quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RENASCIMENTO - A arte espelha a consagração do homem


Leonardo da Vinci, Botticelli e Michelangelo refletiram na arte o sentido maior do Renascimento: o homemcomo medida de todas as coisas e a busca pela perfeição que só padrões racionais poderiam construir

O conceito de Renascimento vem da palavra italiana renascitá. Acreditava-se que o período histórico anterior, a Idade Média, fora uma "espessa e longa noite gótica" imersa nas trevas e desprovida de cultura. Parecia que, durante séculos, o homem vivera subjugado intelectualmente pela religião e que o conhecimento intelectual circulara, basicamente, nos mosteiros e nos ambientes da Igreja. Esse tempo deveria ser superado, e a "verdadeira" cultura, resgatada na Antigüidade, alimentaria o novo espírito. As artes e os escritos clássicos, relidos e revistos à luz dos valores e modismos dos séculos XIV ao XVI, converteriam-se nas grandes fontes de saber.
A estética renascentista propôs claramente o retorno a alguns valores clássicos, como a arte mimética, imitação da realidade com o objetivo de buscar a perfeição, segundo Aristóteles, forjando a idéia de respeitar o modelo adotado e, dentro dele, a busca da superação, com o auxílio da criatividade; a harmonia; e a sobriedade, a contenção dos sentimentos.

Mas a grande mudança do Renascimento foi a definição de um novo estado mental e filosófico, que colocou o ser humano no centro de tudo: o antropocentrismo. O antropocentrismo é uma condição filosófica, um posicionamento abstrato que converteu o homem na medida de todas as coisas em detrimento do teocentrismo medieval, que situava em Deus o centro de tudo. O antropocentrismo permitiu que se exercesse a liberdade de pensar sobre o próprio homem e seu meio. Com essa base, expandiu-se no Ocidente uma forma de cultura laica, não religiosa, que valorizava o individualismo e a racionalidade.

Um exemplo dessa idéia está no estudo de proporção feito por Leonardo da Vinci para ilustrar uma cópia do tratado De Architectura, escrito por Vitrúvio em 40 a.C. O que se vê é a imagem de um homem de pé, esboçado em movimento, com pernas e braços mostrados simultaneamente em duas posições diferentes. O personagem, primeiro, está parado com os braços esticados em um ângulo de 90 graus com o corpo e as pernas fechadas. Ao mesmo tempo, dá um salto e afasta mais as pernas e levanta os braços.
A extensão das pernas até a cabeça delimita o tamanho de um quadrado, símbolo do mundo material e terrestre, enquanto a movimentação dos braços traça um círculo, símbolo da órbita celeste, do Universo. O desenho indica que o "homem é a perfeita medida de todas as coisas".
O homem de Vitrúvio, nome como ficou conhecido o trabalho de Leonardo da Vinci, não só carrega uma releitura da cultura greco-romana, mas apresenta um novo olhar, mais centrado na experimentação, observação, análise e teorização do Universo, que já não é visto como algo estático e imutável, sustentado em dogmas, mas sob uma ótica científica.

BUSCA DA IMAGEM PERFEITA
A maneira dos homens enxergarem as coisas se transformava. Procurava-se observar a natureza e analisar os fenômenos de uma forma direta, mais descritiva e analítica, e sem a mediação religiosa. Surgia uma vontade de compreensão e representação na arte que já não podia mais ser satisfeita com o pensamento teológico, por exemplo, e
nem com as técnicas de pintura desenvolvidas na Idade Média. O pensamento sobre o mundo ganhou a trilha do humanismo. E a qualidade da representação na pintura do Ocidente evoluiu rapidamente com a busca da imagem perfeita, da beleza essencial, da verdade na arte. Perspectivas e proporções exatas se tornaram o lugar-comum da pintura. E velhos personagens, deixados no esquecimento durante a Idade Média, renasceram com força: deuses, heróis e pensadores da Antiguidade que inspiraram o homem Renascentista de modo profundo.

