segunda-feira, 30 de agosto de 2010

EREMITAS e BEATAS

RELIGIÃO
Isolamento e humilhação corporal foram um meio comum na expressão do fervor religioso que se espalhou entre os leigos dos séculos XVI e XVII

POR CÉLIA MAIA BORGES

No início da Idade Moderna, a partir do século XVI e prosseguindo pelo XVII, a Europa Católica vê intensificar um movimento de renovação religiosa. Durante a Contra-Reforma, o clima instaurado pelas guerras religiosas ampliava o gosto pelas manifestações extraordinárias, pelas visões e revelações, ao mesmo tempo que se multiplicavam edições de livros religiosos voltados para a alta espiritualidade. Biografias de santos e histórias de vidas devotas atraíam um público cada vez maior, projetando modelos de santidade da época medieval e do início da Idade Moderna. Os séculos XVI e XVII foram pródigos na produção de santos dentro da Península Ibérica: Santa Teresa, Santo Ignácio de Loyola, São Pedro de Alcântara, São João da Cruz, dentre muitos outros. Se eram muitos os santos, também eram muitos os candidatos à santidade. Para além dos beatificados e canonizados pela Igreja, muitos outros surgiram e logo caíram nos esquecimento, pois foram reconhecidos como santos somente pela comunidade local. Assim, procurando inibir as práticas de devoção a santos e santas não canonizados, o papa Urbano VIII, por decretos de 1625 e 1634, deliberou que a Igreja somente reconheceria a santidade de alguém que tivesse sido objeto de culto público.


De Alessandro Magnasco (1667-1749), Três Frades Capuchinos meditando em seus eremitérios, em óleo sobre tela feita entre 1713 e 1714. Encontra-se no Rijksmuseum, em Amsterdã


A sede do maravilhoso, que significava a possibilidade da união divina, aliada ao projeto de realizar-se em uma vida de santidade, constituiu parte dos sonhos de homens e mulheres no início da Idade Moderna. Esse interesse, juntamente com uma literatura com ênfase em técnicas oracionais, acabou por atrair não só religiosos, mas também leigos que se identificavam e buscavam nesses modelos uma trajetória espiritual. Entre os leigos, as beatas obtiveram um grande destaque. Tais mulheres geralmente adotavam um hábito e um cordão e praticavam árduos exercícios espirituais. Ainda que leigas, viviam reclusas em suas casas e, não raras vezes, tinham seguidoras que reconheciam o seu papel como orientadoras espirituais. Algumas deram origens a casas de recolhimentos ou beatérios, que eram centros onde se isolavam com suas adeptas; uma situação híbrida entre o modelo claustral e a vida secular. A entrada nos conventos exigia das candidatas um dote, o que impedia, a muitas, o sonho de realizar-se na busca da santidade, a não ser adotando um estilo de vida de reclusão e exercitando as técnicas oracionais muito em voga naquele tempo. Comumente, as beatas tinham um guia espiritual ou confessor que se tornava responsável pelo registro biográfico das suas orientandas espirituais, bem como exigia das beatas a escrita de suas experiências, das suas visões e revelações. Não foram poucas as que acabaram perseguidas pela Inquisição, justamente porque suas experiências escapavam ao controle da Igreja. Exemplo disso pode ser dado por Arcângela Henriques, que esteve à frente de um recolhimento de mulheres na Serra da Estrela, em Portugal, e foi penitenciada pelo Santo Ofício.

O modelo de vivência espiritual ascético místico encontrou seu suporte no ideal que conferia à experiência mística com Deus um papel primordial

Ilustração de Gustave Doré. A perseguição aos alumbrados, a vigilância sobre místicos, beatas, visionárias, a censura sobre os livros, fizeram parte dos séculos XVI, XVII e meados do XVIII


Santo Antonio Abade, pelo pintor Francisco de Zurbarán, em óleo sobre tela. Os séculos XVI e XVII foram pródigos na produção de santos dentro da Península Ibérica


UNIÃO MÍSTICA E REPROVAÇÃO DA IGREJA

O modelo de vivência espiritual de teor ascético- místico encontrou seu suporte na circulação de um ideário religioso, que conferia à experiência intimista com Deus um papel primordial. A multiplicação de textos religiosos em defesa da oração mental na Península Ibérica daria uma grande contribuição a esse movimento, sensibilizando um vasto segmento do mundo dos leigos, ao lado de religiosos, para os caminhos da contemplação. Apesar do controle inquisitorial à veiculação dessa literatura, certo é que, no decorrer do século XVII, essas obras conheceram várias edições . Tratados sobre as formas de oração e os diversos graus para se chegar à via unitiva compunham uma literatura que, de maneiras diferenciadas, atraía inúmeros interessados na elevação da alma. Francisco de Osuna, Bernardino de Laredo, Luís de Granada, Diego de Estella, Juan de Los Angeles, Teresa d`Ávila, João da Cruz e Luis de Leon, são exemplos de um movimento maior.

