública de tipo moderno com utilização significativa da imprensa. Na historiografia sobre a escravidão brasileira, essa mesma questão – por que não se constituiu um movimento abolicionista durante a primeira metade do século XIX – foi explicada por meio da conformação social do Império do Brasil. Isto é, a difusão social da instituição antes de 1850, promovida pelo forte aumento do tráfico no mesmo período, foi tomada como um fator central que não permitiu a emergência das opiniões contrárias à escravidão como um movimento social organizado – condição que se alteraria com o fim definitivo do comércio de africanos.10 Tal interpretação, se correta, não dá conta de todo o problema, haja vista o volume dos artigos de jornais contrários à escravidão existentes desde a década de 1820.
Diante disso, a principal hipótese que norteia a pesquisa é que os Conservadores, no exato momento em que promoviam sua expansão vertical, atraindo para seus quadros diversos jornalistas, criaram um consenso em torno de algumas de suas idéias.11 O movimento ocorrido na década de 1830 demonstra que em todas as aparições da escravidão e do tráfico na imprensa (no debate mais ligado à política, na repercussão das revoltas escravas, nos exemplos externos e nas apreensões e julgamentos dos navios capturados por traficar africanos), os Saquaremas foram capazes de fazer com que seus posicionamentos se tornassem preponderantes, conseguindo silenciar qualquer opinião pública contrária à escravidão. Dessa forma, resolveu-se averiguar se essa conclusão mantém-se de pé quando se analisa um número maior de periódicos e quando se toma a imprensa em um período mais dilatado de tempo.
Por enquanto, a pesquisa empírica ainda não alcançou a segunda metade da década de 1830. O material analisado até o momento restringe-se aos periódicos do Primeiro Reinado e dos primeiros anos do Período Regencial. Mesmo assim, já foi possível, a partir do que foi encontrado, formular alguns problemas que permearão a redação da primeira parte da dissertação, referente à década de 1820: 1) a assinatura do tratado que aboliu o tráfico de escravos foi utilizada como argumento para fazer oposição ao governo de D. Pedro I? Se sim, como isso se deu?; 2) como lidar com as constantes referências ao haitianismo que aparecem na imprensa, na sua maior parte, em momentos de maior conturbação política? Essas manifestações seriam uma evidência do medo dos senhores quanto a uma possível revolta de escravos ou seriam recursos retóricos utilizados para defender determinados projetos ou demandas políticas?; 3) a lei que aboliu o tráfico de escravos aprovada pelo parlamento brasileiro foi uma "lei pra inglês ver"?
Das três questões colocadas, a primeira é a que permanece mais indefinida até o presente momento, necessitando de investigação mais detalhada. De toda a forma, é possível afirmar que, caso D. Pedro I tenha sofrido críticas em conseqüência da assinatura do tratado que aboliu o tráfico de escravos, essas críticas não foram diretas, dirigidas à pessoa do imperador, e sim à forma como o tratado foi celebrado. Já sobre a segunda questão, é possível afirmar preliminarmente que a maioria dos pronunciamentos referentes ao haitianismo foi feita de forma retórica. Este é o caso, por exemplo, do debate ocorrido durante o processo de emancipação política do Brasil (1821-22), quando os defensores da unidade do Império português, visando amedrontar os projetos independentistas, argumentavam que, caso o Brasil viesse a quebrar os laços que possuía com Portugal, o território sucumbiria com uma iminente revolta de escravos que estaria pairando sobre o território americano. Por fim, no que diz respeito à última questão, é possível afirmar, agora com toda a certeza, que a lei brasileira que aboliu o tráfico de africanos não foi uma "lei pra inglês ver". Isso é comprovado pelas amplas manifestações que se seguiram na imprensa, após a promulgação da lei, com o intuito de solucionar o problema da falta de mão-de-obra que assolaria o Império após o ano de 1831. Outro indício que permite referendar tal afirmação reside nos artigos que boa parte da imprensa passa a publicar a partir de 1832, em tom de surpresa e indignação, criticando de forma violenta a continuidade ilegal do comércio de africanos.
Para além dessas questões, o cronograma da pesquisa prevê a continuidade da consulta do corpus documental até o seu esgotamento, cobrindo o período e os periódicos que ainda padecem de análise. Pretende-se, também, dar continuidade à leitura de bibliografia especializada em temas relacionados ao objetivo da pesquisa, como o tráfico de escravos, a escravidão no espaço atlântico, a opinião pública e a imprensa do século XIX e a política no Império brasileiro. Com isso, o objetivo é encaminhar a segunda parte da pesquisa seguindo a mesma linha de análise e o mesmo tipo de cronograma adotados até o presente momento.
Notas
Revista de História - USP
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