sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A luta dos afrodescendentes brasileiros por igualdade de direitos durante o século 20

Karin S. Kössling

Após o fim da escravidão, os afrodescendentes brasileiros precisaram se organizar em diversos grupos para lutar por cidadania e outros direitos

A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, sem uma política de inserção social, levou os afrodescendentes a uma grande marginalização social na nova ordem social que então nascia. O mercado de trabalho encontrava-se voltado para os imigrantes, e a persistência do racismo não dava a eles grandes possibilidades.

Diante de um quadro extremamente desfavorável, esses ex-escravos tentaram superar as dificuldades organizando-se em torno de associações, literárias, rítmicas, musicais e outros tipos de espaços voltados principalmente para a cultura – outros espaços sociais urbanos não estavam abertos a eles.

Esse encontro rotineiro, com pessoas que sofriam os mesmos problemas, fez surgir a consciência coletiva da exclusão social a que estavam submetidos.

Com a circulação dessa consciência, esse grupo social passou a buscar meios de protestar e articular seus pensamentos, visando a auto-afirmação e a construção de uma identidade positiva. O processo de organização do grupo afrodescendente passa, necessariamente, pelo processo de conscientização de seus problemas sociais, políticos e econômicos. Os movimentos negros configuram-se como a busca à vida associativa em combate ao racismo. Essa luta obteve, entre tantas dificuldades para sua construção, a intensa vigilância dos órgãos de segurança por meio da polícia política, que desconfiava desses movimentos como “subversivos”.

FNB abre caminho
O primeiro veículo de protesto negro foram os periódicos – de início produzidos somente por e para esse público (veja o quadro “Fases da imprensa negra”). Essa imprensa articulava os afrodescendentes com idéias, aspirações, reivindicações e projetos sociais. Como buscavam também o resgate da auto-estima dessa população, era muito importante valorizar a beleza negra e o peso dessas pessoas como seres humanos. Formulando uma identidade étnica e laços de solidariedade, procuravam uma mobilidade social.
O primeiro jornal do estado de São Paulo foi o Baluarte, de 1904, órgão oficial do Centro Literário dos Homens de Cor. Autodescrevia-se como “um legítimo órgão da classe de homens de cor para levantar essa classe muito tempo aviltada em nosso país”. Na capital fluminense, o primeiro periódico com esse perfil foi o Menelik, fundado em 1915. Ele tinha um caráter mais noticioso, dedicando-se também à crítica literária.
A fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931, nasceu em decorrência do contexto de inquietação e esperança produzido pela Revolução de 1930, com objetivo de integrar política e socialmente os afro-descendentes. Foi um movimento de caráter nacional, com atuação no interior de São Paulo e em outros estados do país.
Na década de 1920, os afrodescendentes envolvidos com a imprensa, principalmente com o Clarim d´Alvorada, organizaram o Centro Cívico Palmares, uma das sementes da FNB. Arlindo Veiga dos Santos, que já havia sido presidente do Centro Cívico Palmares em 1931, buscou, junto com outros militantes, uma organização mais política, complementando a ação realizada no centro.

O jornal A Voz da Raça, lançado em março de 1933, colaborou muito para a atuação da FNB. Ele se apresentava como órgão oficial da instituição.

Numa edição de 1933, dizia tratar de “assuntos referentes ao negro, especialmente, não dispensando porém de acolher os de outras referências quando solicitadas. Este jornal aparece na hora em que precisamos tornar público, nos dias de hoje, de amanhã e de sempre, os interesses e a comunhão de idéias da raça porque as outras folhas, aliás veteranas, por despeitos políticos, têm deixado de fazer.”
A FNB alinhou-se à política populista de Vargas. Ao denunciar o racismo, os frentenegrinos buscavam também superar os estigmas herdados da escravidão e romper com a forma tradicional de dominação. Mas, para tal propósito, acreditavam ser necessário o “saneamento moral” dentro de sua comunidade, endossando aspectos de projetos do governo Vargas de transformação do homem brasileiro, centrado na valorização do trabalho, da obediência e da homogeneização social.
A FNB trouxe, portanto, um projeto de atuação reivindicatória com uma posição de integração na sociedade brasileira, visando a ascensão social dos afrodescendentes. Cabe ressaltar que essa associação não apresentou uma posição homogênea entre seus sócios, vindo a assumir diferentes dimensões expressivas dos múltiplos projetos e embates internos. No entanto, predominou, ao longo de sua existência, uma postura política de direita (veja o quadro “Namoro integralista”).
A política teve importância central para a FNB, que visava ampliar seu espectro de atuação. O ápice foi sua inscrição como partido político em 1936. Mas, diante da dissolução da representação partidária em 1937, essa atividade da FNB também foi abandonada. A idéia não era de separatismo com a formação partidaria, mas de levar adiante reivindicações do afrodescendente que não seriam assumidas por nenhum outro partido. A exclusão do afrodescendente do processo político revela a importância da iniciativa frentenegrina.