O envolvimento e a atração exercida pela via mística podem ser constatados também pelos inúmeros processos movidos pela Inquisição contra aqueles que procuraram experimentar uma via de comunicação com Deus. A Igreja reagia contra os riscos de heterodoxia. A perseguição aos alumbrados, a vigilância atenta sobre os místicos, beatas milagreiras e visionárias, a censura sobre os livros, tudo isso fez parte dos séculos XVI e XVII, arrastando- se até meados do século XVIII. A fermentação desse ideário iria atrair várias pessoas para uma experiência religiosa de mortificações, seduzidos com a possibilidade de se chegar à via unitiva. Em Lisboa, famoso foi o grupo que se reunia na casa de Sousa Tavares — orientado por Frei Francisco de Porciúncula, que ensinava a oração do recolhimeno, elaborada por Francisco de Osuna. Provavelmente terão existido outros grupos.

DESERTO, A MORADA DO DIVINO
A atração pela vida eremítica compunha este quadro. Alguns centros religiosos constituíram importância capital no imaginário ibérico, no início da Idade Moderna. Muitos eremitérios, chamados de desertos, tornaram-se uma referência em função dos rigores ascéticos praticados e símbolos de uma vida de santidade. Comumente situavam-se em lugares afastados e de difícil acesso e, por isso mesmo, esses centros eremíticos adquiriam fama, tornando-se quase que míticos no imaginário da época. Dentre estes centros, em Portugal, os franciscanos capuchinhos da Serra da Arrábida, constituíram uma grande referência e ajudaram a fomentar a idealização como lugar sagrado, na segunda metade do século XVI e XVII . Segundo as descrições dos cronistas, os religiosos andavam descalços com um hábito grosseiro; as celas eram mínimas sem nenhum ornato, vivendo com o mínimo e dormindo sobre uma cortiça. A Serra contava com várias cavernas ou grutas naturais onde vários frades optavam por viver, longe do modesto convento onde residia a comunidade. Esse é o caso de Frei Agostinho da Cruz, que viveu isolado por 14 anos. Esses religiosos projetariam para a comunidade uma imagem de santidade que acabaria por sensibilizar segmentos da sociedade lusitana.


Por Diego Rodriguez de Silva Velázquez (1599- 1660), Santo Antonio Abade e São Paulo, O Eremita, pintura a óleo em tela, feita entre1635 e 1638, encontra-se no Museu do Prado, em Madri, Espanha

Em uma obra clássica na historiografia religiosa portuguesa, Silva Dias destacou a influência capucha, na segunda metade do século XVI, não só sobre as massas populares, sempre sensíveis às expressões sinceras de penitência e da humildade, mas a própria classe dirigente, por meio das casas de Bragança e de Aveiro . A Serra da Arrábida adquiria destaque na espiritualidade portuguesa, como se pode depreender de diversas fontes literárias: Frei Agostinho da Cruz, no século XVII, deixaria, pela sua poesia, o registro do significado da subida na montanha e vivência na Serra .

Outro centro eremítico em Portugal que ganharia fama e tornou-se tema de vários poemas foi o Convento de Santa Cruz do Bussaco , erigido na primeira metade do século XVII. O rigor ali praticado pelos religiosos projetaria uma imagem de santidade daqueles que por ali passavam.

Na Espanha, os franciscanos observantes desde o século XV já contavam com os seus eremitérios. As práticas de espiritualidade desenvolvidas ultrapassariam os muros dos conventos, influenciando inúmeros leigos. Famosos foram os locais de retiro de Salceda, Pastrana , Guadalajara, Escalona, Alcalá, Ocaña e Cifuentes, vistos como centros de santidade. Possivelmente, foram a partir deles que se difundiram algumas doutrinas que seriam apropriadas por leigos e outros religiosos, acusados de allumbrados ou recolhidos. Abertos aos interessados, religiosas e seculares, mulheres e homens, nesses primeiros centros surgiriam visionários, beatas milagreiras, profetas etc. Se nem todos os grupos foram ali formados, sabe-se contudo da influência exercida pela literatura franciscana sobre os espirituais. Frei Francisco de Osuna (ainda que escrevesse orientando que os leigos deviam ficar fora dessas práticas) foi acusado de allumbrado. A sua oração de recolhimento influenciaria muitos religiosos e leigos do século XVI.

