A corrente da moeda
Desde o tempo do escambo, a sociedade constrói uma relação próxima com a forma monetária de consumir mercadorias. O dinheiro já foi pluma, prego e vaca, criou impérios e destruiu nações
por Rafael Tonon
Para cultuar suas divindades, os astecas costumavam realizar uma série de oferendas que envolviam sacrifícios de animais e seres humanos. Na capital do império, a cidade de Tenochtitlán, os ritos mortais eram comuns. Durante as cerimônias, os sacerdotes abriam o peito da vítima e arrancavam-lhe o coração, que era ofertado a Huitzilopochtli, deus do sol e da guerra. O ritual macabro não custava apenas vidas, mas uma boa quantidade de tecidos. É isso mesmo: o fiel que quisesse ter sua própria vítima para ofertar aos deuses precisava desembolsar cerca de 40 mantos. O tecido era a moeda mais valiosa da época. Mas poucos eram os que dispunham dos pedaços de pano: estes já eram um privilégio dos ricos. Para os menos favorecidos, a moeda se resumia a grãos de cacau. As sementes serviam como dinheiro para as transações comerciais daquele povo. Nos mercados, eram aceitas como pagamento para tudo que estivesse à venda: frutas, legumes, sandálias, joias etc. O manto (cada um equivalia a 300 grãos de cacau) só era utilizado na compra de mercadorias nobres. A semente foi eleita como a melhor forma de dinheiro pelos ameríndios porque, além de abundante, era de fácil manipulação, tinha boa durabilidade e um valor intrínseco. Moída, virava chocolate, produto querido aos astecas. O cacau permaneceu moeda corrente durante pelo menos quatro séculos, até a chegada dos espanhóis. E representou um dos mais sofisticados sistemas monetários da História.
"Em épocas e sociedades distintas, o dinheiro se metamorfoseou em diversas mercadorias para atender as necessidades comerciais das pessoas no decorrer da história da humanidade", diz Mathieu Deflem, da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, que estuda a relações entre sociedade e dinheiro.
Renas, pregos e plumas
Na Grécia antiga, por muito tempo, bois eram usados como moeda. Os nativos da Índia usavam amêndoas. Os guatemaltecos da América pré-colombiana preferiam o milho. Os antigos babilônicos, a cevada. E o dinheiro foi ganhando novas faces em diferentes países ou regiões: arroz no Japão, renas na Sibéria, manteiga na Noruega, búfalos em Bornéu, pregos na Escócia, além de conchas, pedras, plumas, dentes de baleia e muitas outras excêntricas mercadorias.
Antes de surgirem essas moedas-mercadorias, porém, o escambo era o jeito de trocar produtos: alguém que tivesse mais peixe do que o necessário permutava o excesso pelo milho que outra pessoa tinha plantado e colhido. Assim, tudo era trocado, sem levar em conta a equivalência de valor. Mas essa forma primitiva de relação comercial começou a se mostrar inviável. Era necessário que o produtor de milho quisesse o peixe do pescador. Ou não poderiam fazer negócio e o pescador passaria sem os grãos.
Foi aí que surgiu a necessidade de adotar mercadorias que, por sua utilidade ou abrangência, seriam amplamente aceitas e assumiriam a função de moeda, circulando como principal elemento para as relações comerciais.
Os primórdios do dinheiro datam do fim do terceiro milênio antes de Cristo. Habitantes da Mesopotâmia passaram a usar lingotes de metais preciosos em troca de produtos. Escritas cuneiformes mencionam o uso de prata por esse povo desde 2500 a.C. O metal foi o objeto que melhor traduziu as necessidades de troca e, por isso, foi adotado em larga escala por diversas culturas através dos anos. "O metal vingou por ter todas as características exigidas de uma moeda: é maleável, é resistente, não é nem abundante nem raro, é considerado bonito e, portanto, desejável. E ele permite a padronização, o que é fundamental", afirma Oscar Pilagallo, jornalista e autor do livro A Aventura do Dinheiro - Uma Crônica sobre a História Milenar da Moeda.
A prata, em maior representatividade, e o ouro e o cobre eram bastante usados no comércio. Mas, para desempenhar suas funções como dinheiro, os metais precisavam ser pesados a cada transação, tanto pelo comprador quanto pelo vendedor, para que sua importância fosse certificada. Desse ato minucioso deriva, por exemplo, a libra esterlina, moeda atual da Grã-Bretanha, que leva esse nome por representar uma medida de peso, a libra (cerca de 450 gramas).
Somente milênios depois, no século 7 a.C., o metal se tornou, enfim, uma unidade padrão. O reino da Lídia (atual Turquia) cunhou a primeira moeda, muito similar às de hoje: prática, de fácil manuseio e amplamente aceita nos arredores. Era a primeira grande revolução monetária da história. Estimulou o comércio e a especialização do trabalho e tornou os lídios um dos povos mais ricos da Antiguidade. O modelo do stater, a moeda lídia feita de eletro (liga de ouro e prata), foi copiado pelo mundo todo para configurar o primeiro sistema monetário global.