O imaginário greco-romano e os símbolos da tradição pagã passaram a ocupar espaços públicos e privados, a se tornar novamente visíveis, e a mudança cultural chegou até o povo. Os santos católicos e os ícones do cristianismo passaram a dividir espaço com as representações pagãs e sensuais da Antiguidade, resgatadas para os novos tempos. Os artistas enfrentavam os dilemas dessa transição.
Tomemos o exemplo de O Nascimento de Vênus, obra do pintor florentino Sandro Botticelli (1445-1510). O nome já identifica a temática do quadro: a representação do nascimento da deusa romana do Amor, Vênus (Afrodite para os gregos). A pintura foi encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco, primo de Lorenzo de Médici, o Magnífico. Vênus ocupa a posição central do quadro, dividindo de forma harmoniosa o espaço da composição: à sua direita se encontra a personificação dos ventos. Os ventos sopram e formam as ondas e as espumas do mar, das quais nasce Vênus. Ela está em pé sobre uma concha e encobrindo-se apenas com suas mãos e cabelos. À sua esquerda, vindo ao seu encontro, está a personificação de Flora, que lhe traz suas vestes.
Mas, apesar do apego à narrativa mitológica greco-romana, o cristianismo também está presente. Botticelli era muito influenciado pelo pensamento neoplatônico, em particular pelo filósofo Marsílio Ficino, que incorporou o pensamento de Platão com base numa visão cristã. Em O Nascimento de Vênus, ele representou a concha como uma alusão ao batismo, o primeiro sacramento recebido. O batismo representa a inclusão na comunidade cristã e é um contraponto ao paganismo e ao Pecado Original.
O pudor de Vênus também pode estar associado ao neoplatonismo de Botticelli. No texto O Banquete, de Platão, aparecem duas descrições da Vênus: a Venus Vulgaris (Vênus Vulgar) representada nua e relacionada com o mundo material, e a Venus Coelestis (Vênus Celestial), ligada à essência espiritual. É a imagem da Vênus Celestial que Botticelli trata de representar.
As relações entre sábios e saberes durante a Idade Média se davam de um modo exclusivista. A escrita era o monopólio de um grupo restrito da sociedade, do clero. E o conhecimento era algo pertencente a Deus. Os textos contidos na Bíblia, base do conhecimento medieval, eram inalcançáveis para os fiéis. A leitura era privilégio de gente da Igreja e de poucos homens cultos. Os livros não estavamdisponíveis. A Igreja podia se firmar como única e exclusiva intermediária entre Deus e os homens.Mas, a partir da invenção da imprensa de tipos móveis por Gutenberg em 1450, o monopólio começou a ser rompido. Gutenberg iniciou seu trabalho de impressão justamente com a Bíblia. A divulgação de idéias, da própria Igreja ou mesmo de outras instituições, teve umsignificativo avanço. Tornava-se muito mais fácil a elaboração de livros, numa gradativa substituição dos manuscritos realizados pelos copistas nos mosteiros e abadias.
A transição do medievo para o mundo moderno não foi um processo homogêneo, sendo lenta e portadora de uma forte herança cultural. Essa herança teve vida longa em alguns pontos da Europa e em outros foi rapidamente enfraquecida.
Apesar da rejeição a alguns valores medievais, é importante perceber que as transformações sofridas durante o Renascimento foram resultado de um processo de continuidade que perpassou a Idade Média e atingiu seu esplendor no momento seguinte.
Uma das formas mais interessantes e ricas de se entender o Renascimento é olhar sua produção artística, hoje patrimônio inestimável da Humanidade. O acesso à maior parte dessa produção, em sua época, era exclusividade de ricos mercadores, nobres e do alto clero.
Quanto ao acesso das camadas mais pobres ( il popolo minuto: povo miúdo), ficou restrito à produção executada para os espaços públicos como estátuas e fontes nas praças, nas igrejas e nas confrarias de artesãos.

Outro ponto importante a ser notado é a idéia da mimesis. A natureza é o modelo da arte, e quem observa a posição dos ventos e a direção que eles sopram no quadro, por exemplo, nota claramente o movimento dos cabelos de Vênus e dos tecidos nas mãos de Flora. Tudo se move. E há uma predominância
das linhas curvas sobre as linhas retas que delimitam o horizonte. A simplicidade é vitoriosa e o espírito se eleva com beleza e equilíbrio.

