Joseph-Ignace Guillotin: Doutor Guilhotina
O médico francês Joseph-Ignace Guillotin só queria diminuir o sofrimento dos condenados. Mas acabou emprestando seu nome ao invento que se tornou símbolo da crueldade da Revolução Francesa
por Fernando Eichenberg
A guilhotina passou por seu grande teste na manhã de 15 de abril de 1792. Às 10h, o instrumento foi montado no pátio do hospício Bicêtre, em Paris, transformado em presídio para receber os inimigos da Revolução Francesa. Dessa vez, no lugar de ovelhas vivas, as cobaias seriam cadáveres humanos. A afiada lâmina separou, a cada vez, cabeça e tronco de três defuntos, comprovando sua eficácia diante de uma platéia de representantes da Assembléia Nacional. Das janelas de suas celas, prisioneiros também assistiram à performance: “É o famoso projeto de igualdade, todo mundo morrerá da mesma maneira”, disse um deles, segundo as crônicas da época. “É o nivelamento”, acrescentou outro. Entusiasmado, o carrasco Charles-Henri Sanson, habituado a execuções bem mais penosas, exclamou: “Bela invenção! Tomara que não se abuse de sua facilidade!”
A primeira execução pública com o uso da guilhotina ocorreu dez dias depois, em 25 de abril (naquela mesma quarta-feira, o militar Rouget de Lisle interpretava, em Estrasburgo, o seu “Canto de Guerra para o Exército do Reno”, mais tarde rebatizado de “A Marselhesa” e transformado no hino nacional francês). A vítima foi Nicolas-Jacques Pelletier, condenado por roubo e assassinato. No dia seguinte, o jornal La Chronique de Paris deu seu veredicto sobre a guilhotina: “Ela não mancha a mão de um homem da morte de seu semelhante e a prontidão com a qual abate o culpado está mais de acordo com o espírito da lei, que pode muitas vezes ser severa, mas que não deve jamais ser cruel”.
A impressão positiva do jornal logo se tornaria uma opinião isolada. Em pouco tempo, a Revolução Francesa abandonou suas belas palavras de ordem e entrou no período chamado de Terror, em que qualquer suspeito de se opor ao regime podia acabar sem cabeça. No início de 1794, apenas em Paris, cerca de 20 mil condenados foram decapitados – entre eles estava Georges Danton, que havia sido um dos líderes da Revolução.
Posta a serviço do Terror, a guilhotina entrou para a história como símbolo de crueldade e opressão. E pensar que ela nasceu dos sentimentos nobres do deputado e médico Joseph-Ignace Guillotin, nascido em 1738. Grande responsável pela adoção da guilhotina na França, ele queria apenas diminuir o sofrimento dos condenados à morte. Isso é o que conta o historiador francês Henri Pigaillem na biografia Le Docteur Guillotin (“O doutor Guillotin”, sem edição em português), que leva o subtítulo “benfeitor da humanidade”.
Risos na Assembléia
Até os 25 anos, o jovem Guillotin seguiu a vontade de seu pai e cursou teologia na Sociedade de Jesus, em Bordeaux. Mas, no início de 1763, abandonou os estudos religiosos para desenvolver sua verdadeira vocação: a medicina. Durante quatro anos, estudou na Faculdade de Medicina de Reims. Ao mesmo tempo, trabalhou como assistente em estabelecimentos que acolhiam crianças abandonadas, idosos, indigentes e deficientes mentais. Sua formação foi completada com cinco anos de estudos na prestigiosa Faculdade de Medicina de Paris. Coberto de títulos, tornou-se professor da instituição e, a partir de 1771, um dos médicos mais reputados da capital. Henri Pigaillem o descreve como um homem laborioso, austero, tímido, casto e honesto. Cobrava caro em seu consultório, mas dava atendimento gratuito aos pobres na paróquia de Saint-Séverin.
Enquanto Guillotin prosperava, a França vivia a indignação crescente contra os privilégios da nobreza. Eles existiam até na hora de ser executado: delitos iguais eram punidos de modo diferente, dependendo da classe social. Um nobre podia escolher entre a morte pela espada ou pelo machado. Já o cidadão comum era preso a uma enorme roda de madeira, onde tinha suas articulações quebradas, e depois era esquartejado ou morria na forca. Havia penas mais específicas: enquanto os falsificadores de moedas eram jogados em uma caldeira fervente, os hereges eram queimados na fogueira.
