Iris Kantor
Pós-graduanda em História Social do Departamento de História/USP
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Negociação e Conflito de João José Reis e Eduardo Silva faz parte de uma longa lista de títulos publicados no "fluxo e defluxo" das comemorações do centenário da Abolição da escravatura no Brasil. O livro é uma contribuição às discussões sobre o tema da resistência escrava levantdas e exaustivamente exploradas pela produção acadêmica nos últimos anos. Formado por seis artigos curtos, a maior parte deles já publicada anteriormente em revistas especializadas, escritos em linguagem fluída três por Silva e três por Reis. Acompanha ainda, um interessante apêndice com três documentos de época.
Os autores apresentam uma proposta de "leitura" da resistência escrava que dá maior peso à história do cotidiano, uma ênfase à análise micro-histórica. Eduardo Silva é pesquisador da Casa Rui Barbosa, e atualmente doutorando do University College of London. Possui dois livros publicados - Barões e Escravidão: Três gerações de fazendeiros na crise da estrutura escravista, editado pela Nova Fronteira em 1984; As Queixas do Povo, pela Paz e Terra em 1988. João José Reis é o autor de uma série numerosa de artigos sobre a resistência escrava na Bahia, América e África. Reis é atualmente professor da Universidade Federal da Bahia, onde defendeu o vigoroso estudo sobre a rebelião Malê. A tese foi publicada em 1986 pela Editora Brasiliense com o nome: Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malés 1835.
Em Negociação e Conflito delinea-se certa ordem de tratamento das questões, indo de modo geral da análise factual à especulação conceituai. Os artigos iniciais criticam a mistificação em torno da atuação do escravo, nem só herói, e nem apenas vítima do sistema foi o escravo brasileiro. O grau de complexidade culmina com os artigos finais onde são discutidas as relações entre classe, etnia e religião.
Confirmando as tendências dominantes da historiografia contemporânea, os autores buscam um escravo que foi o sujeito de sua própria história. Escravos que desenvolveram uma particular sabedoria política e que conquistaram os seus espaços de autonomia na sociedade em que viveram. Enfatiza-se principalmente a persistência de uma tradição de rebeldia que se expressou de formas variadas e surpreendentes. Foram as fugas temporárias, as sabotagens, as revoltas, os quilombos, sintomas de uma resistência endêmica na sociedade escravista brasileira. "Tantas vezes considerados como simples feixes de músculos, os escravos falam freqüentemente, através deles. Suas atitudes de vida parecem indicar, em cada momento histórico, o que eles consideravam um direito, uma possibilidade ou uma exorbitância inaceitável" (Silva, pág. 15).
A conceituação da resistência escrava é matizada ao longo do texto, ora enfocando o discurso paternalista elaborado pela classe senhorial, ora resgatando a "voz" do cativo na soma dos seus atos. Uma problemática multifacetada que só pode ser compreendida a partir da trama tecida pelas relações sociais desenvolvidas na sociedade escravista do século dezenove. A resistência escrava incluiu desde a garantia dos padrões materiais de vida, até a defesa da vida espiritual e lúdica da população. Dimensões que não raro se encontravam articuladas no cotidiano da sociedade escravista. O africano no Brasil, corpo-território, deu a "volta ao mundo", reinventando aqui a sua forma de luta de classes. Traduzindo num jogo de destreza e malícia as contradições da realidade, uma verdadeira capoeiragem social.
A conjuntura baiana na primeira metade do século XIX é o cenário dos acontecimentos narrados no livro (com exceção do segundo). Momento de grande tensão insurrencional, tradicionalmente caracterizado pela historiografia como "ciclo de revoltas baianas" (1807-1835), cuja originalidade reside no fato da organização dos movimentos ter sido promovida em torno das filiações étnicas. Os autores destacam que somente a determinante étnica não é condição suficiente para explicar o caráter dessas rebeliões. A mesma origem étnica facilitava o contato e a vivência coletiva das tradições culturais dos locais de origem na África, mas por outro lado podia criar divergências dificultando a unidade e a mobilização das classes subalternas.
