sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O Massacre de My Lai

Durante a guerra do Vietnã, o ataque norte-americano contra a vila vietnamita deixou centenas de civis mortos e chamou a atenção da opinião pública mundial para as atrocidades que estavam sendo cometidas nesse conflito

Por Orivaldo Leme Biagi

Foto de Ronald L. Haeberle registra mulheres e crianças em My Lai, no Vietnã, pouco antes de soldados americanos atirarem e os matarem

As recentes denúncias de desrespeito aos direitos humanos feitas por prisioneiros iraquianos ou suspeitos de terrorismo, capturados pelos norte americanos durante as guerras do Afeganistão, do Iraque, além da "caçada" a Osama Bin Laden e seus seguidores, não é novidade. Durante a participação efetiva dos Estados Unidos na guerra do Vietnã (19591975), muitos vietnamitas foram agredidos covardemente - e o massacre de My Lai é o episódio mais significativo desses ataques.

Soldado americano em vilarejo vietnamita durante a guerra. Cerca de 60 mil soldados americanos morreram no Vietnã e mais de 300 mil ficaram feridos


A destruição da vila

Massacres eram constantes no Vietnã, tanto por parte das forças militares dos Estados Unidos e seus aliados sulvietnamitas quanto pelos guerrilheiros do Vietcongue e tropas do Vietnã do Norte - a guerra do Vietnã foi violentíssima em todos os sentidos. Como as forças de resistência aos Estados Unidos estavam intimamente ligadas à população sulvietnamita, em particular nas inúmeras aldeias do país, era difícil de separar esta população do guerrilheiro - e, na dúvida, muitas vezes aldeias inteiras eram bombardeadas com napalm e seus habitantes hostilizados. My Lai foi o mais contundente desses casos.

A Companhia C, Primeiro Batalhão, Vigési ma Infantaria, DécimaPrimeira Brigada, Divisão Americanal, entrou na vila de My Lai em 16 de março de 1968 e matou aproximadamente cen tenas de aldeões (347, segundo estimativas nor teamericanas, ou 504, de acordo com os dados vietnamitas), inclusive mulheres e crianças, sob o comando do tenente William L. Calley (1943). De acordo com os soldados que estavam em My Lai, moradores da vila foram reunidos em grupos e abatidos com fogos de armas automáticas, sendo que qualquer sobrevivente era, depois, alvejado.

Pouco mais de um ano depois do massacre, o exatirador de helicóptero Ronald Ridenhour (1946 1998), que foi informado do ataque por meio de testemunhos de vários soldados da Companhia C, enviou 30 cartas de sua casa, no Arizona, relatan do o que tinham exposto a ele - cartas enviadas para o presidente Richard Nixon (19131994), autorida des militares, senadores e congressistas. A maioria jamais respondeu suas cartas, com exceção do con gressista Morris Udall (19221988), que telefonou a Ridenhour prometendo fazer tudo a seu alcance para o esclarecimento do massacre. O exército iniciou as investigações em 23 de abril de 1969 e, em setembro, poucos dias antes de seu desligamento do exérci to, acusou o tenente Calley pelo assassinato de 109 "seres humanos orientais", número reduzido depois para 102. Esse fato foi pouco divulgado pela impren sa (o New York Times, em 8 de setembro, destacouo apenas no final da página 38) e o assunto parecia encerrado, até o repórter free lance Seymour Hersh (1937) retomar a questão.

Em 22 de outubro de 1969, um conhecido de Hersh, o advogado Geoff Cowan, informou que o exército procurava submeter um sujeito à corte mar cial, em segredo, pela morte de aproximadamente 75 civis sulvietnamitas. Dois dias e 25 telefonemas depois, Hersh descobriu que o número de civis era 109. Conseguiu cerca de US$ 1 mil do Fundo de Jornalismo de Investigação, voou para Fort Benning e, em 11 de novembro, entrevistou o tenente Calley.

Nixon, em sua campanha para presidência dos EUA, afirmava que iria promover a paz no Vietnã, mesmo que, para isso, tivesse de aumentar a dimensão da guerra. Ele pretendia apoiar os sulvietmanitas a defender seu território e a negociar com os nortistas
As imagens que chocaram o mundo

Com a matéria pronta, Hersh teve dificuldades de publicála - as revistas Life e Look a rejeitaram. As sim, ele voltouse a uma agência fundada por David Obst poucos meses antes em Washington e ainda pouco conhecida, a Dispach News Service. Obst telefo nou para cerca de 50 jornais oferecendo a matéria por US$ 100, e 36 jornais a publicaram - a primeira pu blicação aconteceu no dia 13 de novembro.