Contra o racismo
O Movimento Unifi cado Contra a Discriminação Racial (MNU) nasceu por meio do ato público de 7 de julho de 1978 em São Paulo. O ato visava protestar contra a discriminação racial, especialmente no caso do Clube de Regatas Tietê, que teria proibido o treino de alguns garotos negros no clube, além do episódio que levou à morte de Robson Silveira Luz, em decorrência de torturas numa delegacia de polícia de Guaianazes.
Ainda na década de 1970, os afrodescendentes tinham que reafirmar e reivindicar seus direitos de cidadãos. Assim, eles projetavam sua mobilização: “O Movimento Contra a Discriminação Racial foi criado para que os direitos dos homens negros, também, sejam respeitados”, dizia uma carta convocatória para um ato público contra o racismo em 1978.

Os principais líderes do MNU se identificavam com o ideário trotskista e militavam na Liga Operária – depois transformada em Convergência Socialista –, organização que editava o jornal alternativo Versus, no qual Hamilton Bernardes Cardoso comandava a coluna “Afro-Latina-América” (veja o quadro “A força da esquerda”).

Na carta de princípios do MNU, havia destaque para o seu objetivo central, a “defesa do povo negro”, visando sua melhoria social numa perspectiva de integração social. O documento não tratava de idéias de rompimento social.

Ao contrário, trazia uma perspectiva de inclusão na sociedade brasileira e de preservação dos direitos sociais.

A união foi o objetivo maior do MNU, que procurava articular todas as associações afrodescendentes, visando unificar os esforços de combate ao preconceito, ao racismo e à discriminação.

NAMORO INTEGRALISTA
A intensa circulação ideológica no século 20 ecoou nos movimentos negros de diversas formas, o que levou os afrodescendentes a se posicionarem na sociedade e a articularem suas estratégias, seus discursos e projetos.
A Frente Negra Brasileira debatia o comunismo, o anticomunismo, o integralismo, o fascismo, o antifascismo e o nazismo, idéias que circulavam no mundo daquela época. Mas alinhou-se ao pensamento de direita e anticomunista, demonstrando posições simpáticas ao integralismo e ao nazismo. Tanto que a lateral do cabeçalho do jornal A Voz da Raça estampava as palavras: “Deus, Pátria, Raça e Família”, uma analogia com o ideário integralista. Embora não fosse assumida oficialmente, essa afinidade era realçada pelo ingresso de frentenegrinos na Ação Integralista Brasileira (AIB), conforme relatado em investigação policial sobre a Frente Negra de Tietê, nos arquivos do Deops.
Mas as posturas políticas de direita não foram unanimidade entre os militantes. O problema é que mobilizações ligadas à esquerda não tiveram grande possibilidade de ação, uma vez que a atuação repressiva da polícia política coibia sua organização. A Federação dos Negros, ou Federação Nacional dos Negros do Brasil, por exemplo, pronunciou-se em defesa da Abissínia, invadida por Mussolini. Mas esta manifestação foi logo proibida pelo Deops.
Com seu crescimento, na década de 1930, a FNB tornou-se alvo de assédio de políticos e partidos de esquerda e direita. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) investiu em propagandas voltadas aos negros e a outros “oprimidos”. Porém, como se pode observar em circulares do PCB, percebeu-se a necessidade de arregimentar a FNB para a penetração na comunidade afrodescendente, proposta essa rechaçada pelos dirigentes frentenegrinos. Já as aproximações com a AIB foram amplamente facilitadas por um ideário comum e ocorreram aproximações entre os seus militantes, principalmente no ano de 1937, como relata o jornal Acção nos festejos de 13 de Maio.

Vigilância do Deops
De 1924 a 1983, ao longo da existência do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – a polícia política estadual, ou Deops –, houve muita vigilância e repressão aos movimentos negros brasileiros. Praticamente todo o século 20 apresentou uma restrição em relação ao protesto afrodescendente, especialmente pela visão de que esses movimentos trariam a perspectiva de rompimento e conflito social na “harmônica” sociedade brasileira, pautada no mito da “democracia racial”.

Embora o principal inimigo dos órgãos de repressão política de então fosse o comunismo, houve uma preocupação com a questão racial brasileira na atuação da polícia contra as lutas anti-racistas, além da própria preocupação com a possibilidade de “cooptação” desses movimentos pelos comunistas.
Para desqualificar as associações de negros, reforçando o mito da ausência de preconceito racial no Brasil e, portanto, negando a necessidade de tais associações, as autoridades policiais da década de 1940 classificavam-nas de subversivas, como pode ser verificado neste trecho de um relatório de investigação do Deops de São Paulo:

“Pretende, pois, a Organização de Cultura e Beneficência Jabaquara, criar, no Brasil, a questão racial, problema gravíssimo que, felizmente, desconhecemos [...] Quer nos parecer que a existência dessa associação será perniciosa à segurança pública, pois o seu programa de ação se presta admiravelmente para agitações, de modo [que] será, infalivelmente, uma presa dos fácil demagogos profissionais.”
O trecho apresenta um discurso policial que trata as associações de cunho reivindicatório como ameaça. Ao tentar escamotear o racismo brasileiro, faz-se necessário calar as vozes dissonantes. Ao apontar o racismo e suas conseqüências, essas associações negam o mito da “democracia racial”, justamente num contexto em que se enaltece tal aspecto com maior divulgação da obra de Gilberto Freyre Casa-Grande & Senzala.
As associações afrodescendentes também eram vistas como presas fáceis para os “demagogos profissionais”, ou seja, os comunistas. Tais afirmações revelam – além do preconceito presente entre as autoridades policiais – uma política de controle social que busca cercear as ações político-sociais da esquerda brasileira. A polícia política “construía” a sua versão que, movida pela lógica da desconfiança, incriminava o acusado.
Da mesma forma, no regime militar, o nacionalismo brasileiro de cunho autoritário pautou-se na formulação do discurso de um povo mestiço e harmônico, visando mobilizar a população em torno da sua concepção sobre o país e homogeneizar em torno dos “interesses nacionais”. A celebrada “democracia racial” tornava-se um “dogma” dos governos militares, visando evitar a “desagregação entre as raças”. Em conjunto com outros mitos, como a “exuberância natural”, o “congraçamento social”, a “harmônica integração nacional”, a “cordialidade” e a “festividade” do povo brasileiro foram apropriados e ganharam novo sentido por meio da propaganda do regime militar em nome da idéia de unidade nacional. A “inexistência” do preconceito racial seria, na mentalidade do regime, parte do “caráter nacional”, da própria “brasilidade”, elemento-chave desde o governo Vargas.

A FORÇA DA ESQUERDA
Enquanto a FNB se aproximava dos integralistas, o MNU apresentou um discurso pautado no marxismo, especialmente como conseqüência das pesquisas acadêmicas sobre racismo no Brasil, que utilizavam o viés marxista, como a de Florestan Fernandes e Clóvis Moura na análise sobre a desigualdade social brasileira, mesclando os conceitos de “classe” e de “raça”. A base ideológica do MNU esteve também ligada à filiação dos militantes aos partidos de esquerda que contestavam o regime militar.
Embora o MNU não se comprometesse com um partido político de forma direta, sua postura apresentava-se alinhada aos pensamentos de esquerda e indicava a seus militantes que votassem e participassem dos partidos que fossem comprometidos com as causas dos oprimidos.
A política era aspecto vital para o MNU, especialmente pela constatação dos militantes de que o racismo é um fato político. Ao mesmo tempo, notamos que esse era o ponto de fragilidade do MNU em relação à sua unidade, já que diversas tendências político-partidárias se faziam presentes, tornando objetivos e estratégias dissensos.

Assim, o Deops, no período do regime militar, classificava os movimentos negros como “subversivos” e atos de “racismo negro”. É exemplo o seguinte depoimento de um investigador de polícia durante a reunião de uma associação clandestina de afrodescendentes: “contou com a presença de agitadores principais do ‘black power’ nanico, que é o verdadeiro movimento, camuflado com o nome acima citado. O movimento racista negro pretende ‘botar pra quebrar’ [sic] em todo o país.”
O “protesto negro”, nesse contexto políticosocial, trazia à tona a desigualdade racial, pondo em xeque a massificação presente nos projetos políticos dos órgãos governamentais. Assim, a denúncia do racismo, a articulação de gestos, as músicas, os visuais, os comportamentos, as religiosidades, enfim, o cultivo de formas de representações próprias, ligadas à ascendência africana, levava à formulação de uma cultura de resistência fundada em signos e símbolos identitários afro-brasileiros, que ganharam ares subversivos para as autoridades policiais e militares.

FASES DA IMPRENSA NEGRA

Ao lado, da esq. para a dir.: capa do jornal Clarim d’ Alvorada, de 31 de janeiro de 1932 e capa do periódico Jornegro, de 1981
Miriam Ferrara, em seu estudo sobre a imprensa negra no Brasil, dividiu essa história em três períodos. A primeira, que vai de 1915 a 1923, marca o nascimento da consciência étnica, com poucas reivindicações. Na segunda, de 1924 a 1937, surge o conteúdo reivindicativo. Ela começa com o Clarim d’Alvorada e segue com a Frente Negra Brasileira e seu jornal A Voz da Raça. A terceira fase dura de 1945 a 1963. Nela, acontece a reorganização pós-Estado Novo, processo de intensificação das reivindicações políticas, com filiação a partidos políticos e candidaturas a cargos eletivos pelos afrodescendentes.
Revista Desvendando a História

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Eduardo.

Muito interessante o seu blog. Uma voz que vai ao encontro de várias formas de pensar o mundo, com racionalidade e inconformismo na dose exata.

Abraços.

Anônimo disse...

Eduardo,
seria interessante você citar o autor do texto da revista.
Karin S. Kössling

smartins disse...

Uma delícia seu artigo que mostra a internalização e e naturalização da vigilância, controle e repressão aos movimentos negros, determinando que o negro não pode, em hipótese alguma, se insurgir contra o lugar definido para ele: a subalternização nos moldes de um apartheide brasileiro.