Foi pelos escritos de São Jerônimo que Paulo tornou-se conhecido por enfrentar o deserto

A divulgação dos escritos dos Padres do deserto tiveram no século XVI um papel que não se pode negligenciar. São Jerônimo teria uma grande presença no início da Idade Moderna, não só na literatura, mas também nas representações iconográficas, o que demonstra a força do ideal eremítico nesse período. Ao louvar a vida eremítica e os rigores ascéticos dos anacoretas do deserto, São Jerônimo tornou-se um modelo virtuoso a ser representado. O tema de São Jerônimo enfrentando as dificuldades do deserto foi um dos prediletos dos artistas do período barroco, dos quais são exemplos, dentre outros, Ribera e Zurbaran. Outro eremita do deserto iria fornecer o modelo da vida no ermo: São Paulo. Foi pelos escritos de São Jerônimo que Paulo tornou-se conhecido por enfrentar as dificuldades do deserto. Por isso, também ganhou várias representações pictóricas. Fundamental nos séculos XVI e XVII para a circulação do ideal eremítico foi a obra de Jacopo de Varazze, Legenda áurea, livro hagiográfico em que as aventuras dos anacoretas atraíam um público sedento em conhecer a vida dos santos . As edições do Flos sanctorum na Península Ibérica, adaptadas segundo as exigências da época de revisar os escritos da vida de santos, desempenharam um papel como obra de referência entre diversos religiosos.

OS MODELOS BÍBLICOS DE COMPORTAMENTO


Alguns personagens bíblicos compunham o modelo eremítico do início da Idade Moderna. Do Antigo Testamento seriam amplamente retratados Moisés e Elias. Moisés, o primeiro a se retirar ao deserto, é apresentado nos escritos como aquele que abandonou a corte faraônica e enfrentou as dificuldades do ermo, por 40 anos, onde recebera a missão de conduzir os israelistas até a terra prometida. Já o profeta Elias, cansado de perseguições, fugiu para o deserto e, sem forças, pediu a morte ao Senhor (Reis 1, 19, 4), ao que este lhe responde por intermédio de um anjo, provendo-o de alimentos e permitindo-lhe peregrinar por 40 dias e 40 noites, até a montanha de Deus, o Horeb.

Não foram apenas os modelos masculinos que preencheram o imaginário coletivo. Algumas personagens do Novo Testamento foram apresentadas como símbolo anacorético, de afastamento do mundo: Maria Madalena e Maria Egipcíaca foram amplamente representadas no períoco, não só nas composições pictóricas e escultóricas, mas também como temas de sermões. crença na política controlada pelo povo entrou em crise e, em muitas cidades, deu lugar a governos autoritários.

Nossa Senhora do Monte Carmelo, de Pietro Novelli (1603-1647), em óleo sobre tela datada de 1641, está no Museu Diocesano, em Camerino, Itália

O lugar idealizado do espaço eremítico, para muitos artistas, e símbolo recorrente do anacoretismo, no plano pictural, era a gruta. São várias as representações dos eremitas no interior da gruta nas obras de vários artistas, de Velásquez, Ribera... A caveira é elemento recorrente nos quadros, assinalando a vanidade da vida e o triunfo da morte sobre todos os prazeres terrenos. No deserto, o anacoreta enfrenta uma série de adversidades, seu corpo é submetido a todo tipo de provação. O penitente é confrontado com o demônio e vence-o ao superar todas as tentações, humilhando o seu corpo, punindo sua carne.

Esses modelos constituíram exemplos de virtude e ideais a serem imitados. Teresa de Ávila, na segunda metade do século XVI, na Espanha, daria voz a um imaginário coletivo. “Recordemo-nos de nossos santos Padres do passado, os eremitas, cuja vida pretendemos imitar: que terão eles enfrentado de dores, e a sós, bem como de frio, fome, sol e calor, sem ter a quem se queixar senão a Deus?”

FENÔMENO ANTIGO MAS DURADOURO
O franciscano, contemporâneo de Santa Teresa, Frei Pedro de Alcântara, encarnaria, para a santa de Castela, o modelo de santidade. Ela não se continha em tecer exclamações, exaltando sua admiração por suas rigorosas penitências: “Além disso, garantiramme que ele portou durante 20 anos um cilício de folhas de lata”. O caráter nostálgico impregnava suas palavras ao lembrar às monjas a grandeza dos santos Padres, e é dessa matriz ideológica que se pode entender a multiplicação dos desertos na Península Ibérica. Em função da admiração da criadora dos Carmelitas Descalços pelo modelo eremítico, multiplicaram-se os vários eremitérios dessa ordem religiosa. As províncias espanholas contaram com vários desertos dos carmelitas descalços : o de Bolarque, fundado em 1592; em 1593, em Andaluzia, seria criado o das Neves; em Castela, a Velha, o de Batuecas, no ano de 1599; e o de Cardon, na Catalunha, em 1606. Os eremitérios estendiam-se para além das fronteiras na Nova Espanha (México), erigiria o do Montes de Santa Fé, também em 1606. A província de Genova criaria o deserto de Varale, em 1618, e a Polônia, a de Sae, em 1620.