Mas a desigualdade estava com os dias contados. Em 1789, diante de intensa agitação popular, as regalias legais da nobreza foram abolidas pela Assembléia Nacional – que havia sido convocada pelo rei Luís XVI para fazer pequenas mudanças, mas acabou fugindo a seu controle. A Revolução Francesa estava apenas começando. Em nome da liberdade e da igualdade, os deputados passaram a transformar profundamente o país. Entre eles estava Guillotin, que conquistara um lugar na Assembléia.
Em outubro, quando os deputados debatiam a reforma do código penal, Guillotin apresentou suas propostas, que ele chamou de “artigos filantrópicos”. Propôs que todos os delitos do mesmo gênero fossem punidos com a mesma pena, não importasse o status do culpado. Também sugeriu um só suplício para todos os condenados à morte: a decapitação, “praticada pelo efeito de um simples mecanismo”. Os deputados riram de suas propostas – mal sabiam que, mais tarde, alguns deles experimentariam a fria lâmina da guilhotina. A discussão acabou adiada.
Guillotin não desistiu de acabar com a tortura em praça pública. Em 21 de janeiro de 1790, ao voltar a defender da tribuna o seu projeto, disse: “Senhores, com minha máquina lhes arrancarei a cabeça em um piscar de olhos e vocês não sofrerão. O mecanismo cai como um raio, a cabeça voa, o sangue jorra, e o homem já não existe”. O jornal Le Moniteur tomou o partido do médico: “A inovação de colocar a mecânica no lugar de um executor, que, como a lei, separa a sentença do juiz, é digna dos séculos em que vamos viver e da nova ordem em que estamos entrando”.
Em 3 de maio, o deputado Louis-Michel le Peletier de Saint-Fargeau, relator do Comitê de Legislação Criminal, propôs a abolição da pena de morte. “Não é no século 18 que devemos consagrar um erro de séculos precedentes”, disse aos colegas. Sua proposta foi rejeitada, mas acabou dando novo impulso à discussão sobre a crueldade das execuções. No debate, foi clamada a idéia de que todo condenado à morte deveria ter a cabeça cortada. Guillotin vencera, enfim.
De médico a monstro
De acordo com Henri Pigaillem, o doutor Guillotin não inventou o tal “simples mecanismo” decepador de cabeças. Apenas aperfeiçoou algo que já existia. Sua primeira inspiração teria surgido diante de uma gravura do alemão Albrecht Dürer, feita no século 16, na qual o ditador romano Tito Mânlio decapita seu próprio filho com um aparelho semelhante a uma guilhotina. Há registros de que, durante a Idade Média, equipamentos de cortar cabeças já funcionavam na Alemanha. A partir do século 16, na Inglaterra e na Escócia, surgiram versões mais aperfeiçoadas. Elas dariam origem à guilhotina francesa.
Apesar de ter participado do esboço da engenhoca e de ter sido seu grande defensor, Guillotin não acompanhou a construção do primeiro modelo. Mesmo assim, a imprensa francesa se encarregou de batizar o instrumento de “guilhotina” pouco antes de sua adoção oficial, em 1792. Apesar da pitoresca homenagem, Guillotin estava feliz. Afinal de contas, tinha eliminado a dor na execução e criado a igualdade diante da morte.
Em pouco tempo, 50 guilhotinas foram instaladas em várias partes da França, funcionando até seis horas por dia. Em janeiro de 1793, marcando o fim do regime monárquico, Luís XVI se tornou a mais célebre vítima do instrumento – ironicamente, o próprio rei havia sancionado a lei que instituíra o uso da guilhotina, no ano anterior. Em outubro, sua esposa Maria Antonieta teria o mesmo destino.
A guilhotina se popularizou a ponto de ganhar versões em miniatura, feitas de madeira ou marfim e adornadas com detalhes em ouro e prata. Crianças ganhavam guilhotinas de brinquedo, enquanto aristocratas se divertiam decapitando bonecos travestidos de líderes revolucionários. Com desgosto, Guillotin percebeu que seus ideais humanitários e sua imagem haviam sido corrompidos pelos franceses. “Ele quis acabar com o sofrimento dos condenados à morte e jamais imaginou que passaria aos olhos do povo por um criminoso sádico em vez de um benfeitor da humanidade. Vítima da opinião pública, se tornou para sempre o padrinho da horrível máquina”, escreve Pigaillem.
Diante da indiferença geral dos franceses, o doutor Guillotin morreu em 1814, aos 76 anos. Durante sua cerimônia fúnebre, o médico e amigo Edmond-Claude Bourru lamentou: “Infelizmente para nosso colega, sua moção filantrópica deu lugar a um instrumento ao qual o vulgo aplicou seu nome: prova de que é difícil fazer o bem aos homens sem que isso resulte em algum desagrado para si”.
