quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A origem da nossa desigualdade


01/10/2008
O mal e suas raízes
Na Colônia, a busca por privilégios e distinção social criou uma nova “nobreza”. Era a origem da nossa desigualdade
Ronald Raminelli
No final de 2001, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram uma emenda para alterar a redação do artigo 53 da Constituição Federal. Depois de intermináveis debates, ficava garantido ao Supremo Tribunal Federal o poder de processar os parlamentares por crime comum, sem necessidade de licença concedida pelo Congresso.
Na época, a emenda foi considerada uma grande vitória contra a impunidade. Com o passar do tempo, porém, o entusiasmo acabou. Basta abrir os jornais para se ver que essa mudança na lei pouco coibiu os desvios perpetrados por parlamentares. Recorrendo a artimanhas legais, eles conseguem prolongar a tramitação dos processos em que são acusados ou neutralizar as sentenças que os condenam.
E a impunidade não é privilégio dos políticos. A sociedade já se acostumou a ver como os ricos e famosos conseguem viver imunes aos “rigores” da Justiça. Será que nossa História ajuda a entender como se construiu e consolidou esta situação?
Em um rápido mergulho no passado, fica evidente a instável hierarquia da sociedade luso-brasileira, numa acirrada busca por privilégios individuais que emperrava a luta em favor do coletivo. O “jeitinho brasileiro” e o hábito de “levar vantagem” não são invenções recentes – provêm da sociedade colonial.
Nada mais estranho ao Brasil Colônia, por exemplo, do que a idéia de democracia. Por mais de três séculos vivemos em uma sociedade comandada por militares e religiosos, acrescidos posteriormente de mineiros e mercadores.
Em princípio, os privilégios e as imunidades eram graças concedidas pelo rei aos seus principais aliados. Essa honra era destinada a poucos. Basicamente, aos nobres e fidalgos. Em Portugal, os fidalgos descendiam de homens leais ao rei – guerreiros que lutaram contra os mouros, ao sul, e contra os castelhanos, a leste, para expandir as fronteiras e consolidar o poder da monarquia. Esse grupo seleto recebia títulos honoríficos de duque, marquês, conde ou barão, e desfrutava dos principais cargos, além de foro jurídico privilegiado, isenção fiscal e polpudas rendas concedidas pelo monarca.
Ao contrário dos fidalgos, os nobres não contavam com antepassados ilustres para garantir seus privilégios. Para alcançar a nobreza, os súditos recorriam basicamente a duas estratégias. A primeira era tornar-se um valente guerreiro, reconhecido como tal pelo rei, para receber o foro de fidalgo ou o título de cavaleiro de uma Ordem Militar. A segunda era ingressar na Universidade de Coimbra e receber o título de bacharel em leis ou em cânones, como fizeram, por exemplo, José Bonifácio e Hipólito da Costa. Com essa formação, eles pleiteavam um posto na magistratura e tornavam-se parte da nobreza política do reino, condecorados com as benesses da monarquia.
Tanto fidalgos quanto nobres recebiam pensões e o direito a foro privilegiado caso se envolvessem em causas criminais e cíveis. Se cometessem um assassinato, por exemplo, não seriam julgados pela justiça comum, mas por seus pares.
Em terras tupiniquins, os estratos sociais tornaram-se menos rígidos, viabilizando a ascensão de indivíduos que no reino jamais alcançariam altos patamares. Portugueses conviviam com índios e negros, escravos ou forros. Mais tarde, sobretudo no século XVIII, essa composição social ficou ainda mais complexa com o surgimento dos mestiços, filhos da união entre índios, negros e portugueses.
Nem sempre os primeiros colonizadores dispunham de prestígio para receber um título de cavaleiro ou foro de fidalgo e suas respectivas imunidades e seus privilégios. Eles estavam impedidos pelo defeito de sangue ou defeito mecânico. Em Portugal e em suas possessões ultramarinas, o rei não podia conceder privilégios aos súditos de origem judaica, moura ou gentílica (negros, ameríndios e asiáticos). Mesmo demonstrando lealdade ao monarca, as “raças infectas” eram impedidas de receber as mesmas honras dos brancos católicos. Desde o século XVI, era comum o casamento entre portugueses e índias, ou entre portugueses e negras. Além da mestiçagem racial, para a Colônia vieram muitos cristãos-novos (indivíduos de origem judaica convertidos ao catolicismo), que se misturaram aos cristãos-velhos. Em princípio, todos eles estavam impossibilitados de receber benesses da monarquia devido ao sangue impuro.
