sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O LONGO PERCURSO DA CIDADANIA


A possibilidade de tornar-se cidadão foi uma conquista quelevou séculos e esteve ligada a diversos interesses históricos

"É preciso garantir a cidadania das pessoas”; “você está ferindo a minha cidadania”; “a cidadania está sob ameaça”. Estas são, certamente, frases corriqueiras atualmente. E, apesar de ser uma palavra de uso comum, é difícil identificar, no final das contas, o que significa “cidadania”. Ora ela é vinculada a questões civis (acesso à justiça, sindicatos, liberdade de imprensa, etc.), ora vincula-se à economia (desemprego, salários, etc.), vez e outra aparece no contexto de uma discussão política... Afinal: o que é cidadania?
Esse termo quase sempre envolve direitos e obrigações das pessoas em relação a elas mesmas, a órgãos corporativos ou ao poder público. Seguindo essa pista, cidadania diz respeito, antes de tudo, a direitos e obrigações de todos que vivem em sociedade. Na mesma linha, podemos ver também que esse conjunto de coisas (direitos e obrigações sociais) aparece acompanhado de leis escritas. Ou seja, sempre que se fala em cidadania, referimo-nos a um grupo social que se organiza por meio de regras que são colocadas no papel, pouco importando o assunto tratado. E o cumprimento dessas normas deve ser seguido pelo povo, por empresas e por governantes.

Outra pista que nos direciona é a origem latina da palavra “cidadania”, derivação de civita, que tanto é raiz de “cidadania” como das palavras “civil” e “cidade” – reforçando a tese sobre pessoas em sociedades organizadas por meio de leis. E essas dicas, reunidas, apontam inevitavelmente para Roma.
Terra e poder
Apenas para lembrar, a história de Roma (veja a matéria “Os homens e os deuses do Lácio”, à pág. 28) é dividida em três fases: a Monarquia, a República e o Império. É a segunda fase que nos interessa. Dirigidas pelos patrícios – proprietários de terras e comerciantes que não influenciavam o governo de Roma –, as revoltas que puseram fim ao período monárquico determinaram uma nova forma de organização da sociedade. Aquele novo modelo partia do princípio de que os patrícios passariam a ser denominados “cidadãos”, que eles escolheriamentre si alguns para administrar a cidade (esse grupo passou a se chamar “senado”) e que as ações do governo e as ações de todas as pessoas seriam regidas por leis (que ficaram conhecidas como a Lei das Doze Tábuas). Por último, essa forma de governar recebeu o nome de República (res= “coisa”; publica= “de todos”, ou seja, “aquilo que pertence a todos”). Entretanto, essas mudanças envolviam apenas os antigos patrícios, ficando de fora o restante da população, a plebe. Em outras palavras, a cidadania, em sua origem, possuía uma dupla função: tanto servia para garantir os direitos e obrigações das pessoas definidas como cidadãs, quanto as distinguia do não-cidadão (separava aquele que tinha direitos e obrigações daquele que somente possuía obrigações).

Como o período da República Romana foi também o período de sua expansão territorial (que o império consolidou, acrescentando novas terras), a cidadania passou a ser um dos principais objetivos a ser alcançado pela plebe. Não é de se estranhar, então, o número de revoltas civis e de guerras em que Roma se envolvia, pois se um dos requisitos para ser cidadão era ser proprietário de terras, quanto maior fosse sua expansão, maior seria a chance de um plebeu se transformar em cidadão (veja o quadro “A morte do imperador”).