No mesmo dia, o New York Times, que começara a trabalhar na matéria seis dias antes, divulgou sua versão dos fatos. Mesmo assim, o assunto parecia que não ia estourar na mídia. Então apareceram as fotos do massacre, tiradas pelo fotógrafo do exército Ro nald L. Haeberle, que estivera em My Lai com Calley. As imagens foram decisivas na matéria, e My Lai transformouse em um trauma para o exército dos Estados Unidos e para todo o país, que tanto justificara suas ações no Sudeste Asiáti co para salvar aquele povo, e não para destruílo.

A matéria chocou a opinião pública mundial. O massacre de My Lai foi levantado por Hersh, um jornalista dentro dos Estados Unidos, que pôde assim ter uma distância suficiente para se impres sionar com os fatos, ao contrário dos seus colegas correspondentes na região, que viam massacres constantemente, sem mais se impressionar com eles, pelo menos a ponto de relatálos.

Uma das consequências do episódio de My Lai foi que a imprensa norteamericana considerou a guerra do Vietnã praticamente acabada, pois nada mais poderia justificála e, contandose que os soldados norteamericanos estavam sendo retirados no processo de "vietnamização" (substituição das forças norteamericanas pelo treinamento e armamento das tropas sulvietnamitas), o conflito estaria logo encerrado e as preocupa ções deveriam ser desviadas para as conversa ções de Paris, onde o destino da guerra estava sendo decidido diplomaticamente. A quantidade de tempo e espaço dedicado a ela começou a declinar. Mas a guerra não diminuíra.


Soldado queimando cabanas no Vietnã. Estimase que, durante o massacre, mais de 500 mil vítimas vietnamitas tenham morrido e milhões ficaram feridas


O impacto de My Lai no Brasil

A cobertura da guerra pela imprensa brasileira foi influenciada pelas condições políticas de caráter excepcional que o País atravessava. Dominando a produção de imagens e palavras (quer pela censura ou por órgãos próprios de criação de propagandas), passando a sua visão dos acontecimentos e utilizan do todos os meios de violência possíveis, inclusive a prisão sem justificativas e a tortura, o regime militar (19641985) controlava a situação no País, impedin do qualquer possibilidade de os grupos guerrilheiros aumentarem o seu quadro ou conseguirem maiores propagandas.

Apenas os sequestros de embaixadores deram alguma notoriedade a esses movimentos, mas eram mais atos de desespero para salvar seus colegas da prisão (e da tortura) do que atos de iniciativa es tratégica. Para os grupos de esquerda, o definitivo estabelecimento do aparato repressivo foi outro fator decisivo para a sua derrota. Neste aspecto, os órgãos de repressão foram organizados para dar maior pra ticidade às operações antiguerrilha.

A revista Veja destacou muito a guerra do Vietnã nesses anos, pois era um dos poucos assuntos com os quais a censura exercia uma pressão menor. Cuba e China eram (praticamente) assuntos proibidos e não sobravam muitos espaços - o Vietnã foi uma opção que jornais e revistas aproveitaram. Mas foi a imprensa alternativa que mais utilizou esse recurso - ou em termos concretos, O Pasquim, pois nesse momento era o único veículo de comunicação relevante desse estilo.

Foi o jornalista Paulo Francis quem dedicou os maiores espaços para o tema do Vietnã. Um dos mais importantes artigos de Paulo Francis foi justamente sobre o massacre de My Lai. O texto, simplesmente com o título de "My Lai", mostrou que apesar desse genocídio específico ter sido colocado como um fato isolado e excepcional, os massacres na região eram rotineiros.

A presença norte-americana no Vietnã era, por si só, um massacre, argumentou Paulo Francis: várias regiões do Vietnã do Sul não poderiam ser cultivadas nos próximos 50 anos por causa da quantidade de herbicidas despejadas ali; Sai gon não passava de um bordel; 30% das forças norteamericanas funcionavam sob efeito de drogas.

O autor completa que o "genocídio é indiscutível", e que My Lai é o "dia a dia" no Vietnã. Não que os comunistas fossem menos violentos, mas lutavam pela liberdade de seu país. Paulo Francis não se posicionou como pacifista, mas reconheceu que Hanói e o Vietnã do Norte tinham popularidade, e que só com o apoio da população, principalmente dos camponeses, a guerrilha poderia ter chegado onde chegou.


Imagem registrada pelo fotógrafo do exército americano Ronald L. Haeberle, em 16 de março de 1968, após um embate em My Lai, mostra uma criança e uma mulher mortas na estrada
A liberdade nos Estados Unidos foi valorizada pelo articulista, pois os grupos pacifistas podiam exercer pressão para as investigações sobre o massacre. Naturalmente, o Pentágono ou a Casa Branca não aceitavam tal liberdade tranquilamente - o primeiro omitiu até quando pôde o massacre, e o segundo agiu sob pressões para que não ocorressem modificações nas perspectivas oficiais.

