quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

DITADURA - A cultura sob o olhar das Forças Armadas

Os anos duros do regimemilitar podiam ter soterradoos diferentes movimentos artísticos nacionais, mas aconteceu justamente
o oposto

A vida cultural durante o regime militar brasileiro costuma ser lembrada de maneira contraditória. Por um lado, é demarcada como um período de repressão, censura e exílio de artistas e intelectuais. Processos que provocaram uma verdadeira crise cultural, muitas vezes acompanhada dos adjetivos “vazia” e “terrorista”, termos popularizados na época. Por outro lado, essa visão negativa convive com uma memória positiva sobre a vida cultural do período, concentrada principalmente entre os anos 1964 e 1968.
Esses anos teriam marcado o auge de uma arte politizada, exemplificados pelos memoráveis festivais de música, pelas peças de teatro (Opinião, Rei da Vela, Roda Viva), pelas exposições de arte (Opinião, Propostas,Nova Objetividade) e por movimentos artísticos redefinidores da vida cultural brasileira, como o Tropicalismo. Portanto, na memória social e histórica sobre o período, a vida cultural parece ter sido cheia e vazia ao mesmo tempo. Repressão e censura conviviam com momentos memoráveis de resistência cultural, engrandecida pelo alto nível estético da arte de oposição.

As pesquisas históricas mais recentes têm procurado ir além dosparâmetros da memória consolidada sobre a vida cultural naqueles tempos. Aprofundando aspectos pouco conhecidos, revisando teses clássicas e esmiuçando processos polêmicos e contraditórios, ela começa a apontar novos objetos, abordagens e problemas que, mais cedo ou mais tarde, fornecerão novos subsídios para pensar o período, com implicações diretas nas salas de aula do ensino básico.

Entre as afirmações mais cristalizadas sobre o período, destacamos a seguir quatro assertivas que se tornaram verdadeiros chavões e que começam a ser revisadas pela historiografia.
A arte engajada de esquerdatinha uma hegemonialimitada a pequenos gruposde consumo, intelectuais autocentradosno seu mundinho declasse média.
Essa afirmação tenta explicar por que a cultura não conseguiu conscientizar os setores populares e“fazer a revolução” tão sonhada que derrubaria o regime. A cultura de esquerda, base da cultura de oposição, estaria limitada a um consumo pequeno,“umas 50 mil pessoas num universo de 90 milhões”, como escreveu Roberto Schwarz em um famoso texto de época. Em linhas gerais, essa afirmação é correta, até pela exclusão social da maioria dos brasileiros. O processo, no entanto, é mais complexo e ainda demanda pesquisas de caráter quantitativo. No caso da música popular, foi a MPB, movimento musical protagonizado por jovens universitários de esquerda, que reorganizou a cena musical e a indústria fonográfica brasileira, a partir de 1965, atingindo milhões de consumidores no período. Chico Buarque de Holanda e Elis Regina eram grandes sucessos de público e de crítica, conforme atestam os dados do Ibope, e os festivais da canção constituíram-se no principal gênero televisivo antes da hegemonia das telenovelas. Mesmo emáreas de público mais restrito, em termos quantitativos, como as artes plásticas e o teatro, os eventos atraíam número considerável de pessoas e, mais importante, marcavam o debate e a opinião popular por meio da imprensa. Portanto, o impacto da arte de oposição na esfera pública e nos vários segmentos sociais ainda será devidamente avaliado.

A massificação da cultura,via mercado, destruiu a artepolitizada e tirou espaço dosartistas de esquerda,veiculando produtos de entretenimentoalienado e de baixonível estético, que interessavammais aos militares no poder


Costuma-se contrapor à arte politizada e de qualidade, feita pela esquerda, o processo de massificação e mercantilização da cultura, cujo grande exemplo seria a televisão brasileira dos anos 70, tida como paradigma do início da disseminação do lixo cultural a serviço da alienação das massas e do autoritarismo político. Essa imagem apocalíptica, no entanto, precisa ser trabalhada com mais cuidado. A indústria da cultura, favorecida pelo processo de modernização capitalista patrocinado pelos militares, precisava não apenas arregimentar profissionais ligados à produção cultural, mas também fornecer produtos para uma classe média em expansão, cujos estratos com maior poder aquisitivo e escolaridade eram, contraditoriamente, os mais críticos ao regime.
A indústria da cultura –fonográfica, editorial, audiovisual– precisava incorporar a artede oposição ao segmento maisvalorizado dos seus produtos,devidamente depurada de seusexcessos ideológicos e apelos àluta direta contra o regime. Alémdisso,muitos profissionais dacultura – dramaturgos,jornalistas, diretores de cinema– tinham seu talento reconhecido eafinado com o gosto da classemédia consumidora de cultura,público-alvo dos empresários dosetor. Eram, portanto, profissionaiscom boa receptividade no mercado.
Isso explica, em parte, por que a Rede Globo de Televisão, sobretudo o núcleo de telenovelas, será o abrigo de muitos comunistas de carteirinha nos anos 70 (Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa, entre outros). A indústria fonográfica, por sua vez, precisava dos jovens músicos de oposição ao regime, astros dos festivais da canção, pois eles constituiriam o que se chamava artista de catálogo, responsáveis por vendas em longo prazo, fundamentais para a indústria fonográfica tanto quanto os sucessos rápidos e descartáveis. Portanto, a relação entre a arte de esquerda e o mercado da cultura ainda esconde muitas sutilezas e processos históricos ainda não elucidados.
O regime militar destruiu avida cultural brasileira comoum todo, pautando-se por uma
política repressiva e dissuasiva quevitimou, particularmente,os artistas de esquerda.

