quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Tráfico de Escravos de Moçambique para as Ilhas do índico, 1720-1902


Horacio Gutiérrez
Universidade Estadual Paulista, Assis/SP

CAPELA, José & Eduardo MEDEIROS
O Tráfico de Escravos de Moçambique para as Ilhas do índico, 1720-1902. Maputo; Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1987. 128 n. (Coleção Moçambique e a sua história, 3).

Muito se fala cotidianamente das profundas raízes africanas da cultura brasileira. Com justa razão. Infelizmente este discurso ainda não penetrou nos currículos universitários de História. Raros são os especialistas em África e pouquíssimos aqueles que pesquisam história africana ou tem espaço para lecionar esta matéria no ensino superior. Assim, estudos que tratam do continente negro ou de seus vínculos com o Brasil são quase desconhecidos entre nós. O livro que comentamos é produto de um esforço editorial da Universidade Eduardo Mondlane de Maputo e se insere num programa que tenciona divulgar os trabalhos produzidos na linha do que vem sendo conhecido como nova historiografia moçambicana. A iniciativa está sendo coordenada por um grupo reduzido de jovens professores do Departamento de História. Já foram lançados dois volumes da obra coletiva História de Moçambique (que ao todo terá 4 tomos) e um estudo de Carlos Serra intitulado Como a penetração estrangeira transformou o modo de produção dos camponeses moçambicanos. Nesta trilha coloca-se também a revista do Departamento denominada Cadernos de História, com 6 números publicados.

O Tráfico de Escravos foi elaborado por dois conhecidos pesquisadores portugueses atualmente lecionando em Maputo. José Capela tinha anteriormente presenteado os especialistas com um denso trabalho sobre as classes escravistas moçambicanas que figura em seu livro As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura (Porto, 1979). Por outro lado, Eduardo Medeiros, antropólogo de formação, tem-se dedicado ao estudo pormenorizado dos sistemas de parentesco e organização política e econômica de várias sociedades locais, particularmente os macualómuè do norte do rio Zambeze. A escravidão fazia parte de diversas sociedades deste tipo e remonta a períodos muito antigos, mas o tráfico sistemático e com fins comerciais é de data posterior e pode inclusive fixar-se com certa precisão: a década de 1730. A incorporação tardia de Moçambique ao tráfico, em comparação com a África ocidental, explica-se não por escrúpulos de conciência, por ventura presentes, e sim por questões de rentabilidade. Durante o século XVII e bem avançado o XVIII, a maior lucratividade do comércio de marfim com a índia não estimulou o desenvolvimento do tráfico de escravos em grande escala, como ocorrerá na primeira metade do século XIX. Este mesmo fator fez com que historicamente o grosso do comércio negreiro da região se tenha efetuado com as ilhas do Índico e em menor proporção com o Brasil e o continente americano.

As ilhas do Índico incluíam principalmente plantações francesas. Destacam-se as Ilhas Mascarenhas (Maurício e Reunião) com papel importante na produção mundial de açúcar, mas também atuavam como entrepostos ou demandantes diretos de escravos Madagascar, o arquipélago das Comores e as ilhas Seychelles. O comércio com os franceses foi sempre ilegal, proibido pela coroa portuguesa desde 1711, porém contou com a conivência e a participação eficaz dos governadores lusos de Moçambique. A intenção dos autores no livro é estimar a magnitude do tráfico que, por ilegal, não conta com séries estatísticas confiáveis. As fontes utilizadas na reconstituição são sindicâncias, correspondência oficial, autos de visitas a navios estrangeiros e papéis diversos encontrados no Arquivo Histórico de Moçambique e Ultramarino de Lisboa. A natureza qualitativa das fontes primárias permitiu também conhecer um pouco o contexto e a estrutura do comércio negreiro, além de captar mudanças ocorridas ao longo do tempo, até fins do século XIX.

O resultado do esforço é modesto, mas definitivo até que fontes mais precisas sobre o tráfico sejam descobertas. A estimativa dos autores do total de escravos exportados por Moçambique para as ilhas do Índico durante os séculos XVIII e XIX chega a quase 500 mil pessoas. Entretanto, a intensidade, organização e impacto econômico e social deste comércio não é o mesmo no decorrer do período. Cresce gradativamente a partir da segunda década do século XVII até meados do XIX, quando encontra seu auge e também seu derradeiro declínio, por força das pressões inglesas. Por outro lado, há ao menos duas particularidades, que fazem da escravidão moçambicana um caso complexo de estudo. Primeiro, a presença de negreiros árabes em todo o litoral norte do país, com raízes no sultanato de Zanzibar (hoje integrado à Tanzânia), e que os portugueses nunca conseguiram expulsar ou neutralizar a contento. Estes comerciantes, aliados aos chefes macuas muçulmanos, majojos e ajauas, escravizaram e venderam contingentes significativos de populações, que iam buscar até o lago Niassa e com eles desciam ao litoral, na esteira das caravanas de marfim. Segundo, a existência na Zambêzia (zona central de Moçambique) de um tipo peculiar de organização social chamado de "prazos", que facilitou a sujeição de nativos quando os ajauas entraram na região, e ainda mais no início do século XIX, quando mercadores portugueses se assenhorearam dos "prazos".

Foi desta região que proveio o maior número de escravos moçambicanos, que aportaram no Brasil. Herbert Klein estima que entre 1825-30 foram vendidos no Rio de Janeiro mais de 15 mil cativos oriundos de Quelimane e 25 mil da Ilha de Moçambique (norte do país). O tráfico para as ilhas do Índico, calculam os autores, teria atingido na primeira metade do século XIX números da ordem de 255 mil escravos. Estes dados fornecem subsídios importantes ao estudioso da história brasileira. Mas há ainda outras informações altamente instigantes. Que aconteceu em Moçambique com a mão-de-obra depois do acuamento do tráfico? A transição para outras formas foi lenta e tortuosa e a exportação de braços para as plantações francesas continuou, embora com fachadas diferentes. Entre 1854 e 1902, aproximadamente, ocorre o tráfico de trabalhadores "livres" ("libres engagés") em condições não muito diferentes da dos escravos, senão iguais, ao menos até 1881, quando se passa a exigir a confecção de contratos, à semelhança do que fazia a Inglaterra nas colônias vizinhas. Esta migração de trabalhadores (entre forçada e voluntária) continua até hoje, mas o destino final atualmente é África do Sul. Muitas transformações nas relações de trabalho ocorreram na África oriental e austral na virada do século XIX, mas nem sempre, como também sucedeu no Brasil, elas marchariam na direção do trabalho livre e assalariado. Sobre este tema, o da transição do trabalho escravo para livre, ainda há muito que pesquisar e aprender.

Revista de História - USP

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