Além dos impedimentos de sangue, os súditos deveriam comprovar que seus pais e avós não trabalhavam com as mãos nem exerciam ofícios mecânicos (sapateiro, latoeiro, marceneiro, etc.). Para tanto, realizavam-se investigações (as chamadas provanças) na terra natal do indivíduo que concorria a privilégios e imunidades.
No Brasil, somente uma parte minoritária dos colonos não tinha “defeito” de sangue nem “de mãos”. Com o passar do tempo, porém, formou-se uma nova elite que, mesmo sem as benesses da monarquia, acumulou riquezas e tornou-se poderosíssima: dispunha de terras, engenhos, plantações e até mesmo de exércitos particulares.
Aos poucos, o grupo se integrou à chamada “nobreza da terra”. Assim se definiam os membros da elite de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, formada por um grupo beneficiado pela monarquia e por outro que se tornou poderoso mesmo sem contar com o aval do rei. Ainda que o último não fosse oficialmente reconhecido como nobre, isso não impedia seus membros de negociar postos e benefícios com Lisboa. Os “nobres da terra” ocupavam posições de destaque nas câmaras municipais e cargos militares, controlavam as alfândegas, os recursos e o patrimônio administrado pelas Santas Casas da Misericórdia.
Esse processo era facilitado pela grande distância que separava Lisboa e as capitanias da América portuguesa. O controle do rei sobre esses potentados era atenuado. Nas capitanias mais periféricas, onde a nobreza política era uma raridade, a “nobreza da terra” tinha amplo controle sobre a população, composta de uma minoria de brancos e uma maioria de mestiços, índios, pretos alforriados e escravos.
Longe de ser uma ameaça para a autoridade da metrópole, o poder local desses capitães era indispensável à manutenção do império colonial. A monarquia perdoava seus defeitos para reforçar alianças com aqueles súditos poderosos, radicados em territórios remotos, disputados por outras potências européias. Bom exemplo foi o do filho bastardo do governador do Maranhão, o mameluco Bento Maciel Parente. Ele lutou contra os holandeses e foi agraciado pelo rei com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua participação na guerra foi tão relevante que o monarca concedeu-lhe não só o título, mas também o perdão pelos seus defeitos (bastardia e “sangue infecto”).
Nessas paragens, a ordem era imposta pelos militares. Dominando postos administrativos, terras, armas e mão-de-obra, eles freqüentemente contrariavam as leis portuguesas, mas eram tolerados devido aos postos estratégicos que ocupavam.
Quanto mais leais e úteis ao soberano, mais honra e privilégios reuniam. E essa tradição não se limitava aos portugueses e seus descendentes, pois indígenas, negros e pardos também pleiteavam benefícios. Se fossem chefes militares, melhor: consideravam-se acima das leis por contar com um trunfo valioso: a capacidade de liderar tropas e de defender os interesses régios. Por lutar na guerra contra os holandeses em Pernambuco, o chefe indígena Felipe Camarão e o líder negro Henrique Dias também receberam o perdão do rei e a promessa de pensão, cargos, título de cavaleiro e comenda (rendas provenientes da exploração territorial). Esses leais vassalos logo pleitearam ao monarca que tal patrimônio fosse herdado por seus filhos e netos. A família Camarão desfrutou desse privilégio durante cem anos.
De tão arraigada no cotidiano, a busca por privilégios sobreviveu às muitas metamorfoses do país. É possível identificá-la até hoje – como na prática de julgamento especial para policiais e militares e no direito à prisão especial para aqueles que concluíram um curso superior.
Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a desigualdade não é problema. É tradição.

Ronald Raminelli é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância (Alameda Casa Editorial, 2008).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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