Em agosto de 1961, o então presidente da República brasileira afirmou em carta que havia sido “vencido pela reação” e, assim, deixava o governo. “Forças terríveis levantaram-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração”, continuava a missiva. A partir de então, uma série de blefes se sucedeu em resposta às perguntas da imprensa. Jânio Quadros renunciava.
Nascido em 25 de janeiro de 1917, em Campo Grande (MS), Jânio experimentou uma ascensão política cinematográfica. Formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1939, ele ocupou, sucessivamente, diversos cargos desde 1947 – quando se elegeu suplente de vereador – até 1960, quando obteve 48 % dos votos para presidente da nação. Na base do “varre, varre, vassourinha”, tema de sua campanha, e de uma oratória destacável, beneficiou-se da ressaca provocada pela concretização dos sonhos de Juscelino Kubitschek. Mas, ao passar a faixa presidencial, JK deixou também um país endividado, fruto da construção da nova capital federal, Brasília.
Senso de oportunismo
Na opinião de José Alberto Saldanha de Oliveira, professor da Universidade Federal de Alagoas e doutor em história pela Universidade Federal Fluminense, “Jânio inaugurou a hoje conhecida carreira política alimentada mais pelo carisma e discurso moralista de combate aos desmandos do que pelas estruturas partidárias”. Mesmo sem linha partidária definida, a eleição do novo presidente da República “representou a antiga vontade daqueles que faziam oposição ao trabalhismo. Jânio foi apoiado pela UDN (União Democrática Nacional), por forças liberais que questionavam o Estado interventor da era Vargas e por parcela da classe média nacional, que se mantinha assustada com a inserção dos trabalhadores na política, visada pelo trabalhismo”.
Saldanha esclarece que Jânio não podia ser taxado como político de direita ou de esquerda – o que se sobressaia nele era justamente seu senso de oportunismo. “Sua estratégia o faz encarnar em dado momento a idéia de um salvador da pátria”. Seguindo a cartilha que inaugurou, Jânio abusou do contato político pessoal, em detrimento de debates com as organizações sociais, ass quais praticamente ignorou.
A relação de Quadros com o seu vice, João Goulart, era muito pouco considerada nas literaturas escolares. Naquele momento da história de nosso país, havia eleições distintas para eleger o presidente da República e o vice-presidente da República. Os eleitos poderiam inclusive ser oriundos de chapas completamente opostas. Foi o caso do sufrágio que levou Jânio a Brasília. O vice, Jango, pertencia ao grupo adversário, ao contrário do governo anterior, quando Juscelinoe o próprio Jango – ambos da mesma chapa – venceram para os postos de titular e substituto, respectivamente. Devidamente empossados, Jânio Quadros delegou ao seu vice as atribuições que ampliassem as relações diplomáticas.
No cargo máximo do executivo nacional, os sete meses de Jânio foram suficientes para deslocar seu aliado de campanha, Carlos Lacerda, para a oposição, e arrepiar os mais tradicionais com sua política externa progressista. Internamente, no entanto, mostrava-se conservador, e em pouco tempo ficou sem base política, dificultando a governabilidade.
Novamente, o chamado senso de oportunismo é citado como possível justificativa de sua antológica contradição entre as políticas adotadas dentro e fora do Brasil. Posturas polêmicas desenhadas em solo brasileiro – permeadas por afagos ao bloco comunista liderado pela poderosa União Soviética, em plena Guerra Fria – chegaram a se tornar praticamente triviais perante sua pequena gestão no comando da nação. Jânio buscou, na verdade, concentrar poder, tentando jogar com a política externa e interna, procurando agradar a ambos os lados na escala ideológica, sempre e com o claro objetivo de consolidar o seu comando.
Foi assim quando o então presidente concedeu uma condecoração ao guerrilheiro Ernesto Che Guevara, buscando aproximação com os comunistas e com os trabalhistas. A tática, aparentemente bem montada, não funcionou bem, segundo explica o professor Alberto Saldanha. “A esquerda já não o apoiava desde o início, sempre o considerando um carreirista. Para piorar a situação, ele foi progressivamente desagradando também os setores conservadores que o elegeram, na medida em que manteve a política econômica anterior e realizou a ampliação das relações diplomáticas, trazendo outra vez a idéia do 'fantasma' do comunismo”. No dia 25 de agosto de 1961, com tantos cálculos políticos, Jânio renuncia de supetão, sem explicações claras ou objetivas.