A rebeldia de maneira geral, coincidiu com as crises políticas das classes senhoriais baianas. Os novos ares soprados pelas revoluções liberais na Europa, a independência dos Estados Unidos, e a apavorante revolução no Haiti, levaram a elite colonial a internalizar rapidamente uma "nova consciência", que inverteu num passe de mágica os sinais da legitimação da escravidão. O que antes era aceito como legítimo e natural, passava a ser julgado moralmente. Rompia-se então o paradigma ideológico colonial.
No primeiro artigo do livro, "Entre Zumbi e Pai João, o escravo negocia", Eduardo Silva apresenta um rápido apanhado dos critérios de seleção das fontes documentais. O historiador procura na documentação os indícios que retratem a relação senhor/escravo como uma dinâmica de luta e uma permanente negociação dos conflitos. Escravos que recorriam às autoridades para garantir a autonomia, o direito ao pecúlio, ao plantio, à alforria, foram os personagens centrais da análise empreendida. Critica a historiografia que reproduz os mitos de Zumbi e de Pai João, o primeiro tomado como exemplo de heroísmo, e o segundo como sinônimo de conformismo e benevolência. Silva nos oferece ainda um breve levantamento da produção acadêmica mais recente sobre criminalidade escrava, a questão das alforrias e a condição do liberto, a vida cotidiana e comunitária.
O segundo artigo da coletânea intitula-se: "A função da brecha camponesa", nele Silva revê o problema da existência de uma margem de economia própria do escravo. O autor discute a efetividade da chamada "brecha camponesa", pois na sua perspectiva, ela era uma estratégia paternalista dos senhores que desta forma pretenderam criar uma virtual ilusão de propriedade gerando um sentimento de apêgo à terra. Em realidade o escravo jamais obteve o acesso direto ao mercado ou local onde ele pudesse negociar livremente o preço de seus produtos. Quando muito, era o senhor que comprava e estipulava o preço de venda das mercadorias. O artigo explora o livro escrito pelo Barão de Pati do Alferes, fazendeiro na antiga província do Rio de Janeiro, publicado pela primeira vez em 1846. Foi reeditado inúmeras vezes no decorrer do século XIX, fato significativo para os padrões editoriais da época. Trata-se de um manual agrícola, que explica como administrar uma fazenda de café. O Barão de Pati sugere a adoção de certas normas de organização, que teriam por finalidade a agilização do ritmo da produção agrícola, ao mesmo tempo que garantiam uma vigilância mais apurada sobre a escravaria. Do receituário indicado pelo Barão constam: a formação de pequenas turmas de trabalho, o oferecimento de gratificações, o dencanso nos feriados, a instrução religiosa e, curiosamente, um método de alinhamento para plantio de café. Não obstante este método causasse um aumento significativo da erosão do solo, facilitaria o controle e a disciplina do trabalho escravo.
"Nas malhas do poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú", terceiro artigo do livro, Reis reconstitui a partir de uma documentação precisa a luta pela preservação do espaço sagrado africano. Os dados levantados registraram a invasão do Camdomblé de Accú no mês de agosto do ano de 1829, em operação policial empreendida pelo Juiz de Paz de Brotas. A denúncia deste episódio partiu ao que parece dos próprios escravos, os quais se dirigiram em petição formal ao presidente da província onde relataram a profanação e a destruição dos objetos de culto ritual. Esse episódio indica um conhecimento do funcionamente da burocracia da época e, uma clareza da situação e possibilidades político-legais. Ao reconstruir os laços comunitários e as alianças políticas em Brotas o autor aprofunda a discussão sobre os modelos de paternalismo vigentes na Bahia. Enquanto os Estados Unidos incentivou-se a constituição de famílias e de alianças culturais, na Bahia, a elite senhorial estimulou as diferenças de origem, cor e condição social. Aos nascidos aqui, os crioulos, eram concedidos privilégios de ocupação e hierarquia social. Esta argumentação reforça a hipótese de uma "tradicional inimizade" entre crioulos e africanos. Alforria condicional e mestiçagem fizeram parte de uma estratégia anti-insurrecional. Foi neste contexto que a hiper-realista taxonomia racial da época inventou o "mulato". Não era sem razão que os senhores viam com péssimos olhos a mistura de pessoas de cor e condição social diferente.