Denário, o antepassado Em Atenas, os trabalhadores recebiam um dracma pelo dia de labuta. Essa unidade era a base do sistema monetário helenístico, cujas moedas estampavam a efígie de uma coruja, símbolo de Atena, deusa protetora da cidade. Mas foram os romanos que melhor incorporaram o novo dinheiro. A primeira cunhagem de que se tem notícia em Roma - ainda na República - foi em 268 a.C. A moeda, chamada denário, foi tão representativa que o termo foi aproveitado para designar diversas moedas nacionais, como o denier francês e o dinar, de vários países árabes. A própria palavra dinheiro, em português (e dinero, em espanhol), vem do latim denarius. Mas esse dinheiro também trouxe problemas para a sociedade romana. Nas Guerras Púnicas contra a república de Cartago, o financiamento das ações militares desestabilizou primeiro o sistema monetário, levando Roma a uma inflação - não havia moeda suficiente para as despesas -, e, depois, o sistema político e econômico. A economia se enfraqueceu após a guerra e passo u a ser baseada em sistemas feudais que, por sua vez, eram autossustentáveis. A cunhagem de moedas foi então suspensa em todo o Império Romano.
Já no Oriente, o Império Bizantino deixou sua moeda como legado. O besante era todo feito de ouro e, cunhado a partir do século 4 na antiga Constantinopla, predominou por mais de um milênio. Foi o dólar da Idade Média. Enquanto o império esteve de pé, até 1493, com a queda de Constantinopla pela conquista do Império Otomano, a moeda bizantina preservou o seu valor. Foi um dos casos mais bem-sucedidos de sistema monetário da história. Foi no Oriente, também, que o dinheiro de papel deu seus primeiros sinais.
Para que o papel-moeda pudesse ser inventado, era necessário, claro, um papel resistente e durável. Portanto, não é de estranhar que as primeiras cédulas tenham demorado tanto para surgir: a tecnologia para fabricação das primeiras notas apareceu tarde e se difundiu lentamente. O uso do papel como moeda teve seu registro na dinastia T’ang, na China, que durou entre os anos de 618 e 907. Mesmo não tendo sobrado uma nota para contar história, algumas ilustrações do período indicam o uso das cédulas. "Os burocratas chineses faziam cédulas usando o papel fabricado da casca de amoreira. Uma vez estampado com o selo do imperador, essas notas levavam o valor total de ouro e prata", escreveu o antropólogo Jack Weatherford, autor do livro A História do Dinheiro.
Marco Polo, em suas viagens à Ásia, no século 12, ficou surpreso com a determinação com que o Estado obrigava as pessoas a usarem as cédulas nas relações comerciais. O resultado era que, de fato, elas circulavam na mão de todos. Na Europa, de onde vinha o viajante veneziano, as cédulas só ficaram conhecidas e populares depois de sua morte em 1324.
No início do século 17, na Holanda, a tulipa virou mania. Os bulbos da planta, altamente valorizados, eram vendidos de junho a outubro, época do plantio. Mas os produtores passaram a comercializá-los também no inverno, para serem entregues depois. Os compradores recebiam um papel, que valeria um bulbo na estação das flores. Mas os papéis começaram a ser usados como dinheiro, passados adiante e negociados a valores irreais. Foi o primeiro ataque especulativo da história e quase quebrou o país.
Mesmo assim, era o princípio do papel como moeda na Europa. A técnica foi aprimorada depois por um escocês que chegou a Paris, em 1716, disposto a fabricar dinheiro. John Law tinha consentimento do duque de Orléans para abrir um banco e emitir notas. A demanda pelas células foi tamanha que logo elas passaram a valer mais que o dinheiro de metal. Até que as pessoas não tinham mais o que fazer com tantas notas e exigiram seus metais de volta. Foi a falência do banco de Law. Em Londres, a Companhia Mares do Sul atravessou susto parecido. Parte da dívida pública da Inglaterra se transformou em ações da empresa. A procura pelos papéis superaqueceu o mercado de ações. Mas surgiu o Banco da Inglaterra para defender a moeda do país. Enquanto isso, na América do Norte, assistia-se à invenção da cédula de papel, a segunda grande revolução no sistema monetário. O grande nome por trás do papel-moeda, tal como o conhecemos, é Benjamin Franklin, que, além de herói da independência, era gráfico. Foi ele quem fabricou algumas das primeiras cédulas da América. Aos 23 anos, escreveu seus panfletos sobre o papel-moeda. Por essa dedicação ao dinheiro, mais idealista que ambiciosa, Franklin foi homenageado. É dele o rosto na nota de 100 dólares, a cédula de maior valor em circulação nos EUA.
Revista Aventuras na História