Analisemos, agora, outro trabalho de Leonardo da Vinci. Não mais um desenho técnico, mas uma pintura. Trata-se do quadro A Última Ceia , encomendado pelo duque de Milão, Ludovico Sforza, e pintado na parede do refeitório do convento dos dominicanos de Santa Maria delle Grazie, em Milão, entre 1495 e 1497. O quadro de Da Vinci tornou-se uma das imagens mais populares do mundo cristão.
Vale dizer que ninguém representa tão bem o Homem Universal(l'uomo universale) renascentista como da Vinci. Foi ele quem conseguiu aplicar perfeitamente na arte todo o conhecimentocientífico e técnico de seu tempo. Ele foi um símbolo do uso de múltiplas potencialidades nos diferentes campos do conhecimento.
O quadro A Última Ceia mostra um momento da última refeição de Jesus Cristo com seus apóstolos, tema de vital importância no culto cristão. É na ceia final que se desenvolve o dogma da transubstanciação, realizado na transformação do pão em carne e do vinho em sangue. Ao longo de dois mil anos, a recriação simbólica dessa cena converteu-se no momento mais importante da liturgia cristã, a Eucaristia.
Sendo uma cena muito presente no imaginário cristão, seja pelo texto bíblico, seja por sua constante repetição na liturgia ao longo da trajetória do cristianismo, a última ceia teve inúmeras representações. O quadro de Leonardo da Vinci compõe a imagem como uma peça teatral: num grande e suntuoso salão, Cristo e seus apóstolos estão reunidos.
Cristo ocupa o centro da mesa, típica de banquetes medievais. Dividem-se, ao seu lado, dois grupos de seis apóstolos, apresentados de maneira simétrica em uma composição harmoniosa e equilibrada. O ponto central da imagem se encontra atrás da cabeça do próprio Cristo. A cabeça compõe uma circunferência junto com a moldura da janela imediatamente posterior e é o pólo irradiador das linhas de perspectiva da composição, uma das principais contribuições estéticas do Renascimento.
A atenção do Cristo está voltada para o pão e o vinho, alimentos e metáforas de seu futuro destino: o sacrifício na cruz pela Humanidade. A posição de seus braços em relação à cabeça forma uma imagem triangular. Hipóteses para tal composição são inúmeras, destacando-se, entre elas, as de caráter esotérico e místico, uma vez que os estudos herméticos e de alquimia foram muito comuns à época de Leonardo da Vinci.
Não há como saber quais teriam sido as referências que guiaram a mão e a mente do pintor. Mesmo as referências presentes nos Evangelhos não oferecem muitos dados para uma resposta precisa. Essa dificuldade nos situa em um ponto importante sobre o entendimento de qualquer produção artística: as imagens não têm sentido sozinhas, existe um contexto, e a recuperação desse contexto implica a compreensão ou a "atribuição" de um sentido mais preciso ou pelo menos mais plausível a respeito de seus possíveis significados. A representação de Leonardo da Vinci sustenta um conteúdo cristão-católico (a "última ceia") nos conhecimentos técnicos de pintura que se desenvolvem no Renascimento.
Por mais que entre os séculos XIV e XVI tenha ocorrido uma intensa valorização da racionalidade, era algo muito distante e completamente diferente da nossa concepção de Razão. Naquele momento, a religiosidade ainda exercia um papel central nas diferentes formas de sociabilidade, e mesmo aquilo que viria a ser chamado de Ciência ainda mal se definia.
O Renascimento trouxe uma série de inovações técnicas, sociais e culturais para o Ocidente. Foi um momento de grande abertura intelectual, orientada por uma nova visão de mundo e uma nova mentalidade, mais dinâmica e rica de sentidos, que pudessem atender às necessidades daquele contexto. Mesmo assim, muitos dos pensamentos e da arte do período se afirmavam no confronto com a visão medieval. E a Igreja tratava de se defender dos avanços dessa nova racionalidade. Às vezes, essa defesa era intransigente e sem piedade. Essa "reação" pode ser percebida na execução do médico Giordano Bruno em 1600, ou na condenação de Galileu Galilei em 1616, sentenciado a revogar em público suas doutrinas.
Seriam necessários mais alguns séculos para que as conquistas do Renascimento superassem amplamente a visão dogmática do período anteior. A visão que chamamos de científica é filha do Iluminismo e seus filósofos, que viveram no século XVIII, e também de todo o avanço do Cientificismo dos séculos XIX e XX. Ela começou a florescer na Renascença, mas precisou de vários séculos para se tornar dominante. É provável que a Ciência tenha conseguido o espaço que pleiteara no passado, favorecida pelo materialismo, pelo ateísmo e por uma relativa liberdade de pensar. Mas, por outro lado, os extremismos religiosos não param de se manifestar, seja no Ocidente, no Oriente. Muitos dos dilemas que envolvem a fé e a razão e que motivaram o homem renascentista continuam atuais.
Elias Feitosa de Amorim Jr. é mestrando em História Social (USP) e professor de cursos pré-vestibular.
Revista Desvendando a História

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