Para os mais intolerantes as festas davam lugar a subversão e a desordem social. Contudo, foi através da religião, que crioulos e africanos romperam o isolamento, dando lugar à formação de uma cultura afro-baiana. A absorção de gente nova implicou num processo de constante recriação dos signos culturais. O Candomblé tecia alianças e canais de comunicação com a sociedade, na medida mesma em que incorporava como membros de seus rituais pessoas de diferentes origens e condição social. "Os escravos conseguiram transformar adversários naturais em aliados muitas vezes involuntários" (Reis, pág. 53).
O quarto artigo leva o nome de "Fugas, Revoltas e Quilombos: os limites da negociação", nele Eduardo Silva desenvolve uma apreciação qualitativa da resistência. Matiza as diferenças de natureza e conjuntura característica das fugas de escravos. Das opções individuais às coletivas, dos rompimentos radicais às formas de pressão e reivindicações, procura questionar a historiografia que em tudo vê os modelos marxistas ou weberianos de tradição revolucionária. "Tirar cipó", "dar às trancas", "abrir o pé", eram expressões comumente utilizadas para designar os mais arredios ao cativeiro. Sofre "mau cativeiro", desrespeitar os compromissos aceitos por costume, negar a alforria, eram situações que levavam invariavelmente a fuga dos escravos.
A falta de unidade das classes subalternas é explicada a partir dos conflitos criados pelas diferenças de origem, língua e cultura. As oposições africano/crioulo, forro/escravo, negro/mestiço, não foram superadas no processo geral das fugas. Somente na década de 80, com a intensificação do movimento abolicionista e a simultânea ruptura do "paradigma ideológico colonial" que a resistência escrava se articulou explorando melhor as fraquezas da classe senhorial. Para exemplificar o autor cita o movimento dos Caifazes em São Paulo, o Clube do Capim, Manoel Congo entre outros.
João José dos Reis escreve o quinto artigo "O jogo duro do dois de julho: o 'partido negro' na independência da Bahia". Nele analisa o processo de independência da Bahia e, em especial, a participação dos negros. Reconstitui o tabuleiro de forças sociais e políticas em jogo no momento da descolonização. Portugueses, brasileiros e escravos constituiram grupos de interesse irreconciliáveis no desenrolar dos acontecimentos. A elite branca nativa temia que a radicalidade do movimento pela independência levasse à libertação dos escravos. Contudo, apesar das desordens provocadas pela luta entre brasileiros e portugueses, os cativos não empreenderam um esforço significativo durante a guerra pela independência. Embora este momento apresentasse o que parecia ser uma excelente oportunidade para a rebelião, em nenhuma outra época a sociedade baiana esteve mais mobilizada e armada que de 1821 a 1823. A rebelião podia ser politicamente apropriada, mas não era taticamente segura.
Porém os escravos souberam aproveitar as circunstâncias e conseqüências da guerra como demonstra o caso de Manoel Muniz que em 1826 exige a alforria do seu senhor alegando os serviços prestados na Independência. Manoel Muniz, como tantos outros escravos, recusou-se a acompanhar o seu senhor quando este batia em retirada para o Recôncavo. Permaneceu na cidade de Salvador onde conseguiu economias com a venda de seus serviços. A situação descreve uma estratégia de resistência individual.