O cristão e o burguês
Com o fim da República, surge o Império Romano, que, tempos depois, recebe a ascensão do cristianismo, transformando-o em religião oficial. Terminado o Império Romano, começou a Idade Média, e as coisas mudaram bastante. Se o cristianismo passou a ser a principal referência dos povos europeus da época, isso significou também uma alteração substancial no significado da palavra “cidadania”.
Uma boa referência para o período é encontrada em um dos maiores pensadores de então, Santo Agostinho. Em um de seus livros – não por acaso chamado A Cidade de Deus –, defendia que a decadência do Império não significou o fim da civita, mas a sua transformação. Agora, dizia ele, civita representava a “cidade da cristandade”, regida pela crença e pelas Leis de Deus. Assim, ainda que existissem cidades com suas regras na Idade Média, a principal lei seria aquela que brotasse da Igreja (o Direito Canônico). Contudo, como a distinção entre os antigos patrícios e plebeus continuou (com novas roupagens, como senhores feudais, vassalos, alto e baixo clero, etc.), a incorporação de todos à Cidade de Deus não significou, necessariamente, que de repente todos fossem considerados iguais. O que ocorreu foi o entendimento de que existiam cristãos “bons” e “relativos”; cidadãos “bons” e “relativos”.

A derrocada da Idade Média e o início da Idade Moderna deram condições ao nascimento da burguesia. Com a ampliação e o surgimento de várias atividades de ofícios e o fortalecimento do comércio (particularmente a partir do século 13), entre outras coisas, tem ascensão a figura do burguês, com origem na época medieval. Contudo, sua presença como grupo social que busca maior participação no governo aparece mais claramente nas cidades italianas na virada do século 15 para o 16 e se expande com a Reforma Protestante, seguindo para outros locais.
Mas qual a importância do protestantismo para a questão da burguesia e da cidadania? O fato é que, das três Reformas Protestantes, a de João Calvino (ocorrida no que seria futuramente a Suíça, em 1534) indicava claramente que a salvação dos homens apenas poderia ser confirmada pelo “sucesso nas boas obras”, ou seja, sucesso com o trabalho. Essa afirmação ia ao encontro dos interesses da burguesia, que cedo adotou a crença calvinista, pois, quanto mais sucesso tivesse nos negócios, mais certeza teria de que seria absolvida no dia do Juízo Final.
Mas o que isso tem a ver com cidadania? Simples: para atuar em seu negócio, o burguês precisava de liberdade de ação, que, por sua vez, só poderia ser conquistada se existisse uma lei que a garantisse e um governo que sustentasse tal legislação. Assim, influenciar o governo era uma coisa fundamental para a burguesia. Em outras palavras, ser cidadão, ter direitos e obrigações plenos, era importantíssimo para esse grupo social.

A MORTE DO IMPERADOR
Uma passagem importante da História tem origem na ansiedade territorial dos romanos e, logo, na sua luta desmedida pela cidadania: o assassinato de Júlio César.
Com a conquista da Gália, César prometeu que cada soldado que participou da vitoriosa campanha receberia lotes de terra gaulesa. Ora, boa parte desses soldados era plebéia e, assim, pode-se imaginar a quantidade de cidadãos que surgiria e poderia se candidatar ao senado repentinamente. César, porém, ganhava batalha após batalha, era reverenciado como chefe militar e da nação, e fortalecia-se no comando de Roma. Em sua homenagem, símbolos da monarquia foram ressuscitados para que os vestisse, como a capa roxa e a coroa de louros. Como se não bastasse, o senado concordou que ele poderia usar, legal e indefinidamente, o título de imperador. Nessa época, por volta de 45 a.C., César estava há 15 anos no poder desde o Primeiro Triunvirato, em 60 a.C.
O imperador passou a sustentar, então, um paradoxo fatal: suas guerras estendiam os domínios romanos, que convergiam terras para os soldados, que aumentavam o número de cidadãos, que transferiam mais poder ao senado e que, finalmente, desejavam a saída de César (e o restabelecimento da república como antes).
Temerosos de que se proclamasse rei, um grupo de senadores que nomeavam a si mesmos de Liberatores (porque livrariam Roma de César) conspirou contra o imperador. Em 44 a.C., armaram uma emboscada no Teatro de Pompeu, onde César teria sido vítima de pelo menos 20 facadas. O grupo assumiu o assassinato e justificou-se dizendo que tirava da República um tirano com propósitos monárquicos.
Os romanos de classes média e baixa, principalmente aqueles que conquistaram o título de cidadão por causa das conquistas de César, revoltaramse com a notícia e criaram uma tensão que impossibilitou o controle de Marco Antônio sobre Roma – principal candidato ao governo de então. Ironicamente, o principal herdeiro de César, seu filho adotivo Otávio Augusto, aproveitou-se da situação e assumiu o poder, proclamando-se rei.