Forças ocultas com sodaSuas justificativas não passavam de evasiva réplicas que por muitos anos alimentaram diversas teorias. No livro Dossiê Brasil, Geneton Moraes Neto divulga documentos, como uma carta em que a embaixada canadense procura analisar o fato. Lá também se encontra uma pesquisa atribuída ao Instituto de Estudos Econômicos e Sociais, na qual a maioria dos entrevistados (24 %) achava que Jânio “renunciou na esperança de ser chamado de volta ao poder como homem forte, numa espécie de golpe político”, 22 % demonstraram acreditar nas alegações expostas na carta-renúncia, e 8 % atribuíram o fato à “instabilidade mental” do político, entre outras opções.
Outro escrito, dessa feita produzido pela embaixada britânica, em 19 de abril de 1962, ainda a respeito da fatídica renúncia, dizia que “a estrela política de Jânio Quadros parece estar se afundando numa poça de uísque. (…) Uma piada que se conta aqui – e não é exatamente uma piada – é que as 'forças ocultas', que Jânio culpou pela renúncia, saíram de uma garrafa. Freqüentadores de bar agora pedem ao barman que lhes sirvam 'forças ocultas com soda'”. No fim, o relatório ainda sugere: “Como quase tudo é possível na política brasileira, pode ser que ele recupere terreno tão rapidamente quanto perdeu”.
Segundo Alberto Saldanha, durante um bom tempo se acreditou na versão bizarra alegada por Jânio para a renúncia, principalmente no decorrer do regime militar, em função da censura dos anos de chumbo. “Hoje o fato está mais claro. A estratégia da renúncia foi uma jogada unilateral de Jânio, não entendida pela população”, afirma Saldanha.
Fracasso e ditadura
Nos últimos anos de sua vida, Jânio finalmente admitiu o verdadeiro motivo de sua destrambelhada atitude. Mais bisonha do que ela, somente os seus resultados, um belo “tiro pela culatra”. Recomendado por Geneton Moraes Neto em suaesclarecedora obra, o livro Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil, organizado por Jânio Quadros Neto e Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, traz palavras confessionais do ex-presidente. “Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi”. Jânio ainda explica seu plano: “Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart (então vice-presidente) em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim, ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. (…) Imaginei que, em primeiro lugar, o povo iria às ruas, seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. (…) Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória”. No fim da citação do diálogo, Jânio encerra com um categórico “deu tudo errado”.
Tal ação pode soar cômica. No entanto, foi responsável por uma faiscante crise institucional no país. Depois disso, Jânio só retornou a vencer uma eleição em 1985, elegendo-se prefeito de São Paulo, cargo que já havia ocupado em 1953 em circunstâncias ascendentes. Morreu na capital paulista em 16 de fevereiro de 1992. Ao povo brasileiro, tradicional observador “bestializado” desde os tempos do Império e da proclamação da República, restou a estranha sensação de que não voltaria a votar para presidente tão cedo. Em 1964, apósalguns anos de governo João Goulart, ocorreu o famigerado golpe militar, suprimindo o direito do cidadão de eleger o chefe do executivo nacional.
ELE FEZ ESCOLA…
Muitos dos traços que transformaram Jânio Quadros em um elemento do folclore político nacional continuaram em voga e são muito utilizados nos pleitos atuais, em todas as esferas. Há políticos que utilizam imagens de santos em comícios e passeatas. Muitos discursos, presenciados facilmente nos dias de hoje, copiam em demasia as promessas quase messiânicas feitas por Jânio no longínquo início da década de 1960. “O brasileiro continua cultivando o hábito de esperar pelo salvador da pátria, embora menos que antes. A idéia de messianismo tem relação com a forte religiosidade que a nação possui, com a tradição católico-cristã, e é alimentada por políticos de direita e esquerda”, explica o professor José Alberto Saldanha.
Mais recentemente, um ex-presidente foi bastante comparado a Jânio Quadros, por seu pouco apreço ao sistema partidário e pelos episódios criados, com que passava uma imagem de salvador. Trata-se de Fernando Collor de Mello, que curiosamente também acabou renunciando ao cargo – em circunstâncias diferentes – às vésperas de um processo de impeachment.
Tiago Eloy Zaidan é escritor e professor de História do Projeto Educação Comunitária.
Revista Desvendando a História
Um comentário:
Ótimo blog! Parabéns!!
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