Outro fator considerado por Paulo Francis para a ocorrência do ataque em My Lai foi a própria tática de guerra aplicada pelos Estados Unidos, ou seja, a tática de "search and destroy", ("busca e destruição", em português) que consistia em atirar em qualquer um em área suspeita de presença do Vietcongue - e My Lai foi uma das vítimas inocentes dessa tática.

A deturpação dos fatos pela imprensa norte-americana

Enfim, o massacre de My Lai pode não ter tido uma grande repercussão nos resultados da guerra, pois a "maioria silenciosa" ignorou tais fatos e a minoria que contestava a guerra era detestada por essa maioria. Os mass media (grandes veículos de comunicação) não entravam no assunto da guerra baseados em especialistas, mas em jornalistas engajados com o executivo, sendo que qualquer coisa antes de My Lai era apresentada como mera excepcionalidade.


William Calley, tenente do Exército dos Estados Unidos, foi indiciado pelo assassinato de civis vietnamitas e estupro de dezenas de mulheres. A pedido do presidente Nixon, foi solto e, com diversos habeascorpus, acabou cumprindo três anos e meio de prisão na base de Fort Benning, Georgia
No artigo de Paulo Francis, a guerra do Vietnã quase foi completamente esmiuçada. Os pontos que marcaram a guerra foram discutidos em profundidade, apresentando uma visão difícil de ser exposta em 1969, pois a grande imprensa brasileira f F otogrRafFia ofFicial da casa brRanca CIciÊNCIAncia Ee VIDAvida estava sofrendo pressões da censura. Muitas das ideias contidas no texto de Francis já estavam sendo discutidas em outros meios e em outros países, não sendo sua temática, portanto, inédita. O artigo atualizou esses debates como nenhum outro meio o fez no Brasil. E o próprio jornal iria denunciar a omissão dos outros meios de comunicação.

O "repórter fantasma" Pedro Ferreti (que não existia, sendo um nome fictício que poderia ser utilizado por qualquer membro do O Pasquim, tanto para fugir da censura quanto de eventuais prisões mandadas pelos militares), na edição 25 do jornal, também criticou o massacre de My Lai, afirmando que a imprensa norteamericana tratava o caso de forma a colocálo como um ponto a favor da democracia dos Estados Unidos.

Outra denúncia importante de Pedro Ferreti foi quanto à chacina cometida por Charles Manson (1934) e sua "família" (uma comunidade no estilo hippie, liderada por Manson) contra o casal La Bianca e da atriz Sharon Tate, esposa do diretor de cinema polonês Roman Polanski (1933). A imprensa norte-americana aproveitou-se desse crime, denunciando as práticas de grupos de jovens, que tanto criticavam a sociedade norte-americana. Charles Manson e seus adeptos cometeram tal chacina baseandose nas leituras de Manson da Bíblia com a música do Álbum Branco dos Beatles, grupo de rock inglês mais adorado pela juventude daquela época, o que demonstrava o perigo das contestações comandadas por jovens, de acordo com a grande imprensa norteamericana.


Os crimes cometidos por Charles Manson foram usados pela imprensa norteamericana para desviar a atenção das atrocidades que eram cometidas no Vietnã
Pedro Ferreti não enxergava as coisas nesse sentido, denunciando que a chacina feita pela comunidade de Manson estava sendo usada para que a sociedade norteamericana esquecesse o massacre de My Lai, que, de uma maneira ou de outra, foi feito pelo "sistema". Charles Manson, ou a cultura "antissistema" que o produziu, estaria sendo valorizado demais, não pelo que fez, mas para culpar a rebeldia da juventude.

O massacre cometido pela "família" Manson, assim como o trágico Festival de Altamont (que aconteceu em 6 de dezembro de 1969 e resultou em violência e quatro mortes), foram golpes consideráveis para quem confiava na juventude norteamericana e no Rock'n'Roll como elementos de mudança social. A grande imprensa norteamericana utilizouse muito bem desses fatos: a opinião pública dos Estados Unidos condenou o comportamento de Manson e os incidentes de Altamont (e, consequentemente, da juventude rebelde), enquanto transformou o tenente Calley em herói, assunto que o próprio O Pasquim tratou muitas vezes.

Orivaldo Leme Biagi é doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da FAAT (Faculdades Atibaia).

Revista Leituras da Historia

2 comentários:

Em@ disse...

Interessante, completo qb e oportuno.

:)

Editor disse...

Estava fazendo pesquisa sobre o massacre de My Lai na internet e tive a grata surpresa de encontrar esse espaço e de um morador de ?Atibaia ainda por cima, parabens pelo texto, gostaria de saber se existe literatura no Brasil sobre essa tragédia, o documentario four hours in my lai é surpreendente recomendo a todos, está postado no youtube em 7 capítulos.