No sexto e último artigo do livro "O levante dos Malês: uma interpretação política", explora com detalhamento as questões trabalhadas nos artigos anteriores. As tensões sociais expressas nas relações de classe, etnia e religião são a tônica da análise proposta. O autor abre com uma tênue crítica da historiografia de marca hobsbawniana, a qual considerara a rebeldia escrava um fato pré-político. Reis argumenta que a cultura escrava não foi um fator de conservação do regime, mas sim a possibilidade de criação de uma rede política informal, que apesar do enraizamento étnico foi um elemento de permanente contradição que disseminou a resistência e a rebeldia. As cerimônias religiosas tanto podiam promover a coesão social, como antecipar levantes e rebeliões. Os escravos baianos não formaram uma "classe" no sentido clássico do termo. Não foi apenas a inserção no sistema produtivo que determinou as características da luta socal.
Nesse sentido "classe" e "etnia" não são conceitos antitéticos, pois a experiência africana de organização política modelou a atuação e a mobilização das revoltas. Seguindo as trilhas de Bastide, Reis salienta que para os escravos a religião era uma linguagem política, pois promovia canais de solidariedade e comunicação entre os diversos grupos sociais.
Na Bahia não teria acontecido um "jihad" clássica como enfatiza a historiografia tradicional sobre a Rebelião Malê. Foi justamente o caráter sincrético do islamismo Malê, sua forma pragmática de organização que possibilitou as alianças durante a rebelião entre as diversas etnias.
Reis escrutiniza as condições estruturais para a ocorrência da revolta. Entre elas destaca a condição peculiar do forro e do escravo urbano. Na cidade eles adquiriam uma multiplicidade de papéis econômicos que permitia maior circulação física e a utilização dos locais de moradia dos libertos para o planejamento das revoltas. Enfim, a cidade era um meio propício para a ocorrência de revoltas. O momento de irrupção da Rebelião Malê foi escolhido a partir de uma coincidência muito bem pensada entre o calendário litúrgico católico e islâmico. Basta ler para crer!...
Revista de História - USP
Pós-graduanda em História Social do Departamento de História/USP
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Negociação e Conflito de João José Reis e Eduardo Silva faz parte de uma longa lista de títulos publicados no "fluxo e defluxo" das comemorações do centenário da Abolição da escravatura no Brasil. O livro é uma contribuição às discussões sobre o tema da resistência escrava levantdas e exaustivamente exploradas pela produção acadêmica nos últimos anos. Formado por seis artigos curtos, a maior parte deles já publicada anteriormente em revistas especializadas, escritos em linguagem fluída três por Silva e três por Reis. Acompanha ainda, um interessante apêndice com três documentos de época.
Os autores apresentam uma proposta de "leitura" da resistência escrava que dá maior peso à história do cotidiano, uma ênfase à análise micro-histórica. Eduardo Silva é pesquisador da Casa Rui Barbosa, e atualmente doutorando do University College of London. Possui dois livros publicados - Barões e Escravidão: Três gerações de fazendeiros na crise da estrutura escravista, editado pela Nova Fronteira em 1984; As Queixas do Povo, pela Paz e Terra em 1988. João José Reis é o autor de uma série numerosa de artigos sobre a resistência escrava na Bahia, América e África. Reis é atualmente professor da Universidade Federal da Bahia, onde defendeu o vigoroso estudo sobre a rebelião Malê. A tese foi publicada em 1986 pela Editora Brasiliense com o nome: Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malés 1835.
Em Negociação e Conflito delinea-se certa ordem de tratamento das questões, indo de modo geral da análise factual à especulação conceituai. Os artigos iniciais criticam a mistificação em torno da atuação do escravo, nem só herói, e nem apenas vítima do sistema foi o escravo brasileiro. O grau de complexidade culmina com os artigos finais onde são discutidas as relações entre classe, etnia e religião.