Obviamente, nenhuma ditadura faz bem à vida cultural ou a nenhum outro aspecto da vida social. Entretanto, é preciso notar que o regime militar brasileiro relacionouse com a vida cultural e artística mediante duas formas básicas: pelo uso e abuso de um tripé repressivo, formado pelo sistema de informação/ vigilância/censura; e por uma política cultural proativa. Especialmente a partir de 1975, ano da famosa Política Nacional de Cultura do MEC, que, dito de maneira irônica, era uma espécie de política nacional-popular, de defesa da cultura brasileira, tal como a palavra de ordem da esquerda, só que depurada da luta de classes.

Em áreas fundamentais para a cultura de oposição, até mesmo como tentativa de cooptar seus artistas, o Estado desenvolveu uma estratégia cultural agressiva e milionária, ao mesmo tempo que outras instâncias oficiais faziam o trabalho sujo da censura. Nas áreas de cinema e teatro, principalmente, a Política Nacional de Cultura premiará e patrocinará muitas obras realizadas por dramaturgos e
cineastas de esquerda,como Cacá Diegues e Glauber Rocha. No teatro, o exemplo mais esquisito foi o da peça Patética, premiada em 1977 pelo Serviço Nacional do Teatro e – ato contínuo – proibida pela Polícia Federal, pois encenava a morte de Vladimir Herzog, jornalista morto pela repressão em 1975. Além disso, a política cultural dos militares subsidiou circuitos de exibição de peças e espetáculos (Campanha de Popularização do Teatro e Projeto Pixinguinha). Portanto, repressão e mecenato oficial conviveram de maneira contraditória e tensa.
O campo da arte crítica aoregime era marcado,basicamente, por duas posições.A variável “nacional-popular”defendida pelo PartidoComunista e simpatizantes,preconizava uma arte nacionalista,com conteúdo, didática epopulista, enquanto as correntesde vanguarda (Tropicalismo,sobretudo) propunham umaarte cosmopolita, hermética,moderna e formal.
Essa dicotomia é uma herança das brigas da época, entre a esquerda ortodoxa e os tropicalistas, que foram incorporadas por uma parte da historiografia, muitas vezes sem a devida crítica. A esquerda acusava a vanguarda tropicalista de ser alienada e irracional, e as correntes de vanguarda acusavam a esquerda de ser careta e de fazer uma arte pobre e populista.
Se fizermos um exame mais detalhado das obras que marcaram um e outro campo, percebemos que nem o campo do nacional-popular se resumia a obras de conteúdo fácil e didático, pobres formalmente, nem a vanguarda era alienada e inconseqüente politicamente. Ambas as correntes tinham visões opostas sobre o estatuto de brasilidade e o papel social da arte, mas os dilemas sobre forma e conteúdo bem como a questão política estavam presentes em ambas.

Por outro lado, não se pode dizer, por exemplo, que a obra de Edu Lobo nos anos 60, identificada com o nacional-popular, fosse pobre e populista – muito pelo contrário. O diretor Glauber Rocha, muitas vezes considerado erroneamente como um tropicalista, fazia um cinema alegórico e vanguardista, mesmo sendo oriundo do campo nacionalpopular. Outro exemplo seria o do artista plástico Hélio Oiticica, herói da vanguarda brasileira, cuja obra instigante e ousada funde materiais inspirados na cultura popular (barracos de favela, adereços e fantasias de passistas das Escolas de Samba), retrabalhados dentro de uma poética construtiva, radical e moderna. Enfim, há mais mistérios entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira do que supõe a nossa memória histórica.
A revisão desses quatro chavões históricos sobre a cultura no período do regime militar é apenas um exemplo de uma pauta historiográfica muito maior, que precisa debruçar-se sobre as fontes primárias – escritas, audiovisuais, musicais – e ampliar a discussão sobre a cultura do período. Até para torná-la ainda mais fascinante.
Marcos Napolitano é professor do Departamento de História da USP.

Revista Desvendando a História

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