A batalha contra a lâmina
Na França, a guilhotina só foi aposentada em 1981
“Vocês vão cortar vivo esse homem em dois?!” Com a voz grave e o indicador apontado em seqüência para a face de cada um dos jurados, o francês Robert Badinter procurava salvar a vida de seu cliente Patrick Henry, 23 anos, julgado pelo seqüestro e morte de um menino de 8 anos. No intento de poupar o réu, naquele janeiro de 1977, o advogado acrescentou: “Chegará o dia em que a pena de morte será abolida, e então vocês dirão aos seus filhos que mataram um homem. E vocês verão os olhares deles”. O discurso surtiu efeito: apesar das pressões das ruas, o acusado escapou da guilhotina e foi condenado à prisão perpétua. Anos mais tarde, em 9 de outubro de 1981, era publicado o decreto de abolição da pena de morte na França, assinado pelo então presidente François Mitterrand. Uma vitória de seu ministro da Justiça, empossado quatro meses antes: Robert Badinter. A cruzada, finalmente, terminara. Antes de extinguir a pena de morte no país da guilhotina, Badinter assistiu à amarga aplicação da sentença. Em 1972, todo seu esforço para inocentar Roger Bontems do crime de assassinato havia sido inútil. Numa madrugada de novembro, Badinter acompanhou o preso até o mórbido altar. Lá, viu o carrasco soltar a pesada lâmina. “Nunca mais encarei a Justiça da mesma maneira”, disse Badinter tempos depois. Nos meses seguintes à morte de seu cliente, ele escreveu um relato cru e humano do embate contra o veredicto fatal: o livro A Execução. Era apenas o começo de sua luta. O cardeal Lustiger, arcebispo de Paris, reagiu com dureza: “No futuro, quando a abolição da pena de morte impedir a execução do autor de um crime abominável, será você que, no inconsciente coletivo, tomará o lugar do assassino”. Como ministro, Badinter viu sua família ser ameaçada de morte e assistiu a manifestações pedindo sua demissão. Mas não ficou quieto até silenciar a guilhotina.
Saiba mais
Livro
Le Docteur Guillotin, Henri Pigaillem, Pygmalion, 2004.
Revista Aventuras na História
O médico francês Joseph-Ignace Guillotin só queria diminuir o sofrimento dos condenados. Mas acabou emprestando seu nome ao invento que se tornou símbolo da crueldade da Revolução Francesa
por Fernando Eichenberg
A guilhotina passou por seu grande teste na manhã de 15 de abril de 1792. Às 10h, o instrumento foi montado no pátio do hospício Bicêtre, em Paris, transformado em presídio para receber os inimigos da Revolução Francesa. Dessa vez, no lugar de ovelhas vivas, as cobaias seriam cadáveres humanos. A afiada lâmina separou, a cada vez, cabeça e tronco de três defuntos, comprovando sua eficácia diante de uma platéia de representantes da Assembléia Nacional. Das janelas de suas celas, prisioneiros também assistiram à performance: “É o famoso projeto de igualdade, todo mundo morrerá da mesma maneira”, disse um deles, segundo as crônicas da época. “É o nivelamento”, acrescentou outro. Entusiasmado, o carrasco Charles-Henri Sanson, habituado a execuções bem mais penosas, exclamou: “Bela invenção! Tomara que não se abuse de sua facilidade!”
A primeira execução pública com o uso da guilhotina ocorreu dez dias depois, em 25 de abril (naquela mesma quarta-feira, o militar Rouget de Lisle interpretava, em Estrasburgo, o seu “Canto de Guerra para o Exército do Reno”, mais tarde rebatizado de “A Marselhesa” e transformado no hino nacional francês). A vítima foi Nicolas-Jacques Pelletier, condenado por roubo e assassinato. No dia seguinte, o jornal La Chronique de Paris deu seu veredicto sobre a guilhotina: “Ela não mancha a mão de um homem da morte de seu semelhante e a prontidão com a qual abate o culpado está mais de acordo com o espírito da lei, que pode muitas vezes ser severa, mas que não deve jamais ser cruel”.
A impressão positiva do jornal logo se tornaria uma opinião isolada. Em pouco tempo, a Revolução Francesa abandonou suas belas palavras de ordem e entrou no período chamado de Terror, em que qualquer suspeito de se opor ao regime podia acabar sem cabeça. No início de 1794, apenas em Paris, cerca de 20 mil condenados foram decapitados – entre eles estava Georges Danton, que havia sido um dos líderes da Revolução.