Confirmando as tendências dominantes da historiografia contemporânea, os autores buscam um escravo que foi o sujeito de sua própria história. Escravos que desenvolveram uma particular sabedoria política e que conquistaram os seus espaços de autonomia na sociedade em que viveram. Enfatiza-se principalmente a persistência de uma tradição de rebeldia que se expressou de formas variadas e surpreendentes. Foram as fugas temporárias, as sabotagens, as revoltas, os quilombos, sintomas de uma resistência endêmica na sociedade escravista brasileira. "Tantas vezes considerados como simples feixes de músculos, os escravos falam freqüentemente, através deles. Suas atitudes de vida parecem indicar, em cada momento histórico, o que eles consideravam um direito, uma possibilidade ou uma exorbitância inaceitável" (Silva, pág. 15).
A conceituação da resistência escrava é matizada ao longo do texto, ora enfocando o discurso paternalista elaborado pela classe senhorial, ora resgatando a "voz" do cativo na soma dos seus atos. Uma problemática multifacetada que só pode ser compreendida a partir da trama tecida pelas relações sociais desenvolvidas na sociedade escravista do século dezenove. A resistência escrava incluiu desde a garantia dos padrões materiais de vida, até a defesa da vida espiritual e lúdica da população. Dimensões que não raro se encontravam articuladas no cotidiano da sociedade escravista. O africano no Brasil, corpo-território, deu a "volta ao mundo", reinventando aqui a sua forma de luta de classes. Traduzindo num jogo de destreza e malícia as contradições da realidade, uma verdadeira capoeiragem social.
A conjuntura baiana na primeira metade do século XIX é o cenário dos acontecimentos narrados no livro (com exceção do segundo). Momento de grande tensão insurrencional, tradicionalmente caracterizado pela historiografia como "ciclo de revoltas baianas" (1807-1835), cuja originalidade reside no fato da organização dos movimentos ter sido promovida em torno das filiações étnicas. Os autores destacam que somente a determinante étnica não é condição suficiente para explicar o caráter dessas rebeliões. A mesma origem étnica facilitava o contato e a vivência coletiva das tradições culturais dos locais de origem na África, mas por outro lado podia criar divergências dificultando a unidade e a mobilização das classes subalternas.
A rebeldia de maneira geral, coincidiu com as crises políticas das classes senhoriais baianas. Os novos ares soprados pelas revoluções liberais na Europa, a independência dos Estados Unidos, e a apavorante revolução no Haiti, levaram a elite colonial a internalizar rapidamente uma "nova consciência", que inverteu num passe de mágica os sinais da legitimação da escravidão. O que antes era aceito como legítimo e natural, passava a ser julgado moralmente. Rompia-se então o paradigma ideológico colonial.
No primeiro artigo do livro, "Entre Zumbi e Pai João, o escravo negocia", Eduardo Silva apresenta um rápido apanhado dos critérios de seleção das fontes documentais. O historiador procura na documentação os indícios que retratem a relação senhor/escravo como uma dinâmica de luta e uma permanente negociação dos conflitos. Escravos que recorriam às autoridades para garantir a autonomia, o direito ao pecúlio, ao plantio, à alforria, foram os personagens centrais da análise empreendida. Critica a historiografia que reproduz os mitos de Zumbi e de Pai João, o primeiro tomado como exemplo de heroísmo, e o segundo como sinônimo de conformismo e benevolência. Silva nos oferece ainda um breve levantamento da produção acadêmica mais recente sobre criminalidade escrava, a questão das alforrias e a condição do liberto, a vida cotidiana e comunitária.