Conquista nas fábricas
Essa luta da burguesia em diversos países atravessou toda a Idade Moderna e resultou na independência dos Estados Unidos, em 1776, e, principalmente, na Revolução Francesa, em 1789. Contudo, para ambos os casos, a luta da burguesia para se ver inserida dentro do grupo que possuía a “cidadania” não significou, como muitos acreditam, a ampliação dos direitos para todas as pessoas. Mesmo no caso da Revolução Francesa, a famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão somente se referia a uma parte da sociedade: os revolucionários separaram os “cidadãos de primeira classe” (que possuíam direitos e obrigações plenos) daqueles de “segunda classe” (que somente possuíam obrigações). Portanto, a famosa declaração apenas valia para o primeiro grupo. O segundo continuava proporcionalmente nas mesmas condições da plebe romana ou do vassalo medieval.
Entretanto, a hegemonia burguesa, que começou pelas atividades mercantis, foi também o pilar para a Revolução Industrial, que começou na Inglaterra na primeira metade do século 18 e se expandiu por vários lugares no século 19. Com a expansão da indústria, um novo grupo social apareceu de forma marcante: os operários. Da mesma forma que seus patrões lutavam desde o século 15 para influenciar o poder público, os operários também começaram a reivindicar aquilo que entendiam como um direito adquirido em função de seu esforço. Primeiro, lutando por melhores salários e condições de trabalho. Depois, percebendo que era necessária a existência de leis que garantissem seus direitos, reivindicaram o direito de voto, uma vez que eles não tinham os rendimentos salariais que a maior parte dos países exigia para que uma pessoa se tornasse eleitor (e, logo, cidadão). Por fim, como em boa parte das fábricas as mulheres é que formavam o maior número de empregados, também elas começaram a lutar pelos seus direitos. E todas essas causas se iniciaram no século 19 e foram consolidadas no século 20.
Podemos, enfim, definir “cidadania”? Segundo os romanos, “cidadania” é o conjunto de direitos e obrigações de qualquer pessoa (um indivíduo, uma empresa ou o poder público) que viva em uma sociedade com leis e governo. Portanto, a idéia de “cidadania” começa com um vínculo total com a política. Todavia, a nossa trajetória demonstrou que o problema que essa definição enfrentou ao longo do tempo foi a inclusão de um número maior de pessoas. Em outras palavras, se a definição do termo já estava pronto desde o século 4 a.C., a questão a ser resolvida sempre foi saber quem faria e quem não faria parte do grupo dos cidadãos.
Mais do que separar aquele que tem direitos e obrigações daquele que somente tem obrigações, ou qualificar cidadãos como eleitores, a evolução da sociedade democrática levou todos os tipos de pessoas, nos mais diferentes níveis, a exaltar sua cidadania. Hoje, mais do que a síntese de uma relação de causa e efeito, a cidadania transformou-se no sentimento de pertencer a um local, de estar inserido num ambiente social e, por isso, ser pautado por uma série de códigos e condutas. Tamanha amplitude faz com que, muitas vezes, o conceito de cidadania mude no menor sentido de fronteira que conhecemos: onde termina a “nossa” cidadania e “começa” a do próximo.

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política e professor da Faculdade de Ciências Econômicas de Valença (FACEV/FAA
Revista desvendando a História

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Eduardo,
agradeço pela gentileza de incluir um texto meu em seu Blog e coloco-me a inteira disposição para qualquer ajuda.

Abraços,

Antonio Marcelo Jackson.