São Hugo de Grenoble no Refeitório dos Cartusianos, obra feita entre 1630 e 1635, está atualmente no Museu Provincial de Bellas Artes, em Sevilla

Ocupando um lugar de destaque na espiritualidade monástica, os desertos corresponderiam a uma expressão da fé evangélica e espiritual. Os monges do Ocidente, principalmente aqueles ligados às experiências místicas, sentiram-se fascinados pelo ideal de santidade, representados pelo deserto. No início da história do monaquismo, os ascetas do Egito consideravam que somente o deserto permitia a solidão total que levaria à perfeição . Enquanto lócus sagrado, exerceria nos religiosos uma grande atração para as práticas que levassem ao ideal de perfeição.

Os monges do ocidente sentiram-se fascinados pelo ideal de santidade, representado pelo deserto

Esses ideais eclodiram em diversos momentos da história religiosa cristã. Eles ressurgiram com força em momentos de crise ou quando alguns valores religiosos encontravam-se ameaçados. O movimento de renovação eremítica no século XI, por exemplo, manifestava quando irrompia uma crise na cristandade. Nesse momento, surgia o deserto dos Alpes, dos Chartreuse . Fundada por São Bruno, a Ordem dos Cartuxos, nascida em fins do século XI, caracterizava-se pelo rigor de suas penitências e pelo desejo de afastamento da sociedade . A vida eremítica ali, no entanto, conciliava- se com algumas regras do cenobitismo, herdeira do monaquismo beneditino. Mas o elemento essencial registrado nos Costumes, elaborados por Guigues, quinto primor da Grande, era a solidão. A Ordem dos Cartuxos iria ter uma importância fundamental na espiritualidade Ocidental.

A procura pela vida solitária, de penitências e mortificações, longe das cidades, não era prerrogativa só de religiosos . Desde a Idade Média vários leigos se aventuraram pelos ermos ou se dedicavam a cuidar de um santo em uma ermida, abrançando a vida solitária . O fenômeno chegava à Idade Moderna e talvez mesmo se acentuasse à época da Contra-Reforma . Na época da criação dos primeiros centros de ascese carmelitas, um grupo de ermitães leigos, por exemplo, que vivia em Peñuela, na Sierra Morena, requereu aos descalços carmelitas a integração à nova ordem . Vivendo com o trabalho de suas mãos, do cultivo de hortaliças e frutas e ervas silvestres, aplicavam- se em rigorosas penitências. Ao tomarem conhecimento que em Pastrana havia um centro eremítico e, receosos das restrições impostas aos leigos de se tornarem eremitas, quiseram aderir aos Carmelitas Descalços.

Litografia de 1903 mostra São Serafim (1759 -1833) dando comida a um urso. Ele foi um dos monges mais importantes da Rússia e praticou a auto-negação a fim de adquirir o Espírito Santo

Os cronistas dos Carmelitas Descalços, pelas descrições da vida destes eremitérios, procuravam sempre evidenciar o rigor e a austeridade da vida desses monges e a adoção do modelo dos primeiros eremitas do deserto. Fazendo eco da literatura de cunho hagiográfico que propagava pela província, enfatizavam a imagem de santidade que integrava o imaginário da época. Outros tantos registros iriam evidenciar as crenças coletivas e o modelo de santidade naqueles séculos. No século XVII, Jorge Cardoso redigiria uma obra, procurando inventariar todos os santos e santas, não só os canonizados e beatificados, mas muitos dos desconhecidos, que os decretos pontifícios não autorizavam o reconhecimento de sua santidade. O empreendimento do autor registraria, assim, um ideal coletivo que estava presente naquela sociedade e que compunha o conjunto dos valores no contexto da sociedade da Península Ibérica barroca. Beatas e eremitas foram protagonistas desse imaginário, que, de formas diferenciadas, acreditaram na conquista espiritual, na busca do maravilhoso, na superação dos limites do corpo e no encontro com o divino.

CÉLIA MAIA BORGES é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Departamento de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. É autora, dentre outros trabalhos, do livro Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário. Ed. da UFJF, 1995.

Revista Leituras da Historia

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