O segundo artigo da coletânea intitula-se: "A função da brecha camponesa", nele Silva revê o problema da existência de uma margem de economia própria do escravo. O autor discute a efetividade da chamada "brecha camponesa", pois na sua perspectiva, ela era uma estratégia paternalista dos senhores que desta forma pretenderam criar uma virtual ilusão de propriedade gerando um sentimento de apêgo à terra. Em realidade o escravo jamais obteve o acesso direto ao mercado ou local onde ele pudesse negociar livremente o preço de seus produtos. Quando muito, era o senhor que comprava e estipulava o preço de venda das mercadorias. O artigo explora o livro escrito pelo Barão de Pati do Alferes, fazendeiro na antiga província do Rio de Janeiro, publicado pela primeira vez em 1846. Foi reeditado inúmeras vezes no decorrer do século XIX, fato significativo para os padrões editoriais da época. Trata-se de um manual agrícola, que explica como administrar uma fazenda de café. O Barão de Pati sugere a adoção de certas normas de organização, que teriam por finalidade a agilização do ritmo da produção agrícola, ao mesmo tempo que garantiam uma vigilância mais apurada sobre a escravaria. Do receituário indicado pelo Barão constam: a formação de pequenas turmas de trabalho, o oferecimento de gratificações, o dencanso nos feriados, a instrução religiosa e, curiosamente, um método de alinhamento para plantio de café. Não obstante este método causasse um aumento significativo da erosão do solo, facilitaria o controle e a disciplina do trabalho escravo.
"Nas malhas do poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú", terceiro artigo do livro, Reis reconstitui a partir de uma documentação precisa a luta pela preservação do espaço sagrado africano. Os dados levantados registraram a invasão do Camdomblé de Accú no mês de agosto do ano de 1829, em operação policial empreendida pelo Juiz de Paz de Brotas. A denúncia deste episódio partiu ao que parece dos próprios escravos, os quais se dirigiram em petição formal ao presidente da província onde relataram a profanação e a destruição dos objetos de culto ritual. Esse episódio indica um conhecimento do funcionamente da burocracia da época e, uma clareza da situação e possibilidades político-legais. Ao reconstruir os laços comunitários e as alianças políticas em Brotas o autor aprofunda a discussão sobre os modelos de paternalismo vigentes na Bahia. Enquanto os Estados Unidos incentivou-se a constituição de famílias e de alianças culturais, na Bahia, a elite senhorial estimulou as diferenças de origem, cor e condição social. Aos nascidos aqui, os crioulos, eram concedidos privilégios de ocupação e hierarquia social. Esta argumentação reforça a hipótese de uma "tradicional inimizade" entre crioulos e africanos. Alforria condicional e mestiçagem fizeram parte de uma estratégia anti-insurrecional. Foi neste contexto que a hiper-realista taxonomia racial da época inventou o "mulato". Não era sem razão que os senhores viam com péssimos olhos a mistura de pessoas de cor e condição social diferente.
Para os mais intolerantes as festas davam lugar a subversão e a desordem social. Contudo, foi através da religião, que crioulos e africanos romperam o isolamento, dando lugar à formação de uma cultura afro-baiana. A absorção de gente nova implicou num processo de constante recriação dos signos culturais. O Candomblé tecia alianças e canais de comunicação com a sociedade, na medida mesma em que incorporava como membros de seus rituais pessoas de diferentes origens e condição social. "Os escravos conseguiram transformar adversários naturais em aliados muitas vezes involuntários" (Reis, pág. 53).
O quarto artigo leva o nome de "Fugas, Revoltas e Quilombos: os limites da negociação", nele Eduardo Silva desenvolve uma apreciação qualitativa da resistência. Matiza as diferenças de natureza e conjuntura característica das fugas de escravos. Das opções individuais às coletivas, dos rompimentos radicais às formas de pressão e reivindicações, procura questionar a historiografia que em tudo vê os modelos marxistas ou weberianos de tradição revolucionária. "Tirar cipó", "dar às trancas", "abrir o pé", eram expressões comumente utilizadas para designar os mais arredios ao cativeiro. Sofre "mau cativeiro", desrespeitar os compromissos aceitos por costume, negar a alforria, eram situações que levavam invariavelmente a fuga dos escravos.