Posta a serviço do Terror, a guilhotina entrou para a história como símbolo de crueldade e opressão. E pensar que ela nasceu dos sentimentos nobres do deputado e médico Joseph-Ignace Guillotin, nascido em 1738. Grande responsável pela adoção da guilhotina na França, ele queria apenas diminuir o sofrimento dos condenados à morte. Isso é o que conta o historiador francês Henri Pigaillem na biografia Le Docteur Guillotin (“O doutor Guillotin”, sem edição em português), que leva o subtítulo “benfeitor da humanidade”.
Risos na Assembléia
Até os 25 anos, o jovem Guillotin seguiu a vontade de seu pai e cursou teologia na Sociedade de Jesus, em Bordeaux. Mas, no início de 1763, abandonou os estudos religiosos para desenvolver sua verdadeira vocação: a medicina. Durante quatro anos, estudou na Faculdade de Medicina de Reims. Ao mesmo tempo, trabalhou como assistente em estabelecimentos que acolhiam crianças abandonadas, idosos, indigentes e deficientes mentais. Sua formação foi completada com cinco anos de estudos na prestigiosa Faculdade de Medicina de Paris. Coberto de títulos, tornou-se professor da instituição e, a partir de 1771, um dos médicos mais reputados da capital. Henri Pigaillem o descreve como um homem laborioso, austero, tímido, casto e honesto. Cobrava caro em seu consultório, mas dava atendimento gratuito aos pobres na paróquia de Saint-Séverin.
Enquanto Guillotin prosperava, a França vivia a indignação crescente contra os privilégios da nobreza. Eles existiam até na hora de ser executado: delitos iguais eram punidos de modo diferente, dependendo da classe social. Um nobre podia escolher entre a morte pela espada ou pelo machado. Já o cidadão comum era preso a uma enorme roda de madeira, onde tinha suas articulações quebradas, e depois era esquartejado ou morria na forca. Havia penas mais específicas: enquanto os falsificadores de moedas eram jogados em uma caldeira fervente, os hereges eram queimados na fogueira.
Mas a desigualdade estava com os dias contados. Em 1789, diante de intensa agitação popular, as regalias legais da nobreza foram abolidas pela Assembléia Nacional – que havia sido convocada pelo rei Luís XVI para fazer pequenas mudanças, mas acabou fugindo a seu controle. A Revolução Francesa estava apenas começando. Em nome da liberdade e da igualdade, os deputados passaram a transformar profundamente o país. Entre eles estava Guillotin, que conquistara um lugar na Assembléia.
Em outubro, quando os deputados debatiam a reforma do código penal, Guillotin apresentou suas propostas, que ele chamou de “artigos filantrópicos”. Propôs que todos os delitos do mesmo gênero fossem punidos com a mesma pena, não importasse o status do culpado. Também sugeriu um só suplício para todos os condenados à morte: a decapitação, “praticada pelo efeito de um simples mecanismo”. Os deputados riram de suas propostas – mal sabiam que, mais tarde, alguns deles experimentariam a fria lâmina da guilhotina. A discussão acabou adiada.
Guillotin não desistiu de acabar com a tortura em praça pública. Em 21 de janeiro de 1790, ao voltar a defender da tribuna o seu projeto, disse: “Senhores, com minha máquina lhes arrancarei a cabeça em um piscar de olhos e vocês não sofrerão. O mecanismo cai como um raio, a cabeça voa, o sangue jorra, e o homem já não existe”. O jornal Le Moniteur tomou o partido do médico: “A inovação de colocar a mecânica no lugar de um executor, que, como a lei, separa a sentença do juiz, é digna dos séculos em que vamos viver e da nova ordem em que estamos entrando”.
Em 3 de maio, o deputado Louis-Michel le Peletier de Saint-Fargeau, relator do Comitê de Legislação Criminal, propôs a abolição da pena de morte. “Não é no século 18 que devemos consagrar um erro de séculos precedentes”, disse aos colegas. Sua proposta foi rejeitada, mas acabou dando novo impulso à discussão sobre a crueldade das execuções. No debate, foi clamada a idéia de que todo condenado à morte deveria ter a cabeça cortada. Guillotin vencera, enfim.
De médico a monstro
De acordo com Henri Pigaillem, o doutor Guillotin não inventou o tal “simples mecanismo” decepador de cabeças. Apenas aperfeiçoou algo que já existia. Sua primeira inspiração teria surgido diante de uma gravura do alemão Albrecht Dürer, feita no século 16, na qual o ditador romano Tito Mânlio decapita seu próprio filho com um aparelho semelhante a uma guilhotina. Há registros de que, durante a Idade Média, equipamentos de cortar cabeças já funcionavam na Alemanha. A partir do século 16, na Inglaterra e na Escócia, surgiram versões mais aperfeiçoadas. Elas dariam origem à guilhotina francesa.
Apesar de ter participado do esboço da engenhoca e de ter sido seu grande defensor, Guillotin não acompanhou a construção do primeiro modelo. Mesmo assim, a imprensa francesa se encarregou de batizar o instrumento de “guilhotina” pouco antes de sua adoção oficial, em 1792. Apesar da pitoresca homenagem, Guillotin estava feliz. Afinal de contas, tinha eliminado a dor na execução e criado a igualdade diante da morte.
Em pouco tempo, 50 guilhotinas foram instaladas em várias partes da França, funcionando até seis horas por dia. Em janeiro de 1793, marcando o fim do regime monárquico, Luís XVI se tornou a mais célebre vítima do instrumento – ironicamente, o próprio rei havia sancionado a lei que instituíra o uso da guilhotina, no ano anterior. Em outubro, sua esposa Maria Antonieta teria o mesmo destino.
A guilhotina se popularizou a ponto de ganhar versões em miniatura, feitas de madeira ou marfim e adornadas com detalhes em ouro e prata. Crianças ganhavam guilhotinas de brinquedo, enquanto aristocratas se divertiam decapitando bonecos travestidos de líderes revolucionários. Com desgosto, Guillotin percebeu que seus ideais humanitários e sua imagem haviam sido corrompidos pelos franceses. “Ele quis acabar com o sofrimento dos condenados à morte e jamais imaginou que passaria aos olhos do povo por um criminoso sádico em vez de um benfeitor da humanidade. Vítima da opinião pública, se tornou para sempre o padrinho da horrível máquina”, escreve Pigaillem.
Diante da indiferença geral dos franceses, o doutor Guillotin morreu em 1814, aos 76 anos. Durante sua cerimônia fúnebre, o médico e amigo Edmond-Claude Bourru lamentou: “Infelizmente para nosso colega, sua moção filantrópica deu lugar a um instrumento ao qual o vulgo aplicou seu nome: prova de que é difícil fazer o bem aos homens sem que isso resulte em algum desagrado para si”.
A batalha contra a lâmina
Na França, a guilhotina só foi aposentada em 1981
“Vocês vão cortar vivo esse homem em dois?!” Com a voz grave e o indicador apontado em seqüência para a face de cada um dos jurados, o francês Robert Badinter procurava salvar a vida de seu cliente Patrick Henry, 23 anos, julgado pelo seqüestro e morte de um menino de 8 anos. No intento de poupar o réu, naquele janeiro de 1977, o advogado acrescentou: “Chegará o dia em que a pena de morte será abolida, e então vocês dirão aos seus filhos que mataram um homem. E vocês verão os olhares deles”. O discurso surtiu efeito: apesar das pressões das ruas, o acusado escapou da guilhotina e foi condenado à prisão perpétua. Anos mais tarde, em 9 de outubro de 1981, era publicado o decreto de abolição da pena de morte na França, assinado pelo então presidente François Mitterrand. Uma vitória de seu ministro da Justiça, empossado quatro meses antes: Robert Badinter. A cruzada, finalmente, terminara. Antes de extinguir a pena de morte no país da guilhotina, Badinter assistiu à amarga aplicação da sentença. Em 1972, todo seu esforço para inocentar Roger Bontems do crime de assassinato havia sido inútil. Numa madrugada de novembro, Badinter acompanhou o preso até o mórbido altar. Lá, viu o carrasco soltar a pesada lâmina. “Nunca mais encarei a Justiça da mesma maneira”, disse Badinter tempos depois. Nos meses seguintes à morte de seu cliente, ele escreveu um relato cru e humano do embate contra o veredicto fatal: o livro A Execução. Era apenas o começo de sua luta. O cardeal Lustiger, arcebispo de Paris, reagiu com dureza: “No futuro, quando a abolição da pena de morte impedir a execução do autor de um crime abominável, será você que, no inconsciente coletivo, tomará o lugar do assassino”. Como ministro, Badinter viu sua família ser ameaçada de morte e assistiu a manifestações pedindo sua demissão. Mas não ficou quieto até silenciar a guilhotina.
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Livro
Le Docteur Guillotin, Henri Pigaillem, Pygmalion, 2004.
Revista Aventuras na História
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