A falta de unidade das classes subalternas é explicada a partir dos conflitos criados pelas diferenças de origem, língua e cultura. As oposições africano/crioulo, forro/escravo, negro/mestiço, não foram superadas no processo geral das fugas. Somente na década de 80, com a intensificação do movimento abolicionista e a simultânea ruptura do "paradigma ideológico colonial" que a resistência escrava se articulou explorando melhor as fraquezas da classe senhorial. Para exemplificar o autor cita o movimento dos Caifazes em São Paulo, o Clube do Capim, Manoel Congo entre outros.
João José dos Reis escreve o quinto artigo "O jogo duro do dois de julho: o 'partido negro' na independência da Bahia". Nele analisa o processo de independência da Bahia e, em especial, a participação dos negros. Reconstitui o tabuleiro de forças sociais e políticas em jogo no momento da descolonização. Portugueses, brasileiros e escravos constituiram grupos de interesse irreconciliáveis no desenrolar dos acontecimentos. A elite branca nativa temia que a radicalidade do movimento pela independência levasse à libertação dos escravos. Contudo, apesar das desordens provocadas pela luta entre brasileiros e portugueses, os cativos não empreenderam um esforço significativo durante a guerra pela independência. Embora este momento apresentasse o que parecia ser uma excelente oportunidade para a rebelião, em nenhuma outra época a sociedade baiana esteve mais mobilizada e armada que de 1821 a 1823. A rebelião podia ser politicamente apropriada, mas não era taticamente segura.
Porém os escravos souberam aproveitar as circunstâncias e conseqüências da guerra como demonstra o caso de Manoel Muniz que em 1826 exige a alforria do seu senhor alegando os serviços prestados na Independência. Manoel Muniz, como tantos outros escravos, recusou-se a acompanhar o seu senhor quando este batia em retirada para o Recôncavo. Permaneceu na cidade de Salvador onde conseguiu economias com a venda de seus serviços. A situação descreve uma estratégia de resistência individual.
No sexto e último artigo do livro "O levante dos Malês: uma interpretação política", explora com detalhamento as questões trabalhadas nos artigos anteriores. As tensões sociais expressas nas relações de classe, etnia e religião são a tônica da análise proposta. O autor abre com uma tênue crítica da historiografia de marca hobsbawniana, a qual considerara a rebeldia escrava um fato pré-político. Reis argumenta que a cultura escrava não foi um fator de conservação do regime, mas sim a possibilidade de criação de uma rede política informal, que apesar do enraizamento étnico foi um elemento de permanente contradição que disseminou a resistência e a rebeldia. As cerimônias religiosas tanto podiam promover a coesão social, como antecipar levantes e rebeliões. Os escravos baianos não formaram uma "classe" no sentido clássico do termo. Não foi apenas a inserção no sistema produtivo que determinou as características da luta socal.
Nesse sentido "classe" e "etnia" não são conceitos antitéticos, pois a experiência africana de organização política modelou a atuação e a mobilização das revoltas. Seguindo as trilhas de Bastide, Reis salienta que para os escravos a religião era uma linguagem política, pois promovia canais de solidariedade e comunicação entre os diversos grupos sociais.
Na Bahia não teria acontecido um "jihad" clássica como enfatiza a historiografia tradicional sobre a Rebelião Malê. Foi justamente o caráter sincrético do islamismo Malê, sua forma pragmática de organização que possibilitou as alianças durante a rebelião entre as diversas etnias.
Reis escrutiniza as condições estruturais para a ocorrência da revolta. Entre elas destaca a condição peculiar do forro e do escravo urbano. Na cidade eles adquiriam uma multiplicidade de papéis econômicos que permitia maior circulação física e a utilização dos locais de moradia dos libertos para o planejamento das revoltas. Enfim, a cidade era um meio propício para a ocorrência de revoltas. O momento de irrupção da Rebelião Malê foi escolhido a partir de uma coincidência muito bem pensada entre o calendário litúrgico católico e islâmico. Basta ler para crer!...
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